Sumário: 1. Introdução. 2. Concurso público: solenidade essencial à contratação de trabalhadores no âmbito da administração pública. 3. O concurso público como instrumento de defesa do interesse público. 4. A necessidade de compatibilizar a defesa do interesse público com a proteção dos direitos dos trabalhadores. 5. A compensação do trabalhador, nos termos do art. 182 do Código Civil, como forma de valorização dos direitos trabalhistas. 6. A fixação do valor do trabalho para fins da indenização prevista no art. 182 do Código Civil. 7. Conclusão.
1. Introdução
De um lado, os altos custos e a morosidade que devem ser suportados pela administração na regular realização de uma seleção de trabalhadores por meio de concurso público, associada a frequentes agressões intencionais dos administradores à moralidade administrativa. De outro lado, o empobrecimento da classe operária e a escassez dos postos de trabalho.
Buscando fazer frente a essas circunstâncias, os administradores abrem mão da realização de concurso público para contratação de trabalhadores e, em contrapartida, os trabalhadores não vêem outra saída, senão submeter-se a vínculo de emprego sabidamente irregular. Daí advém, sem grandes mistérios, o notório aumento do número de contratações irregulares na administração pública.
Pressionados pelo agravamento desse quadro, os Tribunais trabalhistas pátrios, notadamente o Tribunal Superior do Trabalho, buscaram proteger, em primeiro lugar, o interesse público envolvido. A consequência foi a edição da Súmula n.º 363 da Corte Superior Trabalhista que, como efeito da contratação irregular, garante aos trabalhadores fração irrisória dos seus direitos.
Nesse contexto, o presente estudo visa a analisar criticamente a questão atinente aos efeitos da nulidade do contrato de trabalho em razão da contratação irregular de empregados públicos, buscando dar a essa controvérsia a solução, juridicamente plausível, que melhor compatibilize a defesa do interesse público e da moralidade administrativa e a proteção aos direitos trabalhistas.
2. Concurso público: solenidade essencial à contratação de trabalhadores no âmbito da administração pública.
Em que pesem as discussões acerca da autonomia científica do direito do trabalho em relação ao direito comum, não se pode ignorar que aquele primeiro ramo das ciências jurídicas derivou deste último, especializando-se com vistas a fazer frente às características peculiares das relações de emprego, notadamente a hipossuficiência do trabalhador em face do empregador. Exatamente em razão dessa origem comum é que os institutos do direito civil mostram-se essenciais à compreensão do direito do trabalho, desde que, é claro, compatíveis com a natureza protetiva do ramo juslaboral. Nesse sentido, o art. 8.º, parágrafo único, da CLT determina expressamente que “O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.”.
Nesse contexto, para o estudo da relação de emprego, notadamente das nulidades a ela atinentes, é importante o recurso aos ensinamentos doutrinários e ao arcabouço normativo do direito civil que trata da nulidade dos negócios jurídicos em geral. Em regra, a ordem normativa estabelece a nulidade de um determinado negócio jurídico quando este é celebrado em desrespeito a uma norma de ordem pública, de conteúdo cogente. Nesse sentido, leciona Caio Mário da Silva Pereira que na construção da teoria da nulidade, o legislador inspirou-se “no princípio do respeito à ordem pública, assentando as regras definidoras da nulidade na infração de leis que têm este caráter" (2005, p. 632).
Com efeito, especialmente para o estudo do tema ora proposto, mostra-se de particular importância a norma inscrita no art. 166, V, do Código Civil, segundo a qual “É nulo o negócio jurídico quando: [...] for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade”. Entende-se como solenidade, para os fins do dispositivo em foco, a prática de determinados atos previstos em lei como requisito à celebração de um negócio jurídico. Nos dizeres de Caio Mário da Silva Pereira, “é o conjunto de requisitos materiais ou extrínsecos, de que a lei entenda deva o ato negocial se revestir para ter eficácia ou para ser apurada a sua existência” (2005, p. 488).
É certo que a imposição de solenidade como requisito de um determinado negócio torna mais morosa e complexa a sua celebração. Por tal motivo, com vistas a responder ao dinamismo e à celeridade das relações sociais e econômicas contemporâneas, frequentemente fundadas na celebração de negócios jurídicos, o legislador tende a simplificar e facilitar as negociações, extirpando do ordenamento jurídico solenidades desnecessárias. É o que se verifica quanto à relação de emprego que, em regra, não exige forma especial para seu nascimento. A propósito, a CLT, em seu art. 443, enuncia expressamente que “O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito e por prazo determinado ou indeterminado”.
