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Transporte de granéis e a perda natural: a possibilidade de responsabilização do transportador marítimo nos casos de “quebra natural”.

20/08/2012 às 16:32
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É natural a perda de granéis, em razão da dificuldade de transporte, o que sempre foi rotulada como causa excludente de responsabilidade do transportador marítimo. Mas este responderá por faltas, ainda que inferiores ao percentual legal, se a natureza do granel assim autorizar.

O transporte de granéis é um dos temas mais polêmicos do Direito brasileiro, tendo gerado, ao longo dos tempos, várias discussões em lides forenses espalhadas por todo o país.

Tudo por conta e ordem de uma figura denominada perda natural, vale dizer: a perda de certa quantidade de granéis em decorrência da própria natureza do bem e das dificuldades inerentes ao seu manuseio, remanejamento e transporte.

A perda natural, também conhecida como quebra natural, sempre foi rotulada como causa legal excludente de responsabilidade do transportador marítimo.

O que sempre se discutiu foi o percentual qualificador da perda natural como hábil ou não para tipificar a exclusão de responsabilidade por faltas ou avarias no transporte de granéis, mas nunca a figura legal propriamente dita.

A proposta deste modesto trabalho é inculcar uma nova perspectiva em relação ao tema, qualificando o eventual interessado ao pleito de reparação de danos ou de ressarcimento em regresso contra o transportador marítimo ainda que a perda tenha sido igual ou inferior ao teto percentual da quebra natural.

E isso com base na natureza ontológica do granel propriamente dito (donde se infere que a hipótese, evidentemente, não é cabível em todo e qualquer caso de transporte de carga granel, mas apenas em casos particulares, singulares por conta dos granéis em si).

Mas, para tanto, muito aproveita discorrer sobre o transporte de granéis propriamente dito e o que se tem, hoje, por firme e valioso em termos de quebra natural.

Pois bem!

Durante muito tempo a legislação brasileira, por diferentes regras legais, considerou como tolerável a perda de 3% (três por cento) do peso bruto dos granéis transportados, sendo que em alguns momentos históricos, até mesmo por conta da atuação dos Tribunais, em especial os do Estado do Rio Grande do Sul (conhecido por ser um dos maiores produtores de granéis do país), este percentual chegou ao absurdo patamar de 5% (cinco por cento).

Logo, toda “quebra” ou “perda” entre 3% e 5% do peso total da remessa de granéis confiada para transporte era chancelada com o signo da “naturalidade”, constituindo causa de exclusão de responsabilidade do transportador diante de alegação de inexecução perfeita da obrigação (prestação) de transporte, isto é, inadimplemento parcial do contrato de transporte (de todo e qualquer modal, mas, em especial, do modal marítimo).

Sempre refutamos tal entendimento, porquanto manifestamente injusto e desproporcional, sobretudo em se considerando o avanço tecnológico das ferramentas que informam a logística de transporte e os novos rumos da responsabilidade civil contratual.

De fato, um transporte logisticamente bem operado, dimensionado, munido de equipamentos de proteção, é capaz de minimizar e muito as dificuldades inerentes e reconhecidas dos granéis em geral.

Mas uma logística aperfeiçoada importa custos operacionais e estes, por seu turno, diminuição da margem de lucro. Logo, sempre foi melhor aos transportadores o uso da legislação até então em vigor e de uma idéia deturpada e injustamente favorável a respeito do que é, em verdade, uma “quebra e/ou perda natural”.

Até porque “quebra e/ou perda natural”, não pode ser confundida com desídia operacional do transportador, negligência (imperícia) quanto aos procedimentos de segurança e proteção do transporte de uma determinada carga de granéis.

A legislação, contudo, para o bem da Justiça e imediato e correto benefício dos destinatários de cargas e/ou Seguradoras (legalmente sub-rogadas nos direitos e ações destes), mudou, adequando-se à realidade dos fatos e estabelecendo, pelo rigor da norma positiva, princípios gerais do Direito, como os da eqüidade, razoabilidade e proporcionalidade.

O novo Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 4.543/02), que revogou e substituiu o antigo Decreto-lei nº 91.030/85, prescreveu, de forma taxativa, que a “quebra e/ou perda natural” só poderá ser considerada até o limite de 1% (um por cento) do valor total da remessa de granéis afetada:

Eis a exata dicção do texto legal:

Art. 72. O fato gerador do imposto de importação é a entrada de mercadoria estrangeira no território aduaneiro (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o).

§ 1o Para efeito de ocorrência do fato gerador, considera-se entrada no território aduaneiro a mercadoria que conste como tendo sido importada e cujo extravio venha a ser apurado pela administração aduaneira (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, § 2o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o).

