Resumo: O objeto deste artigo é a violência doméstica, analisado à luz da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006) e sua efetivação no Brasil, sendo, em certa forma, comparado à experiência norte-americana, apreendida a partir do curso International Judicial Research & Training Program, ministrado pela Fordham Law School[1] em parceria com o Tribunal de Justiça de Pernambuco. Afastada a pretensão de examinar todos aspectos doutrinários e jurisprudenciais da matéria, far-se-á breve estudo sobre sua finalidade e concretização, juntamente à colocação dos aspectos judiciais nova-iorquinos concretos, expostos por integrantes do Bronx Domestic Violence Court, cujo aperfeiçoamento levou ao desenvolvimento de núcleos assistenciais integrados, além da ampliação da competência do magistrado. O objetivo é contribuir com novas ideias e adaptações para o judiciário local, quiçá, nacional.
Palavras-chave: Violência doméstica. Judiciário brasileiro. Bronx Domestic Violence Court. Assistência às vítimas.
Sumário: Resumo. 1. Lei Maria da Penha: previsões e inovações no sistema jurídico nacional. 1.1. Representação e reconhecimento da natureza pública incondicionada 1.2. Das medidas assecuratórias à integridade da vítima e das penas com caráter ressociabilizador. 2. Bronx Domestic Violence e Integrated Domestic Violence Courts: lições a partir da experiência norte-americana. 2.1. Corte integrada de combate à violência doméstica (Integrated Domestic Violence (IDV) Court): “one judge, one family”. 2.2. Modelo de intervenção do Bronx em benefício aos menores, participantes de violência doméstica ou familiar. Reflexões finais. Referências.
1. LEI MARIA DA PENHA: previsões e inovações no sistema jurídico nacional
A defesa contra a violência doméstica, no Brasil, teve como marco inicial a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women – CEDAW), em 1° de fevereiro de 1984. O documento declara que “a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, para o bem-estar do mundo e para a causa da paz”.[2]
Com a ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), em 06 de junho de 1994, o Brasil complementou a CEDAW. E, em 28 de junho de 2002, com o Protocolo Facultativo, admitindo recebimento de denúncias individuais, foi dado conhecimento à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) do paradigmático caso de violência doméstica brasileiro (caso Maria da Penha nº 12.051), o que culminou, após recomendações internacionais, alterações na nossa legislação penal, na promulgação da Lei n° 11.340/06 (Lei Maria da Penha - LMP)[3].
Esta lei reconhece a situação peculiar da violência doméstica ou familiar (art. 4°), qualificando-a como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; e em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” (art. 5°)[4].
A violência decorrente de relação afetiva e íntima, portanto, independe de coabitação e pode ser presente ou passada, abrangendo a violência física – ofensa à integridade ou à saúde corporal da mulher –, a psicológica – que cause modificação no estado de ânimo –, a sexual – qualquer forma de determinação para que presencie, mantenha ou participe de relação sexual não consentida, ou impedimento de utilização de métodos contraceptivos, que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou prostituição, mediante coação, chantagem ou manipulação, ou que anule seus direitos sexuais e reprodutivos –, a patrimonial e a moral.
É sujeito ativo tanto o homem como a mulher, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência contra a mulher, sem importar o gênero do agressor.
Abrange, também, a violência contra a empregada doméstica, tendo seus patrões como agentes, e a de filhos ou netos contra mães ou avós[5]. Bem como a hipótese de ser a vítima portadora de deficiência, pois a Lei prevê uma majorante quando para seu cometimento, seja de que sexo for.
Fixa mecanismos para coibir este tipo infracional, determinando a criação de juizados especializados, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM)[6], e, embora não disponha sobre seu procedimento, fez alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal, prevendo a aplicação subsidiária tanto de suas normas processuais como do disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso (art. 13) e seguindo os mesmos princípios dos juizados: oralidade, informalidade, economia processual e celeridade.
