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A contratação de trabalhadores no âmbito da administração pública sem prévia aprovação em concurso público

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24/08/2012 às 07:56
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5. A compensação do trabalhador, nos termos do art. 182 do Código Civil, como forma de valorização dos direitos trabalhistas.

Em face do tudo o que até agora foi exposto, não restam dúvidas de que sonegar ao trabalhador o pagamento da integralidade dos seus direitos em decorrência da declaração de nulidade do contrato de trabalho não é a melhor solução, seja para a defesa do interesse público, seja para a compatibilização desse interesse com a proteção constitucional do trabalho. Dito isso, surge o seguinte questionamento: como garantir ao trabalhador contratado sem aprovação em concurso os seus direitos trabalhistas, sem negar vigência à norma inscrita no art. 37, § 2.º, da Constituição Federal, que prevê a nulidade absoluta da contratação com os necessários efeitos ex tunc?

A busca pela resposta a essa pergunta não se mostra tão angustiante quanto pode parecer. A aparente antinomia entre a citada norma constitucional e a imposição, também constitucional, de proteção aos direitos dos trabalhadores, tem por causa a solução que, em regra, os doutrinadores oferecem para a questão dos efeitos da contratação irregular por ente público, fundada numa pretensa teoria trabalhista das nulidades, dissociada das teorias civilista e administrativista.

Pela citada teoria trabalhista, a nulidade contratual no direito do trabalho opera efeitos ex nunc, ou seja, não retroativos, na medida em que, por não ser possível restituir ao empregado a força de trabalho por ele despendida, torna-se inviável extirpar da realidade, retroativamente, todos os efeitos já produzidos em decorrência do contrato de trabalho inválido. Nesse sentido, a doutrina do Professor Maurício Godinho Delgado:

“Vigora, pois no tronco jurídico geral do Direito Comum a regra da retroação da decretação da nulidade, o critério do efeito ex tunc da decretação judicial da nulidade percebida. O Direito do Trabalho é distinto, nesse aspecto. Aqui vigora, em contrapartida, como regra geral, o critério da irretroação da nulidade decretada, a regra do efeito ex nunc da decretação judicial da nulidade percebida. Verificada a nulidade comprometedora do conjunto do contrato, este, apenas a partir de então, é que deverá ser suprimido do mundo sociojurídico; respeita-se, portanto, a situação fático-jurídica já vivenciada. Segundo a diretriz trabalhista, o contrato tido como nulo ensejará todos os efeitos jurídicos até o instante da decretação da nulidade – que terá, desse modo, o condão apenas de inviabilizar a produção de novas repercussões jurídicas, em face da anulação do pacto viciado.” (2010, p. 485)

No tocante à questão em foco, atinente à contratação irregular no âmbito da administração pública, a aplicação desse entendimento, no sentido de que as nulidades, ainda que absolutas, no direito do trabalho, operam tão somente efeitos ex nunc, parece efetivamente ofender a norma inscrita no art. 37, § 2.º, da Constituição Federal, na medida em que tem como efeito negar a plena aplicação da nulidade prevista na norma inscrita nesse dispositivo. Todavia, a garantia dos direitos dos trabalhadores em face da declaração de nulidade do vínculo prescinde de uma teoria trabalhista independente, pela qual a nulidade operaria efeitos ex nunc.

O direito comum, por meio das normas inscritas nos arts. 182 e 884 do Código Civil, já trata adequadamente da questão atinente à impossibilidade de restituição das partes contratantes à situação anterior à celebração do negócio inválido. Determina o citado art. 182 que “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. Já o art. 884 determina que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.

Do art. 182 do Código Civil decorre que, sendo inválido o vínculo de emprego em razão da ausência de prévia aprovação em concurso, a nulidade deve ser declarada desde a celebração do contrato de trabalho, ou seja, com efeitos ex tunc. No entanto, não sendo possível restituir o trabalhador ao estado em que se achava antes da celebração do contrato, uma vez que é impossível devolver-lhe, em espécie, a força já despendida no labor, deve ele ser indenizado pelo valor equivalente ao trabalho prestado, seja para dar cumprimento à parte final do citado art. 182, seja evitar que a administração lucuplete-se indevidamente, o que é vedado pelo art. 884 em referência.

Não se trata, portanto, de declarar a nulidade do vínculo de emprego com efeitos ex nunc, conforme prega a teoria trabalhista, com pagamento ao trabalhador de todas as verbas que são devidas em decorrência do vínculo de emprego. O que ocorre, na verdade, é a declaração ex tunc, com a integral compensação do trabalhador, mediante pagamento de indenização pela força de trabalho fornecida em prol do empregador. Saliente-se que o entendimento ora exposto alinha-se com a doutrina de Ari Pedro Lorenzetti, segundo a qual:

