Introdução
A mutabilidade do regime de bens pode ser considerada uma das matérias mais impactantes no Direito de Família dos últimos tempos, pois trouxe a possibilidade dos cônjuges exercerem a autonomia quanto aos pactos matrimoniais não somente antes, mas também após a celebração do casamento. Com isso o ordenamento brasileiro pôs fim à tradição de que as partes somente poderiam escolher o regime de bens antes de celebrado o casamento.
Já no processo de tramitação do que agora é o Código Civil (e mesmo antes dele pela inclusão da mutabilidade no Projeto do Código Civil de Orlando Gomes[1]), a matéria foi objeto de amplo debate no cenário nacional, estando na mira de muitas críticas, sendo inclusive considerada como um dispositivo que conspirava contra o casamento, porque colocaria em risco a segurança dos cônjuges.
Embora polêmica, a matéria ganhou força no Direito brasileiro em virtude da constatação de que os motivos que impediam sua viabilidade não se mostravam mais presentes. Não se podia mais falar em parte débil da relação matrimonial, em virtude do princípio da isonomia conjugal consagrado pela CF de 1988. E mesmo na vigência do CC de 1916, se vislumbrava que o regime da imutabilidade não era satisfatório porque ainda que a imutabilidade fosse uma regra, essa regra acabava sendo relativizada[2].
Assim, o Direito acompanhou a evolução social fazendo com que a mutabilidade do regime de bens se tornasse uma realidade no nosso ordenamento, seguindo a orientação já experimentada por outros países como França, Espanha, Bélgica, Itália, Holanda, Alemanha[3].
A mutabilidade do regime de bens não só foi autorizada como também passou a ser utilizada em larga escala no Direito brasileiro. Mesmo no período da vacatio legis do CC de 2002 se percebeu a ansiedade dos cônjuges em promoverem a alteração do regime de bens e o posicionamento judicial naquela oportunidade foi de que haveria a possibilidade de alteração do regime de bens, somente ficando condicionada ao término do período da vacatio legis[4].
No entanto, algumas dúvidas se colocaram a respeito da mutabilidade do regime de bens, em virtude das lacunas deixadas pelo art. 1639, § 2º do CC que não previu de forma expressa questões importantes como: 1) a viabilidade de propor a mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do CC de 1916; 2) os efeitos dessa mutabilidade (se seriam produzidos para o futuro ou se poderiam retroagir ao passado); e 3) se a mutabilidade poderia ser proposta nos casamentos celebrados pelo de regime da separação obrigatória.
Essas questões precisam ser resolvidas pela doutrina e da jurisprudência, já que a redação dada ao CC de 2002, afinada a idéia de cláusulas gerais, não teve a pretensão de responder a todas as dúvidas decorrentes de acomodação da nova legislação, assim, não tratou de forma exaustiva das soluções aos problemas referidos acima.
A ampla utilização da mutabilidade do regime de bens pela sociedade brasileira e as lacunas deixadas pela legislação às dúvidas propostas à aplicação do instituto demonstram a importância e atualidade do tema, escolhido para objeto deste artigo.
A. A possibilidade de mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do CC anterior
Em estudo mais aprofundado sobre a matéria, tivemos a oportunidade de demonstrar a viabilidade da mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do CC de 1916[5].
Esse estudo teve por objetivo demonstrar que embora o art. 2039 do Código Civil[6] tenha trazido uma regra concernente ao direito intertemporal, cuja finalidade é acomodar as situações jurídicas duvidosas em virtude do novo modelo de regime matrimonial de bens estabelecido pela legislação atual, tal dispositivo não poderia ser utilizado para propor soluções no que concerne à viabilidade ou não de se mudar regime de bens ao casamento celebrado na vigência do CC anterior.
O art. 2039 é direcionado ao exame das alterações na estrutura interna de cada um dos regimes de bens, evitando que tais alterações se apliquem aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, sob pena de ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, de vez que seria aplicado um regime completamente diverso do escolhido pelos cônjuges, por imposição legal, sem que as partes tivessem oportunidade de manifestar a sua vontade.