§ 2o O disposto no § 1o não se aplica:

I - às malas e às remessas postais internacionais; e

II – à mercadoria importada a granel que, por sua natureza ou condições de manuseio na descarga, esteja sujeita a quebra ou a decréscimo, desde que o extravio não seja superior a um por cento (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, § 3o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o):

§ 3o Na hipótese de ocorrer quebra ou decréscimo em percentual superior ao fixado no inciso II do § 2o, será exigido o imposto somente em relação ao que exceder a um por cento. (destaques nossos)

Com base no quanto disposto na regra acima reproduzida, estamos seguros em dizer que hoje, por expressa determinação legal, toda e qualquer perda de granéis acima de 1% do peso total não poderá mais ser rotulada como “natural”, diga-se, “tolerável”, respondendo o transportador pelos prejuízos decorrentes do percentual acima do mínimo legal pré-determinado.

E nem se diga que a referida norma se aplica apenas no âmbito tributário, na medida em que sua incidência se espraia por todos os ramos do Direito, incluindo-se o Direito Civil, o Direito do Consumidor e o Direito Comercial (Empresarial) que estão fortemente ligados em se tratando de responsabilidade civil do transportador.

Nesse sentido, convém invocar a doutrina alemão do “Recht Über Recht”, que dispõe, segundo Erik Jayme, do diálogo entre as fontes do Direito, de tal sorte que uma norma, à luz do caso concreto, não expurga necessariamente a incidência de outra, mas, antes, harmoniza-se ao seu conteúdo e autoriza a aplicação conjunta, tendo-se em conta a interpretação sistêmica de um dado ordenamento jurídico.

Daí nossa convicção sobre a primazia da citada regra legal e, com ela, o império de uma nova mentalidade jurídica em todo país, até mesmo permitindo que casos arquivados pelas seguradoras, em face das novas regras de prescrição, ou sobre as sobreditas “perdas/quebras naturais”, então considerados como “impassíveis de ressarcimento em regresso” sejam rapidamente desarquivados e levados para as arenas dos debates. 

Num caso específico, considerando-se que a perda foi superior a 1% (um por cento) do peso total da remessa de granéis, mas inferior ao antigo patamar de 5% ou mesmo 3%, caracterizada restará, de pleno Direito, a responsabilidade civil do transportador marítimo, não se cogitando em quebra natural, reduzida esta que foi para menos de 1% do peso total da carga a granel.

Para melhor compreensão do assunto, convém fazer breve digressão sobre as particularidades da matéria, especialmente os aspectos legais.

O dispositivo de rateio proporcional de descarga é utilizado nos transportes marítimos de cargas a granel que possuem a mesma natureza e especificação, e que são procedentes da mesma origem.

Seus âmbito e aplicação se dá tanto na esfera comercial/securitária, como no espectro fiscal/legal.

Sua finalidade é promover o ajuste de discrepâncias das quantidades descarregadas dos navios para recebedores diferentes, localizados em apenas um ou em mais portos de destino.

No procedimento comercial e mercantil de rateio, tendo como foco apenas a relação entre os recebedores e o fornecedor, a práxis operacional usual leva o representante local do Fornecedor/Exportador a proceder os cálculos de rateio.

Concluídos os cálculos, realizados sempre com base nos controles/comprovantes de descarga emitidos tanto pelos Transportadores como pelos Depositários, o representante do Fornecedor normalmente estabelece que os saldos remanescentes (em acréscimo ou decréscimo) serão compensados nos embarques posteriores.

Essa práxis operacional tornou-se medida de bom senso, já que os acertos e transferências físicas de granéis entre recebedores, visando alcançar o ajuste preciso das descargas, é procedimento bastante complexo e custoso do ponto de vista logístico, e quando não, inexeqüível (nos casos em que recebedores estão em portos diferentes).

É verdade que os riscos para os granéis são muitos, tais como: temperatura, umidade, ventilação, atividade biótica, gases, auto-aquecimento, combustão espontânea, odor, contaminação, influências mecânicas, toxicidade, alteração de massa, volume, infestação, pragas, aquecimento por atividades respiratórias, processos metabólicos pós-colheita, teor de absorção de odores estranhos, evaporação de umidade intrínseca ao grão pode resultar em decréscimo de massa de até 1%, condição, tempo admissível de armazenagem, “container” de granel (“bulk container”), ângulo de repouso (dos montes), segregação (com outros grãos/granéis), Sugadores podem resultar em danos aos grãos, BÁSCULAS, moega, esteira transportadora, balança de fluxo, 6/7 RF (risk factor), mas não é mesmo verdade que as perdas superiores a 1% resultam não dos riscos propriamente ditos, mas da incúria operacional do transportador marítimo.