Tecnicamente, portanto, é equivocada a afirmação de que as nulidades, no Direito do Trabalho, têm efeito ex nunc. O que ocorre é que a prestação laboral já executada não pode ser devolvida in natura, e, por isso, deve ser convertida em indenização (CC, art. 182). E essa reparação deve ser integral, segundo o princípio da restitutio in integrum, conferindo ao trabalhador reparação equivalente a todos os direitos resultantes do trabalho prestado, como se tivesse ocorrido no âmbito de um contrato válido. Assim, é “como se” as invalidades, no Direito do Trabalho, gerassem efeitos ex nunc, mas não é isso o que, efetivamente, ocorre. (2008, p. 383)

Muito embora os efeitos práticos da declaração ex nunc e da declaração ex tunc com indenização do trabalhador sejam os mesmos, o enquadramento jurídico é absolutamente distinto, de modo que, com a aplicação da teoria civilista, dá-se total cumprimento, ao mesmo tempo, à norma inscrita no art.  37, § 2.º, da Constituição Federal, na medida em que a nulidade é irrestritamente declarada com efeitos ex tunc, e à valorização social do trabalho, porquanto garante-se a plena compensação do trabalhador pelo labor prestado.


6. A fixação do valor do trabalho para fins da indenização prevista no art. 182 do Código Civil.

Fixado o direito do trabalhador à compensação pelo trabalho prestado durante a relação de emprego declarada nula, resta saber qual o efetivo valor do labor despendido, para fins de compensação. Nesse ponto, é importante frisar que o Tribunal Superior do Trabalho, não obstante tenha se mostrado rigoroso nos fundamentos que embasaram seu entendimento sobre os efeitos da contratação irregular de trabalhadores pela administração pública, não passou totalmente ao largo da norma inscrita no art. 182 do Código Civil, ao qual correspondia o art. 158 do Código Civil de 1916. É o que se extrai do seguinte precedente, também paradigmático para a edição da Súmula n.º 363 daquela Corte Superior:

[...] filio-me à tese de que é devido o pagamento de salários pelo período laborado. Isto porque, em se tratando de relação laboral, é impossível, pelo reconhecimento da nulidade do contrato de trabalho, o retorno das partes ao status quo ante, já que é fisicamente impossível ao tomador de serviços retomar ao laborista a força de trabalho por ele despendido. Portanto, tal força de trabalho há que ser, assim, indenizada, conforme dispõe o art. 158 do CCB, e o parâmetro único que se possui é, sem dúvida, o salário, que deve ser pago à recorrida, compensando-se o que ela efetivamente recebeu. (E-RR-146430/1994, Relator Ministro Vantuil Abdala, DJ de 3/4/1998)

Merece análise crítica, todavia, o que a Corte Superior Trabalhista entendeu como valor do trabalho prestado para fins de compensação. Do excerto transcrito, verifica-se que foi considerado, tão somente, o salário devido ao empregado. Esse entendimento encontra-se, até os dias de hoje, consolidado na Súmula n.º 363, em sua parte final, ao estipular que ao trabalhador é devido apenas “o pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.

Importante ressaltar que, conforme já exposto linhas acima, o direito aos depósitos do FGTS somente foi reconhecido, tempos depois, pelo TST, mediante alteração do citado verbete sumular, em razão de previsão legal expressa, inscrita no art. 19-A da Lei n.º 8.036/90, incluído pela Medida Provisória nº 2.164-41 de 2001, segundo o qual “É devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário”.

No entanto, a toda evidência, o valor do salário, por si só, não é suficiente para remunerar o trabalhador pelos serviços prestados durante a vigência da relação de trabalho declarada nula. O valor do trabalho, em uma relação de emprego, corresponde exatamente àquele estipulado pela lei ou por normas coletivas como contraprestação ao labor fornecido, abrangendo a totalidade das verbas trabalhistas que são devidas ao trabalhador, a exemplo do adicional de horas extras, terço constitucional de férias, décimo terceiro salário e adicional de periculosidade, e não apenas ao salário stricto sensu.

Somente se poderia admitir que o trabalho prestado fosse remunerado apenas com o salário pactuado caso se considerasse que a nulidade da contratação tivesse por consequência descaracterizar o vínculo de emprego, transmudando-o em uma relação jurídica distinta, a exemplo do contrato de prestação de serviços de natureza civil, prevista nos arts. 593 e seguintes do Código Civil. Essa sim, diferentemente da relação de emprego, tem como única contraprestação devida ao prestador o valor da remuneração pactuada, sem ser acrescida de nenhuma outra parcela prevista em normas de natureza cogente.

Contudo, a ausência de prévia aprovação em concurso público é vício que opera efeitos no âmbito da invalidade da relação de emprego, ensejando a declaração de nulidade. Não influencia, portanto, no âmbito da existência da relação em si. Por conseguinte, reunidos, durante a vigência da contratação, os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício, previstos nos arts. 2.º e 3.º, da CLT, a declaração de nulidade posterior não gera efeitos quanto à existência da relação empregatícia, que continua caracterizada como tal, não se transformando em relação jurídica distinta.