Ao invés de usar o art. 2039 para resolver os problemas relativos à matéria o art. 2035 do CC se mostra mais adequado tendo em vista que o casamento é um negócio jurídico de Direito de Família de prestação contínua. Assim, os atos e negócios jurídicos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 subordinam-se às regras da legislação revogada e os praticados na vigência do Código Civil se submetem à legislação atual.
Examinando a eficácia da lei no tempo Pontes de Miranda era contrário à aplicação de todas as regras da lei nova aos casamentos constituídos sob a vigência da lei anterior, ponderando que em alguns casos a lei nova poderia ser aplicada e em outros não. Para ele se a lei nova determinasse que certos bens seriam incomunicáveis, teria efeito imediato, pois a incomunicabilidade não tem a ver com o regime matrimonial e sim com a qualidade dos bens e a sua procedência. Também obedeceria a lei nova o exercício dos direitos ligados ao regime de bens (forma, prazos...)[7].
Ainda que Pontes de Miranda não fosse contemporâneo ao atual Código Civil e não tivesse feito referência expressa de que a aplicação imediata da nova lei se restringe às normas gerais dos regimes de bens (concernentes a todas as espécies de regimes de bens), as situações apontadas pelo doutrinador conduzem a essa conclusão. No que diz respeito às normas aplicáveis a cada regime de bens específico, aí a aplicação da nova lei se dá para os casamentos constituídos a partir dela[8].
Em estudo publicado a respeito da aplicabilidade dos efeitos do art. 2039, Heloisa Helena Barboza também tem defendido que as disposições gerais do Código Civil de 2002 relativas a regime de bens aplicam-se a todos os casamentos, inclusive aos que lhe são anteriores, e à disciplina específica dos regimes de bens, estabelecida pelo Código Civil de 1916, aplicam-se aos casamentos constituídos na vigência desta lei, para preservar os atos praticados durante sua vigência e reger as relações que são pertinentes entre os cônjuges[9].
Assim, o critério defendido é o da análise dos efeitos imediatos da nova lei para as regras gerais dos regimes de bens, e no que concerne às regras específicas, a aplicabilidade deve respeitar a data da constituição do casamento aplicando-se o regime, de acordo com a legislação vigente à data da celebração do casamento.
Para chegar a essa conclusão é necessário estabelecer a distinção entre efeito imediato e efeito retroativo da lei.
Para Pontes de Miranda efeito retroativo somente seria permitido no ordenamento brasileiro por força de lei expressa, já o efeito imediato dependeria do caso concreto[10].
A distinção entre efeito imediato e retroatividade pode ser feita através da percepção da estrutura da norma jurídica sob o ponto de vista da “conjugação das coordenadas temporais (passado, presente e futuro)”. O passado é o que ocorreu ao tempo da norma anterior, presente é o acontece no seu tempo de vigência, futuro é o que pode acontecer após ela ser substituída por outra norma[11].
Nesse sentido, ocorre retroatividade quando a parte descritiva da norma incidir sobre fatos ocorridos antes de sua vigência, quando alterar a conseqüência jurídica que a norma anterior atribuía à fattispecie passada; imediatidade se for se referir a fatos ocorridos na vigência da norma; e pós-atividade se incidir para fatos ocorridos depois de extinta a vigência da norma, já que a norma vai estabelecer os efeitos jurídicos a serem produzidos por fattispecies que só se completarão no domínio temporal de norma posterior[12].
Em regra se opera a eficácia imediata da nova lei, e somente em casos excepcionais, “por considerações de justiça, de eqüidade ou de oportunidade política”, é que irá se negar essa eficácia[13].
A doutrina tem admitido a eficácia retroativa da lei, e dependendo do caso concreto, pode-se violar o direito adquirido, para que sejam observados os princípios constitucionais, o que “ocorreu no Brasil com a promulgação da Lei Áurea que, diante de um valor maior, sobrepujou o direito adquirido à propriedade escravagista”[14].
Esse exemplo é importante para avaliar a possibilidade de eficácia imediata da lei em algumas circunstâncias que causam certa inquietude em virtude do Código Civil, como a mutabilidade do regime de bens.