No entanto, ainda nos dias atuais, subsiste a imposição de certas formalidades nos casos em que o negócio jurídico trata de interesses que, em razão de sua importância social, reclamam maior segurança e proteção da ordem normativa. De acordo com o magistério de Ari Pedro Lorenzetti, “é a especial relevância jurídica do ato ou o grau de sua repercussão social ou na esfera das pessoas envolvidas que leva o legislador a submetê-lo a formalidades específicas, revestindo-o, assim, de maior solenidade, a fim de evitar, o quanto possível, as dúvidas a respeito” (2008, p. 217-218).
Tal é o que ocorre, no âmbito do direito do trabalho, quanto à celebração do vínculo de emprego com os entes da administração pública. O art. 37, II, da Constituição Federal, determina que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. A prévia aprovação em processo seletivo, na modalidade concurso público, configura, a toda evidência, solenidade imposta como requisito para a celebração do vínculo de emprego com a administração pública.
3. O concurso público como instrumento de defesa do interesse público.
A submissão a concurso público é formalidade que visa a garantir que a escolha daqueles que contribuirão com sua força de trabalho para o desempenho das atividades exercidas pela administração pública ocorra em respeito à igualdade, à moralidade, à impessoalidade e à eficiência, princípios fundamentais da ordem jurídica pátria e, especialmente, da ordem jurídica administrativa, positivados nos arts. 5.º, caput, e 37, caput, da Constituição Federal.
Garante-se a igualdade porque o concurso oferece a todos os interessados igualdade de condições, conforme suas aptidões, no acesso aos empregos públicos. Efetiva-se a moralidade e a impessoalidade porque a submissão ao certame, estribado em critérios objetivos de escolha, dificulta a contratação de empregados com base em parâmetros de favorecimento pessoal por parte dos administradores. E, por fim, privilegia-se a eficiência porque a seleção pautada na natureza e complexidade do emprego pretendido garante, em tese, a contratação daqueles que se mostrarem mais capacitados. A esse respeito, oportuna a transcrição da doutrina de Edimur Ferreira de Faria:
A exigência de prévia aprovação em concurso público, como condição para o ingresso no serviço público, é medida salutar e democrática. O concurso público enseja a possibilidade de todos os brasileiros interessados concorrerem a vagas para o preenchimento de cargos, funções e empregos públicos, atendidas as exigência legais. Além de dar ao cidadão a oportunidade de concorrer a uma vaga, a Administração tem, em decorrência, a oportunidade de recrutar, em princípio, os melhores servidores sem se valer de critério subjetivos. [...]
Além da vantagem dita acima, o concurso público inibe a possibilidade de o administrador público recrutar servidores, segundo critérios políticos de apadrinhamento ou de favorecimento, sem avaliar a aptidão do escolhido, deixando à margem a ética, a honestidade e a moralidade pública. (2004, p. 85-86)
E em se tratando de formalidade que a Constituição Federal erigiu como requisito essencial à validade do negócio jurídico atinente ao contrato de emprego com à administração pública, a sua preterição, por óbvio, implica na nulidade da contratação, como consequência da aplicação da norma inscrita no art. 166, V, do Código Civil, dispositivo que já encontrava correspondência no art. 145, IV, do Código Civil de 1916. Mesmo assim, enfatizando ainda mais o caráter cogente da norma que impõe a citada solenidade, bem como a sanção que decorre da sua violação, o legislador constituinte inseriu no art. 37 da Constituição da República o § 2.º, de acordo com o qual “A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei”.
Não há dúvida, portanto, de que a ausência de prévia aprovação em concurso público dá margem à nulidade do vínculo de emprego formado com a administração pública, seja em decorrência da norma inscrita no Código Civil, seja em decorrência de previsão constitucional expressa. E tratando-se de vício que macula a validade do negócio jurídico em questão, qual seja, o contrato de trabalho, desde o seu nascedouro, consequência lógica é que a declaração de nulidade opera efeitos ex tunc, ou seja, desde a celebração do ato, de modo que, em tese, dele não pode decorrer efeito algum. É o que se extrai da primeira parte do art. 182 do Código Civil, segundo a qual “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam”.