Enquanto não estruturados, ficam competentes as Varas Criminais, às quais deverão ser distribuídos os feitos cíveis, incumbindo-lhes conhecer e julgar as ações decorrentes da violência doméstica (art. 33), embora não o seu processo executório - ao contrário do que se deve proceder nos JVDFMs –.[7]
Havendo, porém, o envolvimento de crianças e adolescentes, seja como autores, seja como vítimas, persiste a competência dos Juizados da Infância e da Juventude (art. 98 do ECA), salvo existindo vítimas mulheres e maiores de idade envolvidas, quando compete aos JVDFMs.[8]
Já com relação aos crimes dolosos contra a vida, cuja competência é constitucionalmente definida para o Tribunal do Júri, sendo reconhecida a condição de vínculo doméstico, a instrução do processo deve ocorrer nas varas especializadas, sob pena da vítima ficar privada dos benefícios da Lei Maria da Penha. Somente no fim da primeira fase, antes de pronunciado o réu, é que o processo deve ser encaminhado à Vara do Júri.[9]
A inovação legal consiste, principalmente, nas modificações do rito de seus crimes, e no estabelecimento de uma política pública de prevenção e assistência à mulher, vítima da violência doméstica ou familiar, exercida mediante a articulação dos órgãos do Poder Judiciário, da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública, dentre outras instituições, abrangendo, inclusive, a promoção de campanhas educativas, voltadas para o público, especialmente nas escolas[10], além da capacitação do pessoal envolvido[11].
O título V do instrumento normativo dispõe sobre a criação de equipe multidisciplinar[12], formada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde (art. 29), que integrarão a estrutura das varas especializadas, com a função de auxiliar o juízo, o Ministério Público e a Defensoria Pública, além da orientação e amparo às famílias das vítimas, com especial atenção às crianças e adolescentes (art. 30).
O papel do Ministério Público, por sua vez, não se restringe à fiscalização da lei, ao contrário, exerce atividade imprescindível à sua eficácia, na medida em que fica responsável por requisitar forca policial e serviços públicos de saúde, educação e assistência social, fiscalizar as unidades de atendimento à mulher, além de cadastrar os casos de violência[13]. Em Pernambuco, a instituição já informa os fatos mensalmente à Corregedoria Geral, através de Relatório de Atividades Funcionais[14].
1.1. Representação e reconhecimento da natureza pública incondicionada
A Constituição Federal (CF) assegurou alguns privilégios aos delitos de menor potencial ofensivo e delegou à legislação infraconstitucional definir os crimes (art. 98, I, da CF). Foi o que fez a lei dos juizados especiais (Lei n° 9.099/95), considerando como de pequeno potencial ofensivo as contravenções penais, os crimes com pena máxima não superior a dois anos[15] e os delitos de lesão corporal leve e culposa. A Lei Maria da Penha, de mesma hierarquia, por sua vez, afastou a violência doméstica da sua égide.[16]
A alteração de competência levada a efeito justifica-se: em sede de violência doméstica, afastada a lei dos juizados, não seria possível a composição de danos ou aplicação imediata de pena alternativa, de o Ministério Público sugerir transação, pena pecuniária ou sursis (arts. 72, 76 e 89 da Lei n° 9.099/95). Já a representação seria feita pela vítima perante a autoridade policial, no momento do registro da ocorrência[17].
Inovou neste aspecto, na medida em que, antes, na lei dos juizados, a representação era colhida em juízo, muito tempo após o fato, em audiência onde estaria presente o ofensor, sem que a vítima contasse com a assistência jurídica.
Passou, também, a admitir a possibilidade de a vítima retratar-se da representação até o recebimento da denúncia, devendo tal manifestação ser ratificada perante o magistrado e o parquet, em audiência especialmente designada para tal fim (art. 16), estando acompanhada de defensor (art. 27)[18], medida que serviria para garantir que a ofendida não cedesse às pressões do agressor.
No entanto, a doutrina insurgiu-se contra a natureza condicionada da ação, afirmando que ainda que tenha havido uma consciente tentativa de acabar com a impunidade, deixou o legislador de priorizar a pessoa humana, preservar sua vida e sua integridade física[19], pois condicionar a ação penal à iniciativa da vítima seria negar a existência de um desequilíbrio entre agressor e agredido, exigindo-se que o hipossuficiente, o subalterno, formalizasse queixa contra seu violentador.
Com efeito, a vítima, ao veicular a queixa, nem sempre quer separar-se ou que o companheiro seja preso, mas, tão somente, que a violência cesse. A mulher, quando procura o socorro, já está cansada de sofrer agressões e se vê impotente. A submissão que lhe é imposta, o sentimento de menos valia, a deixam cheia de medo e vergonha, motivo pelo qual não denuncia na primeira ocasião.