Comparando com o exemplo visto acima (abolição da escravatura e direito de propriedade), nem mesmo se pode falar em ofensa ao direito adquirido, pela aceitação da mutabilidade do regime de bens, aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, pois não se trata de imposição legal, como se viu no exemplo descrito, já que no caso da mutabilidade o instituto exige a conjugação da vontade de ambos os cônjuges.
Em vista disso, pode-se chegar à conclusão de que se o ordenamento autoriza a aplicação da lei imediata em algumas circunstâncias ofendendo o direito adquirido, com mais razão ainda, deve se autorizar o entendimento de aplicação imediata da lei nos casos que dependam de manifestação da vontade das partes envolvidas para que ocorra a incidência de instituto trazido pela nova lei, sem prejuízo dos direitos de terceiros, como é o caso da mutabilidade dos regimes de bens.
A esse respeito merece ser destacado que o “novo Código Civil abriga mudanças significativas quanto ao seu conteúdo”, ao contrário do Código Civil de 1916, que era fundado “no liberalismo clássico individualista, agrícola e patriarcal, adota uma nova concepção do papel do Direito Privado, fundada em ordem constitucional igualitária, ética e socialmente preocupada com a construção de uma sociedade pluralista e com a justiça social”[15].
Em virtude do modelo da nova legislação, calcado na Constituição Federal, representando a defesa dos direitos e interesses fundamentais, é necessário lançar a defesa da aplicação imediata do Código Civil de 2002 no que diz respeito à mutabilidade de regime de bens, pois foi instituto incluído na legislação civil, tendo em vista a necessidade de atribuir autonomia negocial aos cônjuges tanto na escolha do regime de bens, como na sua alteração posterior, em virtude do princípio da isonomia conjugal, que além de ser trazido pela Constituição Federal, hoje é uma realidade social.
Em resumo: não há direito adquirido contra o texto da Constituição Federal, e, por isso, sendo o atual Código Civil uma lei realizadora do princípio da isonomia conjugal positivado no art. 226 da Constituição Federal, não se pode falar em ofensa de direito adquirido ou do ato jurídico perfeito, pela aplicação da mutabilidade do regime de bens.
Essa posição é adotada também por Luiz Felipe Brasil Santos que defende a possibilidade de mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do Código anterior e alerta que a disposição constante do art. 2039 do Código Civil não impede a mudança do regime de bens para os casamentos celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002. Tal regra somente impede que alguns dispositivos que alteraram alguns pontos dos regimes de bens que já estavam previstos no Código Civil sejam aplicadas aos regimes anteriores[16].
Sérgio Gischkow Pereira defende que é possível aplicar a mutabilidade do regime de bens para os casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916. Refere como argumento de seu posicionamento as lições de Faggella que defendia o efeito imediato das leis que estabelecem a mutabilidade ou imutabilidade das convenções matrimoniais, assim: se o ordenamento autorizava a escolha do regime de bens aplicável, não existiria razão de impedir a mutabilidade do regime de bens que a lei nova consagra; se a lei nova impede a mutabilidade que era consagrada os regimes de bens não poderão ser alterados[17].
Além disso, o autor pondera que no Direito de Família existe uma característica importante que é o aspecto afetivo ou amoroso. No seu entendimento a mutabilidade estaria mais adequada com a realidade da vida afetiva dos cônjuges, e por esse motivo, deveria ser acatada a mudança do regime, se fosse a vontade dos cônjuges.
Heloisa Helena Barboza também defende que a alteração do regime de bens se aplica a qualquer casamento, seja celebrado na vigência do Código Civil de 1916 ou do Código Civil atual, em virtude do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina o efeito imediato da lei[18].
Ronaldo Martins defende a possibilidade de mutabilidade do regime de bens do casamento contraído na vigência do Código Civil de 1916, desde que a modificação não abranja bens adquiridos antes da alteração se houver possibilidade do interesse de terceiros[19].
O autor não só defende que a alteração do regime de bens poderia alcançar casamento celebrado na vigência do Código Civil de 1916, mas também, que os efeitos poderiam ser retroativos, desde que não prejudicassem terceiros.
