Ao se fazer a associação entre Direito e Cinema, não raras vezes, o que vem à mente são filmes que trazem como ponto de partida sessões de julgamentos, crimes emblemáticos, estratégias da defesa e da acusação etc. Em meio a este contexto, o Direito Comparado, de igual modo, acaba por ganhar destaque, sobretudo se o filme contiver cenas perante o Tribunal do Júri, conhecido como “Grand Jury” nos Estados Unidos. É certo que estes aspectos são importantes, mas se afiguram reducionistas. Professores, estudantes, profissionais e interessados no estudo do Direito perdem oportunidades valiosas de “ver” e compreender o Direito sob uma perspectiva mais ampla e crítica.
Acredita-se que melhor seria tentar realizar uma análise jurídico-social a partir de filmes que não versem, a princípio, sobre temas ligados ao Direito. Diz-se, “a princípio”, porque o Direito ao prescrever normas para regular a conduta humana sempre estará presente, direta ou indiretamente, nas relações sociais. Como consequência, para conhecer e lidar com o Direito deve-se, antes de tudo, conhecer o ser humano; a natureza humana. Significa dizer: deve-se ter uma postura humanística, o que vem sendo reconhecido e destacado recentemente pelos cursos de graduação e pós-graduação no Brasil e não só, assim como na literatura jurídica contemporânea. Trata-se de uma forma de pensar o Direito além da mera técnica; do saber pronto e acabado; dogmático. O saber jurídico deve, portanto, passar por uma prévia filtragem, por avaliações, por comparações, por raciocínios hipotéticos em que se vislumbrem alternativas múltiplas para regular de modo mais sensato, coerente e razoável a conduta humana em sociedade. Com isso, abre-se novo horizonte para se estudar e se aprender o Direito pelos caminhos da descoberta; do prazer da revelação e do entendimento, e não pelas vias da coação, repletas de imposições, de verdades pré-moldadas, expostas invariavelmente sob as vestes do “certo” e do “errado”. Esta visão mais humanística, seguramente, fomenta o pensar e contribui para uma melhor interpretação e aplicação das normas jurídicas no quotidiano social, no qual está inserido o ser humano, destinatário final de um Direito que aspira por segurança e Justiça.
A propósito, o conhecimento especializado, estanque e compartimentado há tempos vem sendo combatido por pensadores de inquestionável e reconhecido mérito. As palavras de Albert Einstein expressam o que se quer dizer:
“Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto. A não ser assim, ele se assemelhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvida. Deve aprender a compreender as motivações dos homens, suas quimeras e suas angústias para determinar com exatidão seu lugar exato em relação a seus próximos e à comunidade.
(...) Quando aconselho com ardor ‘As Humanidades’, quero recomendar esta cultura viva, e não um saber fossilizado.
(...) Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro.”[1]
Por este prisma, tem-se que a interação entre Direito e Cinema fomenta nos estudantes e profissionais do Direito uma oportunidade de amadurecimento; de lidar com o Direito a partir de seus fundamentos, finalidades, possibilidades. O Cinema traz para as “telas” a vida; social e individual. O Direito, como já ressaltado, busca prescrever normas para um convívio social em harmonia e em equilíbrio, de maneira a tornar as relações interpessoais viáveis, possíveis e dotadas de dignidade. Logo, da fusão de ambos, somente se tem a evoluir. Ao conhecer o “outro” que é mostrado no Cinema, acaba-se por se conhecer a si mesmo, tal como recomendado no templo de Apolo, em Delfos, nas montanhas da Hélade e sede de um famoso oráculo na Grécia Clássica.[2] Por outras palavras, conhecendo-se a si mesmo, pode-se entender, com mais perspicácia e sensibilidade, os limites e o alcance do Direito; o que é e o que não é material e socialmente realizável, seja no âmbito individual, seja social.