Com a instalação dos juizados especiais com competência para as contravenções penais e lesões corporais leves e culposas, as mulheres se viam limitadas a lavrar termos circunstanciados, nas delegacias, e, na audiência preliminar, a conciliação era mais que proposta, quase imposta, se se considerar, principalmente, a presença opressora do agressor, ou, quando não aceita, a manifestar-se diante do mesmo. Na sequência, ainda havia a possibilidade de transação com o Ministério Público ou mesmo aplicação de sursis.[20]
As absolvições, sistematicamente levadas a efeito para garantir a harmonia familiar, acabaram tendo efeito contrário: consagraram a impunidade. Não se tratava este tipo de crime, seja preventivamente, seja repressivamente. Em dez anos de atuação dos juizados especiais, a impunidade deu margem à reincidência e ao agravamento do ato violento. A violência doméstica continuou acumulando estatísticas (90% dos casos eram arquivados ou levados à transação).[21]
No entanto, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.424/DF[22], o Plenário do Supremo Tribunal Federal atribuiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, I, 16 e 41, todos da Lei 11.340/2006, assentando a natureza incondicionada da ação penal, em caso de crime de lesão corporal, mesmo que de natureza leve ou culposa, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico[23].
O Colegiado explicitou que a Constituição seria dotada de princípios implícitos e explícitos, dentre os quais o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da igualdade (CF, art. 5º, I) e da vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI), bem como o art. 226, § 8º, da CF, e que caberia à Suprema Corte definir se a previsão normativa a submeter crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, em ambiente doméstico, ensejaria tratamento igualitário, consideradas as lesões provocadas em geral, bem como a necessidade de representação.
Considerou-se que os dados estatísticos seriam alarmantes, apontando que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada e que o agente passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva.
O Plenário destacou o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência e que a proteção à mulher esvaziar-se-ia ao se admitir que, verificada a agressão com lesão corporal, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência, pelo que concluiu não ser razoável deixar a atuação estatal a critério da vítima.
1.2. Das medidas assecuratórias à integridade da vítima e das penas com caráter ressocializador
A partir da manifestação da vítima, a autoridade policial deverá instalar o inquérito e formar expediente a ser encaminhado ao juiz (art. 12, III), independentemente de acompanhamento de advogado (art. 19), pois, mesmo garantindo a Lei à mulher acesso aos serviços de Defensoria Pública ou Assistência Judiciária Gratuita (arts. 27 e 28), não condicionou o pedido de tutela à representação ou a manifestação formal perante o juiz.
Após o registro da ocorrência, deve encaminhar a vítima, imediatamente, ao posto de saúde e ao Instituto Médico Legal, conforme o caso, com garantia da sua proteção e transporte para abrigo, comunicando-se ao Ministério Público e ao Judiciário (art. 11).
Assim, passou a Lei a admitir que medidas protetivas de urgência, do âmbito do Direito das Famílias, como separação de corpos e alimentos, sejam requeridas pela vítima já perante a autoridade policial[24], permitindo maior agilização na sua satisfação.
Ao juiz, cabe decidir, em 48 (quarenta e oito horas) do recebimento do expediente[25], fazendo cessar a violência, encaminhar a ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando preciso, e comunicar o fato ao Ministério Público.
Dentre as medidas protetivas que obrigam o agressor, encontram-se: suspensão ou restrição do porte de arma; afastamento do domicílio ou local de convivência; proibição de condutas, como aproximação e contato com a ofendida e familiares; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; e prestação de alimentos (art. 22).
Já em favor da vítima, o magistrado poderá encaminhá-la e seus dependentes a abrigo ou programa oficial ou comunitário de proteção e atendimento; determinar seu afastamento ou recondução ao lar; determinar a separação de corpos; fixar alimentos; determinar a restituição de bens ou proibir a celebração de contratos que comprometam bens comuns (arts. 23 e 24).[26]
À luz do artigo 13 da LMP, firmado acordo em sede dos JVDFMs, pode ser decretada a separação do casal, definindo-se alimentos, guarda de filhos, partilha de bens etc, detendo a decisão que homologa o acordo natureza de título executivo judicial[27].
No que tange à aplicação de Pena Restritiva de Direitos (PRD), a doutrina levantou a questão de sua aplicabilidade à Lei Maria da Penha, haja vista somente ser prevista a substituição quando o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (art. 44, I, CP). Porém, excluir a possibilidade de sua aplicação, seria atribuir letra morta ao legislador[28].