Para chegar a essa conclusão o autor defende que o art. 2039 estaria destinado a tratar sobre a aplicabilidade das normas relacionadas ao regime de bens tendo em conta a aplicação da lei no tempo, já que o Código Civil atual trouxe um novo regime (participação final dos aquestos) e extinguiu outro (regime dotal)[20].
Por isso Ronaldo Martins defende que o art. 2039 não seria o dispositivo adequado a tratar do exame da possibilidade de aplicação da mutabilidade dos regimes de bens aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil. Em sua opinião, o dispositivo legal adequado a resolver essa questão seria o art. 2035 do Código Civil. Para ele a aplicabilidade da mutabilidade aos casamentos celebrados durante a lei revogada, é autorizada pela leitura da parte final do artigo que dispõe que os efeitos dos negócios jurídicos constituídos na vigência do Código Civil de 1916, mas que foram produzidos após a vigência do Código Civil de 2002, se subordinam à lei nova. Conclui referindo que a imutabilidade do regime de bens é efeito do casamento, e por isso se subordina à segunda parte do art. 2035.
Seguindo o raciocínio do autor chega-se à conclusão de que uma vez que o Código Civil de 2002 permite que os regimes de bens possam ser alterados, e isso é efeito do casamento, esses efeitos obedeceriam à lei nova, logo os celebrados na vigência do Código Civil de 1916 poderiam ser alterados.
A posição do autor era inédita na época em que se iniciou a discussão a respeito da aplicação ou não da mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do Código anterior, pois a doutrina em sua maioria se preocupava em questionar a possibilidade de alteração dos regimes de bens, com base no exame do art. 2039, que acaba não sendo adequado para resolver o assunto.
Posteriormente essa posição foi consolidada pela doutrina atual como pode se perceber pela recente obra publicada por Paulo Lôbo que defende a possibilidade de alteração do regime de bens aos casamentos celebrados na constância do Código de 1916 está respaldada pelo art. 2035. Para ele, permanece intocada a validade dos atos que foram constituídos segundo a lei antiga, e submete-se a sua eficácia futura à nova lei, de acordo com o art. 2035. Assim, ‘qualquer regime de bens decorrente de casamento celebrado antes da entrada em vigor do Código de 2002 pode ser objeto de alteração”[21].
A solução ponderada na doutrina também foi adotada pela jurisprudência e a respeito do tema é interessante referir decisão proferida em 02 de outubro de 2002, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que enfrentou uma situação em que os cônjuges pleiteavam a alteração do regime de bens, indeferindo o pedido em virtude do princípio da imutabilidade previsto no art. 230 do Código Civil de 1916, acrescentando que “na vigência do atual Código Civil ostenta-se juridicamente impossível pretensão modificativa do regime matrimonial de bens”[22].
Tal decisão é interessante para o tema tratado aqui, pois já no período da vacatio legis, quando provocado a se manifestar a respeito da matéria, o Relator Luiz Felipe Brasil Santos, fez questão de asseverar no corpo da decisão que “a previsão contida no novo Código Civil (art. 1639, § 2º) no sentido de possibilitar a alteração do regime de bens do casamento somente poderá ser invocada quando vigente tal ordenamento, o que, então, possibilitará, é certo, a renovação do pedido”.
Ora, se a decisão proferida autoriza a renovação do pedido, para alterar o regime de bens, conduz ao entendimento de que no caso concreto o único entrave ao deferimento do pedido era a vacatio legis, considerando perfeitamente plausível e autorizada a mutabilidade, mesmo para os casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916.
Essa decisão acenou qual seria o posicionamento do Tribunal gaúcho, que em decisões posteriores[23] entendeu possível a alteração do regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, ponderando que a regra do art. 2039 do Código Civil de 2002 não impedia a aplicação do art. 1639, §2º aos casamentos celebrados no ordenamento revogado.
