1. Aspectos iniciais: definição e história da codificação
A produção de um código não se trata de mera aglomeração de leis relativas à determinada área do direito. Essa atividade requer um cuidado muito mais amplo. Codificar o direito é sistematizar os princípios adequados às relações jurídicas de uma única essência, criando um tronco de noções revestidas de coesão.
No século XVIII, século das luzes, encontramos o repúdio ao predomínio da Igreja em todas as esferas da vida social, monopolizando até a produção de conhecimento. Nesse contexto, temos manifestações ideológicas de combate à religião, à tradição e à autoridade da época. Isso se deu também com relação ao direito, como coloca Giordano Bruno Soares Roberto[1]:
“Especificamente no campo jurídico, a crítica se concentrou em alguns pontos sensíveis. Primeiramente, na desigualdade perante a lei, uma vez que a nobreza e o clero desfrutavam de privilégios fiscais e acesso exclusivo aos cargos públicos. Em segundo lugar, nas limitações às pessoas e à propriedade, que se manifestavam na existência da servidão e nos entraves às atividades econômicas. Em terceiro lugar, nas intervenções arbitrárias dos governantes e na impossibilidade de participação popular nos assuntos políticos.
(...)
O direito não poderia continuar dominado pela tradição e pela autoridade. A razão humana deveria tomar a seu cargo um projeto de renovação dos ordenamentos jurídicos. As regras deveriam ser claras e facilmente reconhecíveis. Não deveriam se contradizer. Antes, deveriam participar de um sistema coerente”. (grifo nosso)
Ainda de acordo com o mesmo autor, antes que a codificação se realizasse na prática, muitos pensadores se dedicaram ao assunto. O inglês Jeremy Bentham foi, sem sombra de dúvidas, o maior teórico da codificação, apesar de outros antes dele, tenham estudado o assunto. Bentham se destaca seja pela profundida de suas reflexões, seja pela influência que sua produção exerceu nos codificadores[2].
Segundo Adriane Stoll de Oliveira, o início da “onda codificadora” como vemos atualmente se deu recentemente, pois a codificação é um movimento jurídico aparecido no Ocidente no século XIX, em função do qual os direitos ocidentais, quanto à forma, se dividem em: direito continental, ou direito codificado, que compreende o grupo francês, tendo por ponto de partida o Código de Napoleão (Código Civil francês), e o grupo alemão; e o sistema do Common Law ou do grupo Anglo- Americano[3].
Tércio Sampaio Ferraz Jr.[4], afirma que:
“(...) um dado importante da experiência jurídica entre os séculos XVI e XVIII é o fato de o direito ter-se tornado cada vez mais escrito, o que ocorreu quer pelo rápido crescimento da quantidade de leis emanadas do poder constituído, quer pela redação oficial e decretação da maior parte das regras costumeiras”.
Apesar disso, temos exemplos que remontam à antiguidade:
“A história do Direito Romano processa-se entre duas codificações: a Lei da XII Tábuas e o Corpus Juris de Justiniano. Na Suméria existiram codificações famosas. Até bem pouco tempo, era tido o Código de Hamurabi como a mais antiga codificação. Entretanto, em 1948, outro código mais antigo foi descoberto, o Código de Ur-Namur”[5].
2. A relação entre códigos e juízes
Trazendo a questão da codificação para a relação com a atividade do juiz, os códigos vinculam a decisão judicial às normas trazidas por ele. Ou seja, o que o juiz decide é sobremaneira influenciado pelas prescrições do código. A vinculação do juiz é maior ou menor na medida em que aumenta ou diminui a importância dada às normas codificadas.
Há quem diga que a decisão judicial provém única e exclusivamente a letra da lei, sendo apenas esta a fonte do direito. A norma codificada é a garantia de que a decisão seria correta. Neste caso, o juiz teria apenas o trabalho de adequar a lei ao caso concreto. Aqui a vinculação é taxativa. Busca-se uma segurança jurídica, ou seja, todos os juízes que se deparassem com situação semelhante, decidiriam de forma semelhante, gerando assim, uma jurisprudência regular e uniforme.