Ao condenado podem ser aplicadas, em substituição à pena privativa de liberdade, todas aquelas que não tenham conteúdo econômico (art. 45, § 2°, CP e art. 17 da LMP). O legislador quis deixar claro que a integridade da mulher não tem valor econômico.
De grande valia também a alteração na Lei de Execução Penal, ao acrescer o parágrafo único ao artigo 152, permitindo que o juiz determine a participação obrigatória do acusado a programas de recuperação e reeducação, quando aplicada a pena de limitação de fins de semana (art. 43, VI, do Código Penal), período já se previa serem ministrados cursos e palestras com atribuição de atividades educativas, embora não de forma cogente (parágrafo único do art. 48 do CP).
É importante que as penas restritivas de direito sejam de molde a propiciar uma mudança de comportamento naquele que pratica o crime sem entender o caráter criminoso de seu agir.
2. BRONX DOMESTIC VIOLENCE E INTEGRATED DOMESTIC VIOLENCE COURTS: lições a partir da experiência norte-americana
Nos Estados Unidos, mesmo após a criminalização da violência doméstica, muitos juízes, policiais e outros profissionais integrantes do judiciário acreditavam que a intervenção neste campo seria desperdício de verba. Alguns simplesmente não levaram a sério este tipo de crime, uma vez que as vítimas desistiam da demanda e voltavam, aparentemente, voluntariamente, para o convívio com o agressor. Magistrados e advogados sentiam-se frustrados em ver os mesmos litigantes e as mesmas causas repetidamente.[29]
O que faltava era uma compreensão da complexidade das situações envolvendo violência doméstica, especialmente o poder sócio-econômico que prendia suas vítimas aos ofensores.
A juíza Judith S. Kaye[30] colocou:
“ (…) If victims remain in abusive situations due to fear for their own and their children´s well being, then why not provide links to services and safety planning that may expand the choices available to them? If cases are slipping between the cracks of a fragmented criminal justice system, them why not work together to improve coordination and consistency?”[31]
Kaye deixa claro que a violência doméstica não seria como os demais tipos penais. Ela trata de violência entre pessoas íntimas, cujas vítimas são intimidadas por seus agressores, com novas ameaças ou abusos, mesmo depois de presos, e, comumente, desistem da denúncia. Fatos que aumentam a dificuldade na prevenção e processamento criminal.
Constataram que vinte por cento (20%) de todas as ações que se iniciavam na corte criminal nova-iorquina eram procedentes de casos de violência doméstica. Isto impulsionou os líderes do judiciário a pesquisarem novas alternativas, mais eficientes. Somente a partir de estudo, com o aprofundamento da matéria, ficou evidenciado tratar-se de casos especiais, com características próprias, de onde se concluiu pela necessidade de criação de uma Corte especializada.[32]
Através de consulta às agências parceiras e experts, além de seus próprios processos, o judiciário de Nova Iorque desenvolveu técnicas que ajudaram a garantir a segurança das vítimas de violência doméstica, assim como a responsabilização dos acusados.
Foi colocado que através da educação populacional e de parcerias, o Estado estimularia uma resposta coordenada à situação. Para combater a violência doméstica, todos os segmentos da comunidade deveriam trabalhar em conjunto, de modo a criar na sociedade a consciência de que estes maus-tratos não são toleráveis. Para tanto seria preciso estabelecer um vínculo forte entre a maior quantidade possível de “parceiros”, os quais devem ter acesso a treinamento adequado[33][34].
A construção de uma rede de relações entre os diversos órgãos envolvidos no procedimento permite a maior troca de informações, de grande importância para uma correta responsabilização[35].
Assim, tendo em vista que os registros oficiais raramente anotavam quando as ofensas eram perpetradas contra uma mesma vítima, e, às vezes, sequer mencionavam se a prisão seria decorrente de violência doméstica ou outro tipo penal comum, a justiça especializada de Nova Iorque passou a registrar o número de ocorrências, de representações e de vítimas relacionadas aos serviços, de forma a poderem avaliar o progresso do sistema[36].
Mas para isto seria necessária toda uma equipe preparada para implementar este modelo judicial integrado, responsável pela troca e armazenamento de informações, notadamente diante da premissa de dirigir os envolvidos ao serviço pertinente, além de manter estas unidades assistenciais compromissadas com suas finalidades.