Exatamente com base nesse entendimento, o Tribunal Superior do Trabalho firmou sua jurisprudência sobre a contratação de empregado público sem prévia aprovação em concurso, hoje consolidada na Súmula n.º 363, de acordo com a qual “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.” Com vistas a elucidar a origem do entendimento cristalizado no citado verbete sumular, transcreve-se trecho da fundamentação de um dos precedentes que ensejaram a sua edição:
A matéria versada refere-se aos efeitos da declaração de nulidade do contrato de trabalho, porque o ato foi praticado sem que se observasse o disposto no art. 37, II, da Constituição Federal.
O Regional, após reconhecer "que o Reclamante ingressou no serviço público sem concurso, de forma totalmente irregular e contrária aos princípios que regem a administração pública", declarou a nulidade do contrato de trabalho, mas condenou o Estado do Rio Grande do Norte a pagar ao Autor todas as verbas rescisórias decorrentes da rescisão contratual dos atos válidos, por entender que: "Contratos firmados sem o cumprimento das exigências legais são passíveis de nulidade. Entretanto, no Direito do Trabalho a nulidade contratual não pode retroagir. Tão impossível devolver as partes à situação anterior, quanto restituir ao obreiro a força de trabalho despendida. Tendo dado causa à pretensa nulidade, não pode o poder público, na qualidade de empregador, por imperativo legal, alegá-la em seu próprio benefício." (fl. 23)
Conforme descrito, vê-se que ao art. 37, inciso II, da Constituição Federal foi dado cumprimento, porque corretamente declarada a nulidade do contrato. Esta observância, contudo, não se fez de forma total. Por isso, o que se questionou, então, quando interposta a revista, foi o efeito "ex nunc" do ato nulo decretado pelo Regional. Assim, a ofensa ao art. 896 da CLT será enfocada, também, sob o aspecto de a revista ter viabilidade ou não por violação do inciso II do art. 37 da Constituição Federal, para que seja definido o efeito da declaração de nulidade, se "ex tunc" ou "ex nunc".
3. A nulidade decorrente do não-atendimento dos pressupostos previstos no art. 37, inciso II, da Constituição Federal produz efeitos "ex tunc". Assim, o efeito primeiro da declaração de nulidade do contrato, formalizado fora das exigências constitucionais, é a inexistência do ato, o que resulta no reconhecimento da relação de trabalho sem qualquer vínculo com o poder público, ou seja, a relação jurídica com a entidade de direito público não existiu, porque o que ficou caracterizado foi apenas uma relação de fato.
O caso é, sem dúvida, análogo ao do funcionário de fato, ocupando cargo público e exercendo funções inerentes às executadas por funcionários públicos, quando sua investidura é inexistente, porque nula "ab initio", por vício de forma, uma vez que o ato gerador da relação constituída foi praticado sem implemento dos requisitos constitucionais que dispõem sobre a investidura em cargo ou emprego público.
Por isso, a hipótese dos autos tem estreita identificação com o caso do funcionário de fato, figura vinculada ao Direito Administrativo, ao qual é devido apenas o pagamento de salários, já que, formalizada esta modalidade de prestação de serviços, não se tem por configurada a relação de emprego. Portanto, sem o reconhecimento do vínculo empregatício, em face do efeito "ex tunc" da declaração de nulidade da contratação, só existe o direito ao pagamento dos salários pelos serviços prestados, nada sendo devido a título de verbas rescisórias. (E-RR-92.722/93.2, Redator Ministro Francisco Fausto, SBDI-1, DJ de 16/5/1997)
Do precedente transcrito, verifica-se que a Corte Superior Trabalhista, ao firmar seu entendimento acerca da matéria em discussão, decidiu com bastante rigor, no sentido de que a nulidade que decorre da ausência de prévia aprovação em concurso público tem como consequência tolher os obreiros da quase totalidade das verbas trabalhistas que lhes seriam devidas se válido fosse o vínculo, garantindo-lhes, tão somente, o direito ao salário pactuado e, posteriormente, ao FGTS, este último em razão da superveniência de expressa previsão legal nesse sentido (art. 19-A da Lei n.º 8.036/90, incluído pela Medida Provisória nº 2.164-41 de 2001).