Os legalistas são os que defendem essa ideia. O legalismo pregado pela Escola da Exegese francesa defende uma antropologia iluminista, em que a razão sobrepõe a vontade (emoção). Afirma que a lei é sinônimo de norma jurídica, ou seja, a linguagem humana descreve a realidade tal como ela é (concepção essencialista da língua). Nesse caso temos a univocidade da linguagem. Isto constitui um equívoco: pensar que normas e texto são a mesma coisa[6]. Também temos que o juiz nunca origina a lei, sendo simplesmente um aplicador dela (la bouche de la loi), apenas reconhecendo o direito. Sendo assim, a interpretação é sempre literal: deve-se aplicar exatamente o que está no texto da lei, daí o brocardo in claris non fit interpretatio (na clareza, não cabe interpretação). O justo é aquilo que a lei diz que é justo. Aqui encontramos a tese da única resposta correta, encontrada dedutivamente.
De antemão, vale salientar que esse pensamento está fadado ao fracasso, pois se corre o risco de se fazer uma simplificação exagerada do ofício de juiz. “Fenômenos conhecidos como linguagem não possuem uma característica comum que pode ser identificada em todas as suas instâncias”[7]. Se isso ocorresse, seríamos penalizados com uma descaracterização da verdade, visto que nos afastaríamos da realidade dos usos jurídicos. Além disso, há o fato de essa possibilidade de solução desprezar o abismo gnoseológico entre significante, significado e fato juridicamente relevante, coisas que são inerentes à linguagem e à condição humana.
“Pode-se explicar o que aqui o que se compreende por abismo gnoseológico mediante três problemas que o compõem e que precisam ser transpostos ou ao menos tratados pela teoria do conhecimento: são as incompatibilidades recíprocas entre: a) evento real; b) ideia (ou “conceito”, “pensamento”); e c) expressão linguística (ou “simbólica”). Estas são as três unidades componentes do conhecimento humano, as quais não podem ser reduzidas uma à outra. Como são todos termos ambiguamente empregados na linguagem filosófica, necessário tentar melhor precisá-los”[8].
Corroborando com essa afirmação, temos o ponto de vista de Noel Struchiner[9], quando ele afirma que “as limitações da linguagem refletem diretamente na possibilidade de concretização dos propósitos do direito”. “Em função da textura aberta da linguagem, a indeterminação linguística é indelével”[10].
Sendo assim, podemos afirmar que o trabalho do juiz não limita a apenas repetir as prescrições codificadas. Só que surge uma indagação: considerando que o juiz é relativamente autônomo frente ao código, então qual seria a finalidade desse código com relação à decisão proferida?
É sabido que as leis codificadas por si sós não são suficientes para dirimir os mais variados conflitos existentes. Por exemplo, o próprio ordenamento jurídico reconhece as lacunas do sistema. E é por isso que ele mesmo institui mecanismos para ajudar na solução dessas lacunas. Outro exemplo seria o fato de que nem sempre (ou quase nunca) as leis são claras a ponto de se dispensar um trabalho interpretativo de preenchimento axiológico, pois as palavras da lei são dotadas de ambiguidade, vagueza e porosidade.
A ambiguidade relaciona-se a indagações a respeito do significado do termo linguístico; é um problema de sentido. Uma palavra é ambígua quando, no contexto em que ela esta aplicada, podemos ter dois ou mais sentidos que ela pode expressar. Por exemplo, “trabalho” pode significar emprego ou a terceira pessoa do verbo trabalhar; “fumo” pode ser o que é colocado nos cachimbos ou a primeira pessoa do verbo fumar, entre outros exemplos que podem ser citados como tendo mais de um sentido.
A vagueza diz respeito ao alcance da expressão linguística. Terá maior alcance e, portanto, será mais vaga a palavra à medida que se refira a mais objetos, ou seja, quanto mais geral ela for. Aqui é lembrado a característica normativa de generalidade.
Somada a estes dois conceitos, temos a historicidade ou porosidade, que tem relação com os diferentes significados que uma palavra pode ter com o passar do tempo. A significação atual de um termo vai caindo em desuso, entrando em cena outro significado. Ou seja, há uma efemeridade na significação dos nossos vocábulos.
Nesse contexto, vale salientar as seguintes passagens da obra de João Maurício Adeodato[11]:
“Importante é ter em mente que essas três peculiaridades da comunicação humana, necessariamente presentes, não devem ser confundidas com inconsistências individuais no uso da língua (orador ou ouvinte não compreenderem o uso corrente dos termos) ou na lógica do discurso (ser incoerente com a própria argumentação, por exemplo), como se observa em pessoas confusas, com inteligência verbal menos desenvolvida. Essas são outras formas de imprecisão da linguagem, de caráter contingente, mas aquelas mencionadas anteriormente são necessárias.