Nestes termos, a Corte do Brooklin criou um “encontro de parceiros da Corte”, o qual inclui juízes, funcionários do judiciário, advogados das vítimas, promotores de justiça e advogado de defesa, além de representantes dos serviços assistenciais, e ocorria a cada seis semanas, permitindo a troca de informações e ideias[37]. Seu modelo apresentou sinais positivos, como a redução pela metade dos casos de arquivamento, o que incentivou o judiciário de Nova Iorque a desenvolver o mesmo trabalho em diversas outras seccionais.
Considera que as famílias que chegam à Corte integrada estão em crise. Frequentemente, cada membro da família precisa de um cuidado especial. Assim, a IDV Court presta assistência à toda a família, vítimas adultas ou crianças, ao mesmo tempo em que o acusado responde a programas para reabilitação.
Outrossim, o acesso do juiz a representantes das entidades cooperativas, faz com que suas informações sejam facilmente transmitidas. Já a presença dos advogados e promotores no Tribunal permite a realização de audiências e adaptações imediatas aos resultados negativos.
Em contraposição ao sucesso deste modelo integrativo, porém, um dos maiores desafios encontrados foram, inicialmente, a ameaça à imparcialidade judicial, a carência de parceiros para integrar os serviços assistenciais e de fiscalização, bem como o desgaste emocional e psicológico.[38]
Embora houvesse a sensação de comprometimento da objetividade do magistrado, na medida em que inevitavelmente se tornaram muito próximos às causas familiares, na prática isto não foi constatado, uma vez que a dinâmica desta justiça especializada não demandaria impressões particulares.
Relativamente à dificuldade de financiamento e contribuição com mão-de-obra ao sistema integrado, Terri Roman[39] e Rebecca Arian[40], revelaram[41] que, em paralelo ao financiamento estatal e particular de pessoas interessadas, o próprio agressor teria que contribuir com o serviço assistencial que lhe fosse prestado. Além do que, uma vez que este tipo de situação abrangeria parte da comunidade, observou-se o interesse de entidades privadas em apoiar no combate.
Por fim, ainda que os casos de violência doméstica e familiar sejam dotados de alta carga emocional e, na maioria das vezes, ocorra a reincidência, transmitindo a impressão de fracasso, é cediço cuidar-se de momento evolutivo social, que demanda um enfrentamento incisivo sobre suas causas, sendo estes “efeitos colaterais” contornáveis mediante a instituição de assistência profissional especializada voltada para todos os colaboradores da Corte.
2.1. Corte integrada de combate à violência doméstica (Integrated Domestic Violence (IDV) Court): “one judge, one family”
Uma mesma família pode ter que comparecer perante diferentes juízes ou instâncias que tratam aspectos distintos de seus problemas domésticos e familiares. Cada membro do judiciário tomando conhecimento apenas de parte específica da matéria, com potencialidade de emissão de decisões conflitantes, ou no mínimo ineficientes.
Tendo isso em conta e com base no sucesso do trabalho interativo, desenvolveu-se, em mais de sessenta condados de Nova Iorque, uma espécie de vara integrada, as chamadas “Integrated Domestic Violence (IDV) Courts”, cujo fundamento segue a razão de “uma família – um juiz”, segundo o qual todas as matérias concernentes a uma mesma família deveriam ser dirigidas por um único juiz.
Estas “Cortes” permitem que o mesmo magistrado tenha competência geral e analise questões penais, civis e familiares, como divórcio, guarda, visita aos menores e garantias de proteção à vitima de violência doméstica e familiar[42].
Esta medida cria oportunidade para uma abordagem mais holística e compreensiva sobre a complexidade da situação, proporcionando uma integração dos serviços assistenciais e, por consequência, um aumento na eficiência da prestação dos serviços[43], seja assistenciais, com uma equipe capaz de dirigir um programa direcionado ao problema específico, seja juridicionais, através da implementação de medidas cautelares adequadas à situação.
Observou-se que, ao tratar todas as ações relacionadas a uma mesma família, o juiz adquire informações mais aprofundadas do caso, deixando-as mais compreensivas, tornando-se capaz de tomar decisões consistentes e destinadas a solucionar todos os problemas adequadamente[44].
Ressalva-se que, em respeito às regras processuais vigentes e aos princípios que asseguram o devido processo legal, apesar de um mesmo julgador cuidar tanto das matérias penais, quanto as civis ou familiares, relativas à mesma família, todos os casos são tratados individualmente, aplicando-se-lhes todas as regras processuais pertinentes[45].
