1. Noções preliminares sobre o regime de prestação de contas públicas
A partir da leitura do art. 71 da Constituição Federal, é possível constatar a existência de dois regimes jurídicos de contas públicas:
a) regime de contas de governo: relativo à gestão política do Chefe do Poder Executivo, cujo julgamento político dar-se-á pelo Poder Legislativo, mediante auxílio do Tribunal de Contas, que emitirá parecer prévio (CF, art. 71, I, c/c art. 49, IX);
b) regime de contas de gestão: são prestadas ou tomadas por administradores de recursos públicos, cujo julgamento, de ordem técnica, é realizado definitivamente pelo Tribunal de Contas respectivo (CF, art. 71, II). Neste caso, o julgamento, materializado em acórdão, terá eficácia de título executivo (CF, art. 71, § 3º), quando imputar débito (reparação de dano patrimonial) ou aplicar multa (punição).
A prestação de contas de governo, também chamadas de “contas anuais”, se dá mediante a apresentação ao Tribunal de Contas de documento elaborado pelo Chefe do Poder Executivo, composto pelos seguintes elementos: Balanço Orçamentário, Balanço Financeiro, Balanço Patrimonial e Demonstração das Variações Patrimoniais, com os resultados gerais do exercício financeiro-orçamentário.
A partir das informações prestadas, serão analisados todos os atos de governo, como os contratos administrativos, os certames licitatórios, as contratações e aposentadorias, a remuneração dos servidores, a cobrança da dívida ativa, o investimento em saúde e educação, etc.
Por sua vez, na prestação das contas de gestão, são informados os resultados específicos de determinado ato de governo. Tal prestação de contas pode ser decorrente de exigência legal no repasse de recursos federais ou estaduais aos Municípios por força de convênio (prestação propriamente dita) ou quando houver suspeita ou denúncia da pratica de atos ilegais ou lesivos ao patrimônio público (tomada de contas).
Ao Tribunal de Contas compete apreciar as "contas anuais" do Chefe do Poder Executivo mediante parecer prévio (art. 71, I, CF ) e julgar as "contas de gestão" dos demais administradores (art. 71, II, CF).
Na análise das "contas anuais" o Tribunal de Contas atua como órgão administrativo, limitando-se a analisar as despesas governamentais e sobre elas emitir um parecer técnico, que servirá de subsídio para o efetivo julgamento por parte do Poder Legislativo.
Em relação às "contas de gestão", a Constituição Federal, em seu art. 71, inciso II, conferiu ao Tribunal de Contas competência para julgar as contas dos administrados e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração, bem como as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.
2. Do(s) órgão(s) competente(s) para o julgamento das contas apresentadas por Prefeito Municipal
Apresentadas as noções preliminares sobre a sistemática da apreciação e julgamento das contas públicas, convém analisar um recorrente questionamento: quando o Prefeito também desempenha funções de ordenador de despesa, o Tribunal de Contas possui competência para julgar a respectiva prestação de contas?
Tal situação é comum em pequenos Municípios, quando o Chefe do Poder Executivo acumula as funções de gestor político e as de ordenador de despesa.
Ordenador de despesa é a autoridade com atribuições definidas em ato próprio, entre as quais as de movimentar créditos orçamentários, empenhar despesa e efetuar pagamentos. Pela definição legal contida no §1º, art. 80, do Decreto-Lei nº 200/1967, “ordenador de despesa é toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio”.
De acordo com o pensamento majoritário da jurisprudência, o Prefeito, mesmo quando age como ordenador de despesas, não pode ser julgado por Tribunal de Contas, porquanto, nos termos do art. 31 da CF/88, a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou dos Municípios, onde houver, uma vez que é vedada a criação de tribunais, conselhos ou órgão de contas municipais.
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.
§ 1º - O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
§ 2º - O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
§ 3º - As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
§ 4º - É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.
Com efeito, para tal corrente, a competência para o julgamento das contas seria firmada em razão da natureza do cargo e não pela natureza dos atos.
Tal conclusão tem como ponto fulcral os efeitos decorrentes do julgamento das contas de gestão, em especial, no tocante à eventual inelegibilidade do Prefeito que tem suas contas rejeitadas por Tribunal de Contas.
2.1. Da competência para o julgamento de “contas de gestão” para fins de inelegibilidade
A rejeição das "contas anuais" ou das "contas de gestão" dos agentes públicos é hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, "g", da Lei Complementar Federal nº 64/90, com a redação dada pela Lei Complementar nº 135/10:
Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
(...)
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;
Conforme o dispositivo transcrito, além da irregularidade ser insanável, deve configurar ato doloso de improbidade administrativa, em uma ou mais hipóteses previstas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92. Logo, ainda que as contas sejam julgadas irregulares e insanáveis, se a decisão não faz qualquer referencia à existência de ato doloso que configure improbidade administrativa, não podem ser causa de inelegibilidade.
Para a configuração da hipótese de inelegibilidade, o dispositivo exige, ainda, que as contas tenham sido rejeitadas por decisão irrecorrível do órgão competente. Qual seria, afinal, o órgão competente para julgar as contas do Prefeito quando atua como ordenador de despesas?