Assim, por conta do novo Regulamento Aduaneiro, tem-se certo que o percentual mínimo de um por cento é o novo marco de tolerância da chamada quebra natural, restabelecendo-se, com isso, o primado da Justiça. Qualquer perda acima de 1% importará presunção legal de responsabilidade civil do transportador de carga de granéis.

Eis o competente fundamento legal:

Decreto 4543/02

Art. 13. O alfandegamento de portos, aeroportos e pontos de fronteira somente poderá ser efetivado:

Art. 47. Para efeitos fiscais, não serão consideradas, no manifesto, ressalvas que visem a excluir a responsabilidade do transportador por extravios ou acréscimos.

Art. 51. O manifesto será submetido à conferência final para apuração da responsabilidade por eventuais diferenças quanto a extravio ou a acréscimo de mercadoria (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 39, § 1o).

Art. 63. A mercadoria descarregada de veículo procedente do exterior será registrada pelo transportador, ou seu representante, e pelo depositário, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal.

Art. 72. O fato gerador do imposto de importação é a entrada de mercadoria estrangeira no território aduaneiro (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o).

 § 1o Para efeito de ocorrência do fato gerador, considera-se entrada no território aduaneiro a mercadoria que conste como tendo sido importada e cujo extravio venha a ser apurado pela administração aduaneira (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, § 2o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o).

 § 2o O disposto no § 1o não se aplica:

 II – à mercadoria importada a granel que, por sua natureza ou condições de manuseio na descarga, esteja sujeita a quebra ou a decréscimo, desde que o extravio não seja superior a um por cento (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 1o, § 3o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 1o):

 § 3o Na hipótese de ocorrer quebra ou decréscimo em percentual superior ao fixado no inciso II do § 2o, será exigido o imposto somente em relação ao que exceder a um por cento.

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De qualquer forma, não obstante as considerações acima, também entendemos que em certos e especiais casos de faltas e/ou avarias na descarga, é e será possível a imputação de responsabilidade do transportador ainda que as perdas tenham sido iguais ou inferiores a 1% do montante total transportado.

Para tanto, o que se deve levar em consideração é o tipo do granel confiado para transporte.

Não que nos parecer que granel líquido, como combustível, granel postoso, como suco de laranja concentrado ou granel puro, mas com granulados grandes e pesados (pedras de algum tipo de mineral) se ajustem ao arquétipo legal permissivo.

Ora, o legislador tinha e certamente tem em mente em relação à quebra natural o granel por excelência, formado por farináceos e equivalentes e partículas pequenas, maiores que o pó e no máximo do tamanho de grãos de feijão.

Isso porque estes tipos de granéis realmente podem ser dispersos, naturalmente, por força dos ventos ou dos próprios trabalhos de estiva e desestiva, ainda que o transportador tenha tomado todos os cuidados para a preservação da integridade física da carga.

Não é ocioso lembrar que esses granéis podem realmente sere dispersados mesmo em operações tecnicamente perfeitas.

O mesmo não se pode dizer de pedras grandes e pesadas de algum tipo de minério ou combustíveis líquidos.

Pelo contrário, além de não serem vislumbrados elementos típicos e caracterizados de uma possível perda natural, a limitação, a exclusão de responsabilidade poderia até mesmo incentivar, mesmo que por via reflexa, ações ilícitas com vistas à efetivamente prejudicar o proprietário da carga ou seu segurador.

Aos extravios, portanto, caberiam perfeitamente lamentáveis pontos de interrogação no sentido de terem ocorrido por desídia operacional ou alguma motivação diferenciada e ainda mais ilícita do que a primeira e corriqueira causa.

Logo, o que inferimos e defendemos é que o transportador de carga granel não pode ser imediatamente contemplado com o benefício da quebra natural, da perda natural, apenas e tão somente pela constatação de perdas ou de faltas na descarga de até um por cento do total confiado para transporte.

Antes, é imperioso investigar as particularidades do caso e o tipo de granel, para, somente então, chancelar-se o sinistro como sendo ou não merecedor da chancela da quebra natural.

Há, portanto, possível relativização do conceito de quebra natural e isso em homenagem aos princípios da equidade e da proporcionalidade, perfeitamente aplicáveis ao tema.

O transportador, portanto, responderá em caso de avarias ou de faltas, ainda que inferiores ao teto percentual legal, se a natureza do granel assim autorizar.

É o que entendemos com base na experiência profissional e nos estudos cuidados dos muitos sinistros trabalhados nos últimos anos.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Transporte de granéis e a perda natural: a possibilidade de responsabilização do transportador marítimo nos casos de “quebra natural”.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3337, 20 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22451. Acesso em: 18 nov. 2024.

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