No complexo direito contemporâneo, a ambiguidade, a vagueza e a porosidade são calculadas e mantidas sob controle, pois quanto mais impreciso, mais maleável o texto. Embora lamentados por uma visão hermenêutica mais tradicional, os conceitos jurídicos indeterminados’ e os princípios, por exemplo, dão ao sistema dogmático e à decisão concreta elasticidade, mais possibilidades de adequação. De sua funcionalidade vem seu sucesso”.
Então, pode-se afirmar que quando o texto da lei não estiver claro o bastante, compete ao juiz completar o seu sentido, colocando-se no lugar do legislador e pensando como este procederia diante da situação. Portanto, a lei e o juiz devem manter uma singularidade, não podendo este fazer uma interpretação contra legem, mas sim, ultra legem.
3. Justificativas para a codificação do direito e suas consequências na jurisprudência
3.1 Segurança jurídica
Arthur Kaufmann[12] entende que:
“Segurança jurídica pode significar duas coisas: 1. segurança através do direito, e portanto segurança face ao roubo, homicídio, furto, incumprimento do contrato; 2. segurança do próprio direito, garantia da sua cognoscibilidade, aplicabilidade, efetividade. Apenas existe segurança através do direito, quando o próprio direito é seguro. Nesta segunda forma de segurança jurídica – segurança jurídica em sentido próprio ou estrito – está em causa a eficácia do direito. (...) Um aspecto parcial da segurança jurídica assim entendida é a força de caso julgado da sentença judicial. O fato de a sentença ter força de caso julgado significa que ela não poderá mais ser impugnada através dos recursos ordinários (apelação, revista, agravo). O processo está encerrado, Roma locuta, causa finita”.
A segurança jurídica tenta ser conseguida pela codificação de áreas do direito (direito penal, direito civil, direito administrativo, direito processual, etc). Assim, almeja-se evitar a arbitrariedade do Estado, bem como prever a decisão judicial. Essa ideia é defendida por Tércio[13], ao afirmar que “a fixação do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites”.
A atividade do juiz, nesse contexto, ficou mais exata e, digamos, controlável, visto que o ordenamento assevera as posturas jurídicas dos indivíduos. Essa questão também diz respeito à composição e ao fundamento da sentença dada pelo juiz.
3.2 Sistematização do conhecimento jurídico
No caso da produção dos códigos de leis, é inegável o fato de que essa codificação facilitou (pelo menos teoricamente) o acesso ao conhecimento jurídico por uma maior parcela da população, o que é de suma importância, apesar de que esses tipos de regras de 1º grau ou de 1ª instância são altamente voláteis, ou seja, mudam muito rápido. Daí dizemos que basta uma “canetada” de um legislador para transformar bibliotecas inteiras em lixo.
3.3 Legitimação da decisão jurídica
Outra justificativa para a codificação do direito repousa sobre a legitimação da decisão jurídica. Considerando que os fundamentos decisórios de um juiz estão inseridos no código, esse fato por si só já legitima a ação do juiz perante o caso concreto, dispensando-se a demonstração de legitimação. A lei do código é competente para validar objetivamente o arbítrio jurídico.
Tendo em vista que a norma codificada traz consigo princípios jurídicos fundamentais intrínsecos a ela, o juiz não pode fundamentar a sua decisão se pautando apenas por esses princípios, pois, em essência, o que está no código já contém esses princípios concretizados. Portanto, a legitimação de princípios jurídicos fundamentais possivelmente usados na fundamentação de um juiz se encontra na norma codificada. É esta que deve ser usada.
3.4 Positivação do direito
Marcelo Neves[14] coloca que:
“Apenas a partir da positivação do direito na sociedade moderna, diferenciam-se plenamente moralidade, eticidade e juridicidade. As normas jurídicas já não se fundamentam diretamente em princípios de natureza metajurídica, mas sim em princípios especificamente jurídicos”.
Segundo uma concepção filosófica retórica, o direito positivo seria o relato vencedor. Dentre as teorias em disputa para saber qual seria a teoria certa, apenas uma seria reconhecida como tal, sendo, por conseguinte, justa.
Nesse mister, faz-se necessário levantar a dicotomia direito natural versus direito positivo. Segundo Kelsen, o direito natural (ideologia) luta para ser positivado, ou seja, luta para se tornar um direito fundamental (exemplos: aborto, pena de morte, união homoafetiva). Há instrumentos para aferir essas escolhas: um direito natural pode ser positivado democraticamente (através do voto) ou por meio de uma ditatura, por exemplo. Lembrar que o direito positivo é o que prevalece, não sendo, necessariamente, o direito estatal (ex: o direito de “Pasárgada”[15]). Cabe lembrar também que o direito positivo (ou seja, o relato vencedor) não é estático e permanente, podendo, com o passar do tempo, outro relato ser considerado vencedor (devido a novas exigências históricas), sendo, por isso, positivado. Isso realça a ideia de que o direito é algo historicamente construído.