Tal é o que decorre, ainda, do princípio da primazia da realidade, vigente no direito do trabalho, pelo qual o enquadramento jurídico das relações trabalhistas deve ser realizada mais por sua substância do que pela forma de que se revestem ou devem se revestir. Por conseguinte, se materialmente a prestação de serviços caracteriza-se como relação de emprego, porque preenchidos os citados requisitos dos arts. 2.º e 3.º da CLT, impõe-se o reconhecimento do vínculo empregatício, e não de relação jurídica distinta, ainda que preterida alguma formalidade prevista em lei para a celebração do pacto laboral, a exemplo daquela inscrita no art. 37, II, da Constituição Federal.

E em se tratando de relação empregatícia, como tal deve remunerada, correspondendo o valor do trabalho à totalidade das verbas trabalhistas previstas na lei ou em normas coletivas. Concluir de modo diverso, no sentido de que na relação de emprego o valor do trabalho corresponde tão somente ao salário, seria o mesmo que entender que as demais verbas trabalhistas são devidas ao trabalhador por mera benesse, sem constituir contraprestação pelo labor despenhado. Não é essa, contudo, a realidade.

A relação de emprego, quando comparada com as demais relações de trabalho, apresenta peculiaridades, como a existência de subordinação e o não auferimento de lucros pelo trabalhador em razão da atividade desenvolvida. São justamente essas peculiaridades que justificam a remuneração diferenciada, com o pagamento de certas verbas, além do simples salário, previstas em normas cogentes da legislação trabalhista. Assim, se todas essas verbas são ínsitas à comutatividade do trabalho prestado na relação de emprego, somente se pode concluir que o valor do trabalho a ser restituído ao trabalhador na hipótese de declaração de nulidade da contratação não deve restringir-se ao valor do salário.

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Nesse sentido, insta trazer à colação fragmento da doutrina de Jorge Luiz Souto Maior, in  verbis:

[...] é verdadeiramente inconcebível que se afirme que apenas o pagamento dos salários pelos dias trabalhados possa, em concreto, indenizar o servidor pela força despendida em favor do Poder Público. As garantias trabalhistas são muito mais abrangentes do que o salário stricto sensu, e não se destinam unicamente a remunerar o trabalho prestado, mas, sobretudo proteger a integridade física e mental da pessoa humana que presta serviços a alguém de forma subordinada. (2008, p. 86-87)

Não se pode perder de vista, contudo, que o pagamento das verbas trabalhistas ao irregularmente contratado tem como objetivo o ressarcimento, pelo equivalente, da força de trabalho despendida no curso do pacto, na esteira do art. 182 da CLT. Portanto, somente as verbas que tenham por fato gerador o trabalho em si é que devem ser objeto da indenização. Aí não estão incluídas as verbas rescisórias, a exemplo da indenização de quarenta por cento sobre o FGTS e o aviso prévio, que têm por fato gerador não a prestação dos serviços, mas a dispensa sem justa causa. Estas últimas verbas não são devidas na hipótese de declaração da nulidade do vínculo de emprego, porque a contratação não chegou ao fim em razão da despedida injustificada, mas porque constatada a sua invalidade.

Conclusão semelhante é a que apresenta Maurício Godinho Delgado, para quem, declarada a nulidade em razão da ausência de concurso público, “manter-se-iam como devidas todas as verbas contratuais trabalhistas ao longo da prestação laboral, negando-se, porém o direito a verbas rescisória próprias à dispensa injusta (aviso-prévio, 40% sobre FGTS e seguro desemprego), dado que o pacto terá (ou teria) sido anulado de ofício (extinção por nulidade e não por dispensa injusta).” (2010, p. 488)


7. Conclusão

Em face de todo o exposto, conclui-se que a melhor maneira de compatibilizar o interesse público com a valorização dos direitos trabalhistas na hipótese de contratação de empregado pela administração sem prévia submissão a concurso público é a declaração de nulidade do contrato, com efeitos ex tunc, garantindo-se ao trabalhador, todavia, o pagamento de indenização pela força de trabalho despendida, na forma do art. 182 do Código Civil, em valor correspondente à integralidade das verbas trabalhistas que lhe são devidas.


Referências Bibliográficas:

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2005.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9. ed., São Paulo: Editora LTr, 2010.

FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004.

LORENZETTI, Ari Pedro. As Nulidades no Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2008.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de Direito do Trabalho. v. 2. São Paulo: Editora LTr, 2008.


Notas

[1] Tal afirmação não é aplicável àqueles trabalhadores que agem de má-fé ao contratarem com a administração pública sem submeter-se previamente a concurso público, visando deliberadamente à prática de condutas fraudulentas e à lesão do erário. Nesse sentido, é pertinente a diferenciação oferecida por Jorge Luiz Souto Maior acerca dos efeitos da declaração de nulidade do contrato de trabalho nas hipóteses em que os trabalhadores atuam de boa-fé e naquelas em que agem de má-fé (2008, p.84).

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Sobre o autor
Inácio André de Oliveira

Graduado pelo Centro Universitário do Triângulo. Assessor de Ministro no Tribunal Superior do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Inácio André. A contratação de trabalhadores no âmbito da administração pública sem prévia aprovação em concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3341, 24 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22483. Acesso em: 28 mar. 2024.

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