Tamanho rigor deve-se, aparentemente, ao intuito de privilegiar ao máximo possível a defesa do interesse da administração pública, enquanto representante do interesse público, em detrimento do interesse particular dos trabalhadores. No entanto, a jurisprudência em foco, ao decidir exclusivamente em favor dos interesses da administração pública, positivados, quanto à matéria em questão, nas normas inscritas no art. 37, II e § 2.º, da Constituição Federal, relegou ao oblívio a proteção dos direitos do trabalhador, que encontra igual proteção constitucional em um sem número de normas inscritas ao longo da Constituição da República. No entanto, faz-se necessária a compatibilização entre os interesses dos trabalhadores e o interesse público, conforme será exposto a seguir.
4. A necessidade de compatibilizar a defesa do interesse público com a proteção dos direitos dos trabalhadores.
A necessidade de compatibilização dos interesses da administração com o respeito aos direitos dos trabalhadores decorre, já de plano, do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, expressamente consagrado no art. 1.º, caput, da Constituição Federal de 1988. Esse paradigma impõe que o valor máximo a ser protegido pelo Estado é a pessoa humana e os seus direitos fundamentais, ainda que às custas da imposição de limites à atuação do próprio Estado. Por conseguinte, o exercício do poder estatal e a defesa dos interesses da administração somente podem ir até o ponto em que não agridem os direitos fundamentais do ser humano. Tal imposição é explícita no art. 1.º, III, da Constituição Federal, que erige como um dos fundamentos do Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana.
E a valorização da dignidade da pessoa humana tornar-se-ia inócua caso se permitisse a desvalorização do trabalho, cujos frutos são imprescindíveis ao fornecimento dos meios mínimos de subsistência digna ao indivíduo. Tanto assim que, ainda no art. 1.º, a Constituição enumera mais um dos fundamentos do Estado brasileiro, qual seja, a valorização social do trabalho, fundamento esse que é reafirmado no art. 170, caput, e tem sua efetividade mínima garantida pela própria Constituição no rol de direitos básicos do trabalhador inscrito no art. 7.º.
Ora, se a valorização do trabalho constitui-se como fundamento do Estado, revela-se contraditório admitir que, em nome da defesa dos interesses estatais, sejam sonegados os direitos mínimos do trabalhador na hipótese de se declarar a nulidade do contrato de trabalho por ausência de prévia aprovação em concurso público. Não há dúvidas, portanto, de que a defesa dos interesses da administração pública, nesse caso, deve compatibilizar-se com a proteção aos direitos do trabalhador. Nesse sentido, cumpre trazer à colação excerto da doutrina de Jorge Luiz Souto Maior:
Assim, o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o privado deve ser interpretado em consonância com a consagração da valorização do trabalho como princípio constitucional. O Estado-Administração equipara-se aos demais empregadores quando se beneficia do trabalho alheio, tendo em vista que a própria Constituição da República determinou que o trabalho é componente do interesse público. O princípio da supremacia do interesse público, portanto, só será atendido em sua plenitude se forem observados a valorização do trabalho humano e o trabalho como primado da ordem social. (2008, p. 90)
Frise-se, nesse contexto, que o posicionamento atualmente consagrado pelo Tribunal Superior do Trabalho não serve, sequer, à finalidade de defender com efetividade o interesse público, na medida em que, ao entender que a consequência da declaração da nulidade é o aniquilamento dos direitos do trabalhador, incentiva-se a contratação sem concurso, na medida em que o administrador conta, já de antemão, com a possibilidade de, suscitando a nulidade do vínculo em juízo, reduzir os custos com a mão-de-obra.
E nem se alegue que a supressão do direito à totalidade das verbas trabalhistas constitui desestímulo ao trabalhador em contratar com a administração pública sem ser aprovado em concurso. O notório empobrecimento da classe operária e a escassez dos postos de trabalho força o trabalhador a aceitar a contratação irregular, ainda que tenha a expectativa de que, ao final, não verá adimplida a totalidade dos seus direitos.[1] Sempre haverá quem se mostre disposto a submeter-se a esse tipo de contratação, ainda que em troca apenas do salário devido em decorrência das horas trabalhadas.
Para a finalidade de desestimular a contratação irregular, o ordenamento jurídico prevê normas específicas de sanção aos administradores públicos, a exemplo daquelas inscritas na Lei n.º 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). Nesse sentido sinaliza o próprio art. 37, § 2.º, da Constituição Federal, que prevê a punição da autoridade responsável, na forma da lei. Os administradores, sim, detêm o poder de escolher entre a contratação regular, de acordo com as normas legais e constitucionais aplicáveis, e a contratação irregular, sem realização de concursos públicos e, não raras vezes, com base em critérios ofensivos à moralidade e à impessoalidade.