Tércio[16] defende que:
“Há um sentido filosófico e um sentido sociológico de positivação. No primeiro, positivação designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer um direito por força de um ato de vontade. Segue daí a tese segundo a qual todo e qualquer direito é fruto de atos dessa natureza, ou seja, o direito é um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas.
(...)
No sentido sociológico, positivação é um fenômeno que naquele século [século XIX] será representado pela crescente importância da lei votada pelos parlamentos como fonte do direito”.
4. O direito codificado enquanto vinculador
O papel do direito codificado diante da decisão jurídica dos casos concretos é ligar o juiz ao ordenamento jurídico estatal, fazendo com que essa decisão proferida pelo juiz só seja relevante a partir do momento em que ela tiver por base o próprio direito codificado.
Com base nisso, podemos dizer que a vinculação ao direito escrito tenta limitar a liberdade do juiz, no momento em que esse direito prescreve regras de atuação e decisão. Essa limitação pode se dar de duas maneiras: quanto à escolha dos argumentos e até quanto às possibilidades de decisão. Analisemos essa última questão.
Sob o prisma legalista, a única decisão correta é advinda estritamente da letra da lei, cabendo ao juiz apenas reproduzi-la fielmente.
Já os normativistas, tendo Hans Kelsen como maior expoente, defendem a teoria da moldura: as várias possibilidades que estão na lei são igualmente justas. Quem faz a escolha é o juiz, levando em consideração o sentido e o alcance dos textos, tudo de acordo com o procedimento ou rito. Em função de haver um relativo quórum de possibilidades, são múltiplas as respostas corretas, mas não todas, encontradas de maneira dedutiva. A lei é uma das formas de norma jurídica. “A norma jurídica passa a ser considerada gênero, do qual a lei é espécie”[17]; a norma é mais complexa do que uma simples lei. Sendo assim o juiz sempre cria direito.
Por fim, para os realistas, a lei é uma das formas de expressão da norma jurídica, pois também encontramos resoluções, portarias, jurisprudências, sentenças, etc. Ou seja, aqui já é reconhecida a atividade jurisprudencial como fonte do direito. “A lei é apenas um texto, um dado de entrada para a construção da norma diante do caso concreto”[18]. Sendo assim, cada caso é único e irrepetível. O decididor (não necessariamente um juiz) sempre cria o direito e com base nisso, qualquer decisão se torna possível, sendo esta encontrada indutivamente. “Não há decisão correta, há decisão efetiva, e não se pode exatamente saber se e como uma decisão vai produzir efeitos no mundo da retórica material; nem nesse sentido da previsibilidade há uma racionalidade”[19].
Percebe-se claramente que, com o passar das correntes juspositivistas, a vinculação vai ficando menos inexorável e mais maleável, o que lembra os tipos ideias de Max Weber. Num extremo temos o legalismo, no outro o realismo e entre eles o normativismo.
De uma maneira geral, é objetivada a vinculação do juiz a fim de que se possam fazer especulações acerca da decisão, ficando esta mais previsível, o que lembra o ideal da segurança jurídica.
5. Críticas à vinculação legalista
Como já foi colocado em passagens anteriores, não se pode querer restringir o trabalho de um juiz a simplesmente fazer com que a realidade da vida social, extremamente complexa, seja subsumida a textos normativos que não versam (e nunca poderão versar) sobre toda essa realidade. Isso decorre do fato de nossa mente ser generalista, contingente, não sendo compatível, portanto, com a especialidade real.
Em outras palavras, independentemente do quão o juiz for vinculado ao direito codificado, o seu ofício sempre será mais do que a tarefa de um mero repetidor do texto da lei.
Assim, abre-se espaço para aquilo que a codificação do direito tenta coibir: a possibilidade de jurisprudências diversas a respeito de casos afins. Se o juiz é livre para dizer o quanto ele vai se submeter à vinculação, é provável que existam diferentes pensamentos, condicionados pelos aspectos formadores de identidade em que ele está inserido: sociedade, cultura, economia, crenças religiosas, entre outros.
Assim sendo, podemos afirmar que não existe a ideia de uma jurisprudência uniforme, provinda essencialmente da lei.