Para o Tribunal gaúcho a norma do art. 2039 simplesmente estabeleceu que as alterações previstas pontualmente nos regimes de bens não alcançariam os casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, e nesse passo, os cônjuges teriam a segurança de não ser surpreendidos por regras que não tinham sido previstas na época da celebração do casamento, nada impedindo, que se quisessem, de mútuo acordo, alterar o regime de bens, o fizessem.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também passou a autorizar a alteração do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, sob o argumento de que “o exercício dessa faculdade por cônjuges casados antes de 11.01.2003 não viola o ato jurídico perfeito e direito adquirido, visto que a alteração judicial subordina-se a requerimento conjunto e motivado do casal, ressalvados os direitos de terceiros”.[24]
As decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais defendem que “a atual disposição que cuida da mutabilidade do regime de bens no art. 1639, §2º é norma cogente editada na esteira da evolução da própria vida social, assim como em 1977 o divórcio foi promulgado com o mesmo propósito e ninguém poderia afirmar que a dissolução da sociedade conjugal só estaria ao alcance daqueles que se casassem após a vigência da lei divorcista”.[25]
Além disso, merece ser referido o conteúdo de decisão posterior, que teve idêntica ementa, mas ponderou também o argumento expressado pelo Desembargador Edgard Penna Amorim, que citando Rolf Madaleno ressalta que em virtude da igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada constitucionalmente, seria estranho atribuir condição de fragilidade e ingenuidade a um dos cônjuges. Por isso, considera desaconselhável a manutenção da imutabilidade, já que homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem a respeito da mudança do regime de bens[26].
As decisões examinadas demonstram que existe um posicionamento praticamente unânime na jurisprudência nacional (seja nos Tribunais Estaduais ou no Superior Tribunal de Justiça) em aceitar a alteração do regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916.
Dentre os argumentos apresentados nas decisões verifica-se que existe um ponto em comum: todas as decisões demonstram que em virtude das formalidades exigidas, para que se proceda a alteração do regime de bens (pedido motivado de ambos os cônjuges, ressalva de direitos de terceiros e intervenção judicial), não há motivos plausíveis para impedir a alteração do regime nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil revogado, pois não se poderia falar em prejuízo ou ameaça a direitos de terceiros, ou mesmo dos cônjuges, que teriam condições de manifestar a sua vontade perante o Juiz.
É necessário salientar que a aceitação da mutabilidade de regime de bens, para os casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916, poderá refletir no uso do instituto para outros fins, que não sejam apenas a escolha de outro regime de bens.
Nesse sentido, é possível não só a opção dos cônjuges por um regime de bens completamente distinto do escolhido antes do Código Civil de 2002, mas também que as partes optem para aplicação das alterações pontuais, trazidas pela nova legislação aos casamentos celebrados na vigência da legislação revogada.
Ainda merece ser destacado que o entendimento de que o art. 1639, § 2º se aplica também aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 decorre da interpretação idêntica ao que se deu com a introdução no Direito brasileiro do instituto do divórcio, com a Lei 6515/77. Embora somente a partir de 1977 fosse autorizada a dissolução do casamento pelo divórcio (com a Emenda Constitucional n. 9 com Lei do Divórcio), havia o entendimento de que essa forma de dissolução poderia se aplicar aos casamentos celebrados antes da lei.
Na análise dessa situação Silmara Juny Chinelato lembra que não houve polêmica na época a respeito da possibilidade de aplicar a dissolução dos casamentos celebrados antes da Lei do Divórcio, pelo fato de que no que diz respeito às “regras relativas ao regime primário de bens, regras aplicáveis a todos eles, têm eficácia imediata”[27].
Assim, o posicionamento jurisprudencial é de que o art. 2039 do Código Civil estabelece regras de acomodação em relação à aplicação da nova legislação, não impedindo a alteração dos regimes de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916[28].
Esse posicionamento depois foi repetido pelo Superior Tribunal de Justiça, que desde 2005 tem defendido a possibilidade de alteração do regime de bens mesmo para os casamentos celebrados na vigência do Código de 1916[29].
Além do posicionamento jurisprudencial acima, pode ser utilizado como fundamento autorizador da mutabilidade do regime de bens aos casamentos celebrados na vigência do Código de 1916, o enunciado 260, que interpretando os Artigos 1.639, § 2º, e 2.039 do Código de 2002 dispõe: “A alteração do regime de bens prevista no § 2o do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior.”[30]
Com isso, a mutabilidade do regime de bens, mesmo para os casamentos celebrados na vigência do CC de 1916 passou a ser uma realidade.