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A transação como ato de disponibilidade de direitos transindividuais?

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10/09/2012 às 15:22
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V.I. Hipóteses de vedação

Independente da discussão sobre a admissão ou não da transação no âmbito difuso, a vedação é incontroversa quando se trata de tutela do patrimônio público e moralidade administrativa.

Nessa hipótese, a ação civil pública disciplinada na Lei 8.429/92, que dispõe “sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego, função na Administração pública direta, indireta e fundacional”, não permite transação na parte referente à punição ao ato de improbidade administrativa.

Nada impede de que haja negociação em relação ao ressarcimento do dano, pois “no que se refere ao ressarcimento do dano e a perda da vantagem ilícita auferida pelo agente (enriquecimento ilícito), não há óbice ao termo de ajustamento. É que não se pode negar ao agente responsável a iniciativa de reparar, espontaneamente, o prejuízo causado ao erário, e de proceder a entrega, a título de perda em favor do Poder Público do produto ilicitamente obtido”.

Por outro lado, a vedação é expressa no art. 17, §1º do dispositivo legal acima mencionado, quanto à ausência de ambiente propício para atos de disposição processual ou material em matéria de cunho fortemente repressivo (perda do cargo público, suspensão de direitos políticos, seqüestro ou perdimento de bens). Essa atividade é privativa da jurisdição e só pode ser imposta por meio de processo judicial.


VI – Discricionariedade, realidade e conveniência

Na realidade, a discricionariedade quanto à disponibilidade do interesse transindividual fica a cargo do Ministério Público, ou do órgão legitimado para firmar o termo de ajustamento de conduta. Embora consciente da limitação material, o órgão ministerial não possui, de fato, aptidão para apurar exatamente a quantidade e extensão da lesão, a fim de impor as condições necessárias para a indisponibilidade do bem.

Apesar de inexistir doutrina que afirme expressamente a disposição de parte substancial dos direitos transindividuais, no meu entender, essa abdicação é, em certa medida, inevitável.

Um pensamento ortodoxo, de que todas as exigências necessárias para voltar ao status quo ante devem ser acordadas com o infrator, retrata uma utopia. Tanto pela impossibilidade de conhecimento de todos os requisitos necessários para a tutela do interesse transindividuais, quanto pela dificuldade de aceitação do particular à obrigações muito rígidas, que não valorizam a instrumentalidade do instituto, nem justificam a isenção do processo propriamente dito, em que se pode contra-argumentar e, eventualmente, ser absolvido.

Ainda na dinâmica de realidade prática, o Supremo Tribunal de Justiça, em Recurso Extraordinário nº 253885, de Minas Gerais, com a relatoria da Ministra Ellen Gracie, decidiu, em 04 de abril de 2002, que “em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse”.[28]

Obviamente, não se trata de discricionariedade ilimitada e irresponsável do tomador do ajustamento de conduta. Refere-se à disposição mínima necessária para que seja apresentada uma proposta plausível ao particular.

Tampouco deve haver práticas e maquinações ardilosas, cujo escopo visem a burlar a lei. Tal prática poderia até mesmo ser um conluio entre o órgão ministerial e a parte interessada que preferem a indenização à reparação efetiva do dano. Nesta medida, não se pode tolerar que qualquer legitimado possa celebrar transação extrajudicial[29] ou que algum órgão público possa firmar Termo de Ajustamento de Conduta que implique, ainda que indiretamente, violação à lei.[30]

Para essas situações, “quanto ao risco de que um acordo nesse tipo de ação possa porventura mascarar eventual colusão entre as partes, ou aninhar algum interesse subalterno”[31] (grifos do original), Rodolfo de Camargo Mancuso adverte para possibilidade de o juiz coibir tais maquinações, com base nos art. 125, III e 129, ambos do Código de Processo Civil e, ainda, a necessária atuação do Ministério Público como fiscal da lei, como meio de assegurar a legalidade e legitimidade do ato.

Em São Paulo, existe ainda a exigência de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público, que funciona como controle da atuação funcional do órgão ministerial.


VII – Conclusão: A busca da efetividade

Ainda que existam controvérsias sobre a viabilidade de utilização de mecanismos alternativos de solução de controvérsias no âmbito dos direitos transindividuais, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos prevê, ao longo de toda sua redação, a aplicação desses institutos.

Com respeito aos atos de disponibilidade, destaca-se o art. 21:

Art. 21. Do termo de ajustamento de conduta. Preservada a indisponibilidade do bem jurídico protegido, o Ministério Público e os órgãos públicos legitimados, agindo com critérios de equilíbrio e imparcialidade, poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta à lei, mediante fixação de modalidades e prazos para o cumprimento das obrigações assumidas e de multas por seu descumprimento.

§ 1º. Em caso de necessidade de outras diligências, os órgãos públicos legitimados poderão firmar compromisso preliminar de ajustamento de conduta.

§ 2º Quando a cominação for pecuniária, seu valor deverá ser suficiente e necessário para coibir o descumprimento da medida pactuada e poderá ser executada imediatamente, sem prejuízo da execução específica.

§ 3º. O termo de ajustamento de conduta terá natureza jurídica de transação, com eficácia de título executivo extrajudicial, sem prejuízo da possibilidade de homologação judicial do compromisso, hipótese em que sua eficácia será de título executivo judicial.”