O Superior Tribunal Eleitoral possui jurisprudência consolidada no sentido de reconhecer à Câmara de Vereadores a competência para rejeitar as contas do Chefe do Poder Executivo, sejam elas anuais ou de gestão, ainda que atue como ordenador de despesas.
REGISTRO DE CANDIDATURA. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, G, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90. COMPETÊNCIA.
A competência para o julgamento das contas do prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto as contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas.
(TSE - Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 2810-06.2009.6.15.0066, Relator Ministro Arnaldo Versiani. 04/05/2010)
REGISTRO. INELEGIBILIDADE. REJEIÇÃO DE CONTAS. ÓRGÃO COMPETENTE.
1. Nos termos do art. 31 da Constituição Federal, a competência para o julgamento das contas de Prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica, inclusive, a eventuais atos de ordenação de despesas.
2. A ressalva final constante da nova redação da alínea g do inciso I do art. 1º da Lei Complementar n° 64/90, introduzida pela Lei Complementar n° 135/2010 - de que se aplica "o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição" -, não alcança os chefes do Poder Executivo.
3. Os Tribunais de Contas só têm competência para julgar as contas de Prefeito, quando se trata de fiscalizar a aplicação de recursos mediante convênios (art. 71, VI, da Constituição Federal).
Recurso ordinário não provido.
(TSE - RO nº 75179/TO, rel. Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, PSESS 08/09/2010)
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVOS REGIMENTAIS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. REGISTRO DE CANDIDATO. CONTAS DE PREFEITO. COMPETÊNCIA. CÂMARA MUNICIPAL. REJEIÇÃO. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO. INELEGIBILIDADE (ART. 1º, I, G, DA LC Nº 64/90). AUSÊNCIA. INOVAÇÃO DE TESE. INVIABILIDADE.
1. Para efeito da incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, g, da LC nº 64/90, compete exclusivamente ao Poder Legislativo o julgamento das contas de gestão prestadas pelo chefe do Poder Executivo.
(TSE - Embargos de Declaração em Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 34430, Acórdão de 18/12/2008, Relator(a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 20/02/2009, Página 41)
Logo, para fins eleitorais, prepondera o entendimento da necessária coexistência das seguintes situações para configurar a inelegibilidade do Prefeito por rejeição de contas (art. 1º, I, "g", da LC nº 64/90):
a) decisão irrecorrível da Câmara Municipal pela rejeição das “contas anuais” ou “contas de gestão”;
b) rejeição das contas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa.
2.2. Da competência para o julgamento de “contas de gestão” para fins de apuração da responsabilidade administrativa e civil
Superada a discussão quanto às implicações eleitorais da rejeição de contas do Prefeito, é preciso observar a pertinência da competência do Tribunal de Contas para julgar as “contas de gestão” como condição para a imputação da responsabilidade administrativa e civil do Chefe do Poder Executivo Municipal.
Para o Superior Tribunal de Justiça, ao atuar como ordenador de despesa, o Chefe do Poder Executivo municipal está sujeito a duplo julgamento: "um, político, emitido pela Câmara de Vereadores, sobre as contas anuais oferecidas pela administração e examinadas, previamente pelo Tribunal de Contas que sobre elas emite, apenas, um parecer. O outro, técnico e definitivo, exarado pela Corte de Contas, que conclui pela legalidade ou ilegalidade dos atos praticados pelo Prefeito, na qualidade de ordenador de despesas” (STJ, 2ª Turma, ROMS 11.060/GO, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Paulo Medina, 25/06/02, D.J. 16/09/02, p. 00159).
Assim, a decisão do Tribunal de Contas surtiria efeitos civis e administrativos para o Prefeito, de modo a obriga-lo à reparação de dano patrimonial, mediante a imputação de débito prevista no artigo 71, § 3º, da CF, haja vista que a Câmara de Vereadores não pode imputar débito ao Chefe do Poder Executivo.
Corroborando com a posição ora externada, o STJ, em 2011, assentou que "a legitimidade para ajuizar a ação de cobrança relativa ao crédito originado de multa aplicada a gestor municipal por Tribunal de Contas é do ente público que mantém a referida Corte - in casu, o Estado do Rio Grande do Sul -, que atuará por intermédio de sua Procuradoria" (REsp nº 1238258/RS)
3. Conclusão
Com base nas considerações ora apresentadas, é possível concluir que:
a) para fins de declaração de inelegibilidade, há que se reconhecer a competência para o julgamento das contas de Prefeito é exclusivamente da Câmara Municipal, não importando se se trata de contas anuais, de gestão, de atos isolados, ou, ainda, de caso em que este tenha atuado como ordenador de despesas, cabendo ao Tribunal de Contas apenas a emissão de parecer prévio;
b) para fins de apuração de responsabilidade administrativa e civil, será o Tribunal de Contas competente para julgar as contas de gestão de Prefeito quando atuar na qualidade de ordenador de despesa, formando-se o respectivo título executivo extrajudicial em caso de rejeição de contas para a viabilização da reparação patrimonial ao Erário (art. 71, §3º, CF).
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