Sob uma perspectiva prática, estas Cortes simplificam o processo jurídico para as famílias, criando um ambiente no qual as partes não precisam percorrer diversas unidades judiciais ou administrativas, reduzindo o risco de decisões conflitantes, inclusive.
Este projeto se baseia em princípios, quais sejam: serviço às vítimas, monitoramento judicial, responsabilização e resposta coordenada da comunidade.
O que mais se destaca, no entanto, é a prestação de serviços assistenciais, pois as partes, em casos de violência doméstica, têm necessidades únicas e peculiares. Geralmente, as vítimas são dependentes economicamente de seus agressores, têm filhos em comum ou mesmo moram na casa dos parentes deles. Sendo assim, mostra-se essencial garantir a segurança das vítimas, além de prover acesso imediato a advogados[46], que poderá buscar soluções efetivas e adequadas à situação, explicar os procedimentos legais e mantê-las seguras e informadas[47], durante todo o trâmite processual.
Outro ponto fundamental para continuação do processo, destacam, é a concessão de medidas protetivas de urgência. Quanto mais as vítimas esperarem pelas mesmas, maior será a vulnerabilidade[48].
O julgador deverá, portanto, isoladamente ou com apoio de uma equipe, supervisar as medidas cautelares, o tratamento a que o acusado se submete e o atendimento às condições estipuladas, de modo a tomar medidas cabíveis imediatamente ou mesmo explorar novos métodos mais adequados. Tal atitude contribui, também, para a conscientização do acusado de seu comprometimento de acordo com as atitudes que toma.
Observou-se, também, que o monitoramento do prosseguimento do feito pelo juiz é uma técnica eficiente para redução da reincidência. Este acompanhamento assegura que a repetição dos atos violentos não serão tolerados e que todo o poder político será direcionado ao impedimento dos mesmos. Isto requer que um mesmo juiz esteja vinculado durante todo o trâmite processual, até a reabilitação do condenado e viabiliza maior acesso a informações sobre o caso.
2.2. Modelo de intervenção do Bronx em benefício aos menores, participantes de violência doméstica ou familiar[49]
Enquanto que o sistema criminal nova-iorquino apresentou melhorias na assistência aos adultos, vítimas da violência doméstica ou familiar, o mesmo não foi constatado relativamente aos problemas de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade, agressão e estresse pós-traumático, apresentados pelas crianças envolvidas.
Partindo do pressuposto de que a participação das mesmas no processo judicial pode ser uma experiência dolorosa e opressora, o Center Court Innovation, no Bronx, criou o Programa de Suporte às Testemunhas Crianças e Adolescentes, cujos serviços direcionam-se à redução do impacto negativo da exposição à violência e dos traumas dela decorrentes[50].
Nesta Justiça, enfrenta-se cerca de trezentos e cinquenta casos de violência doméstica ao mês, cujas famílias, na maioria, é composta por diversas crianças. Seus estudos indicaram que, a despeito dos esforços paternos para não envolverem os filhos, as crianças normalmente vêem, ouvem e até intervêm, de onde decorre o tratamento de aproximadamente mil crianças, ao ano, com suspeitas de abusos físicos ou sexuais[51].
Já é cediço que a exposição à violência pode acarretar os mais diversos impactos negativos, seja emocional, comportamental, cognitivo, social ou psicológico. As respostas dos menores podem variar dependendo da gravidade do fato e da intimidade na relação e sua personalidade, idade e desenvolvimento mental, além de outros fatores.
Em outubro 2009, um relatório do escritório de prevenção à delinquência infantil descreveu como comum resultar-se da participação de casos de violência doméstica e familiar quadros de regressão comportamental, dificuldade de concentração, ansiedade, depressão e agressividade. Assentaram que a exposição dos menores poderia criar maior tendência à futura criminalidade e envolvimento com os programas governamentais de assistência, de modo a perpetuar o ciclo de violência para a próxima geração.
A partir deste conhecimento, o Center Court Innovation começou a examinar modelos de intervenção já existentes e incorporou-lhes. Identificaram três tipos de programas, dentre os quais o mais benéfico fora a terapia prolongada para cuidar de traumas e consequências de curto e longo prazo. Os infantes também precisavam de suporte emocional durante o processamento do feito, pois, foi percebido que as crianças, sempre que precisavam dirigir-se à Corte, chegavam em crise e precisavam de cuidados psicológicos imediatos.