A preocupação com a manutenção deste instituto nas novas formulações legislativas, ainda que controvertido, demonstra que o objetivo primordial é assegurar a efetiva tutela do interesse protegido, sem render homenagem estrita à forma em detrimento do conteúdo (instrumentalidade-efetividade), porque “no âmbito da ação civil pública, deve sempre prevalecer o interesse na efetiva tutela dos valores maiores da sociedade civil (...) e se o objeto colimado – proteção ou reparação ao interesse metaindividual ameaçado ou lesado – puder ser alcançado pela via negociada, com economia de tempo e de custos, não há motivo plausível para se negar legitimidade a essa solução consensual”. Ainda acrescenta Rodolfo de Camargo Mancuso que “a recusa ao acordo não se justifica, porque nas ações coletivas o interesse reside menos em “vencer” a causa do que em obter, de modo menos oneroso, ou menos impactante, a melhor tutela para o conflito judicializado”[32].

A preservação da indisponibilidade dos bens jurídicos coletivos permanece, limitando a transação à “fixação de modalidades e prazos para o cumprimento das obrigações assumidas”, em confirmação à orientação doutrinária e jurisprudencial que vigora atualmente, à luz da previsão contida no art. 5º, § 6º, da Lei de Ação Civil Pública.

A indisponibilidade do direito não será afetada em sua totalidade porque o objeto da transação versará principalmente sobre a maneira da implementação mais rápida do interesse tutelado e ficará prestigiada a instrumentalidade do processo. Assim, faz-se prevalecer o critério finalísco, sendo preferível uma solução negociada, que se apresente idônea e eficaz para resolver o conflito gerado, a uma perseguição obstinada pela via judicial, que pode ser morosa e imprevisível quanto ao seu resultado final.

Se a opção política do Estado direciona-se para a manutenção do instituto no ordenamento pátrio, seja no âmbito da ação civil pública, seja anteriormente, na fase de inquérito civil, a celebração de acordos sobre direitos transindividuais, em meu entender, deve aceitar explicitamente maior grau de amplitude de negociação, para garantia de sua efetividade.

Por versar sobre direitos cujo interesse é fundamentalmente social, qualquer negociação sobre condições procedimentais de obrigações resvala nos contornos materiais da controvérsia e, por esse motivo, faz-se necessária uma regulamentação clara quanto à preponderância do interesse público.

Bem elucida Geisa de Assis Rodrigues, que “a tutela, judicial ou extrajudicial, dos interesses transindividuais quase sempre implica realizações de ‘escolhas políticas’, ante a conflituosidade peculiar a estes direitos. Assim, uma solução técnico-jurídica de proteger em um dado momento um ecossistema pode implicar a erradicação de várias modalidades de atividades econômicas, com repercussões sociais enormes. Em outra situação, preservar um importante patrimônio histórico poder ser incompatível com um novo traçado urbano proposto para soluções de problemas de trânsito. A manutenção de um determinado patrimônio público pode colidir com a concepção de novos modelos de gestão, quiçá mais produtivos. Esses exemplos ilustram o quão tormentoso pode ser a definição do interesse transindividual que deva prevalecer, quando não há uma demonstração normativa clara de qual o interesse que deva ser resguardado.”[33]

Para as situações em que a disposição, ainda que mínima, de parcela dos direitos transindividuais mostra-se inevitável, deveria haver admissão da celebração de ajustamentos de conduta, pois, ao final, caso exista processo judicial, da mesma forma, a sentença condenatória, legitimada pela atuação do magistrado, irá se deparar com idêntica problemática: a concessão de parte do direito disponível na imposição das obrigações viáveis.

No lugar de retardar o mesmo resultado, prezando pela lógica legislativa de celeridade e eficácia, ainda que em sede extrajudicial, a hipótese de amplitude de negociação deveria ser considerada.

A exigência de fundamentação e a prévia disposição legal[34] que autorizasse o órgão ministerial e demais legitimados a efetuar sacrifício, em casos específicos, de direitos transindividuais em detrimento de outros interesses igualmente relevantes, seriam garantias para justificar a resolução consensual no caso concreto.

Exemplo dessa hipótese é a ocupação de população carente ribeirinha que possui seus únicos imóveis em região marginal de área de proteção permanente. O órgão ministerial deveria dispor de aparato que legitimasse eventual necessidade de manutenção desses indivíduos, em respeito ao direito à habitação, sem que houvesse a rígida imposição de indisponibilidade de direito ambiental.

Sem o intuito de burocratizar a transação, apenas para limitar o grau de discricionariedade e garantir maior segurança jurídica, a legislação pátria deveria prever a exigência de homologação judicial e controle pelo Conselho Superior do Ministério Público. Com o devido registro em bases de dados de livre acesso aos órgãos legitimados, a fim de evitar duplicidade de compromissos de ajustamento que versem sobre o mesmo objeto e ainda resguardar a eficácia e legitimidade do acordo realizado.


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Sobre a autora
Cristina Emy Yokaichiya

Advogada. Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YOKAICHIYA, Cristina Emy. A transação como ato de disponibilidade de direitos transindividuais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3358, 10 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22581. Acesso em: 25 abr. 2024.

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