O filme “Não Me Abandone Jamais” (“Never Let Me Go” – 2011) propicia fértil campo para reflexões deste gênero. O filme é baseado no romance de mesmo nome de Kazuo Ishiguro. Mostra uma escola fictícia para crianças, em regime de internato, chamada Hailsham, estabelecida no interior da Inglaterra. Nessa escola, as crianças são submetidas a uma educação formal, com disciplina rígida não passível de questionamentos. Aos poucos as crianças tomam ciência de que são “clones” e, por conta disso, são tratadas como órfãos, não dispondo sequer de sobrenomes. Tomam ciência, ainda, de que, ao completarem cerca de 20 (vinte) anos de idade, passarão a “doar” seus órgãos para outras pessoas com o propósito de curar doenças destas últimas, as quais são nominadas “receptoras”. Porém, por volta da terceira intervenção cirúrgica, os “doadores” acabarão morrendo, haja vista a vitalidade dos órgãos “doados”.
No filme, as crianças não são consideradas sequer seres humanos, mas criaturas, como são chamadas por seus superiores. Existe, inclusive, uma galeria de arte onde as crianças deveriam desenvolver suas habilidades artísticas, mas que, na prática, tem por objetivo provar que elas não são capazes de expressar seus sentimentos, tal como os “verdadeiros” seres humanos. Segundo os responsáveis pelos “clones”, portanto, estes, enquanto meras criaturas, não são capazes de produzir arte. Aqui, aliás, emerge um dos pontos interessantes do filme, qual seja: o ser humano não seria apenas um animal racional, mas, sim e também, aquele que consegue decodificar, mediante suas percepções, a realidade sensível do mundo e expressar suas angústias, medos; sonhos e desejos. Em suma, ser humano é aquele capaz de captar, sentir a vida em suas diversas dimensões e expressá-la pela arte, o que não deixa de ser uma visão peculiar.
Mas o ponto mais relevante do filme parece ser a adoção extremada da corrente filosófica conhecida como utilitarismo. Como se sabe, o utilitarismo foi idealizado pelo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), para quem o ser humano é governado por dois sentimentos opostos: o prazer e a dor. Por esta linha de pensamento, a felicidade consistiria na ampliação do prazer e na minimização da dor. Numa visão simplista: útil é o que bom e bom é o que nos torna felizes; felicidade é mais prazer e menos dor.[3]
Não é por acaso que a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de inspiração nitidamente utilitarista, já com as contribuições de outro filósofo que seguiu e lapidou essa corrente, John Stuart Mill (1806-1873), previu a “busca da felicidade” como um Direito Fundamental.[4]
Transposta essa ideia para a sociedade, felicidade é aquilo que melhor atende ao interesse coletivo, e não individual (Princípio do bem-estar máximo). Daí é que emerge o pensamento que sustenta, em termos jurídicos, a supremacia do interesse público sobre o individual.
Esta perspectiva, no entanto, colide frontalmente com a filosofia Kantiana. Para Immanuel Kant (1724-1804) o “ser humano é um fim em si mesmo”. Não pode, jamais, ser utilizado como coisa, objeto ou instrumento para se atingir outro fim, por mais nobre que seja este.[5] O ser humano, pelo simples fato de “ser humano”, merece ser reconhecido como tal, eis que titular de uma dignidade específica: a dignidade humana[6]. A dignidade de “ser humano”, dotado que é de razão e de emoção.[7]
O pensamento de Kant influenciou significativamente, primeiro, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e, mais tarde, após as atrocidades da II Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que, por sua vez, repercutiu nas Constituições dos Estados contemporâneos, de tradição democrática, com destaque para a previsão formal e expressa nos textos Constitucionais dos Direitos Fundamentais, com ênfase à dignidade humana.
Mas não é só Kant quem se opôs ao utilitarismo. Outro filósofo de renome internacional, inclusive de origem estadunidense, também o fez. Seu nome é John Rawls (1921-2002). Em sua mais expressiva obra, “Uma Teoria da Justiça”, Rawls formulou a ideia do “véu da ignorância” (“veil of ignorance”) e disse que, antes de adotarmos qualquer postura em prol ou contra determinado tema jurídico, devemos pôr sobre nossos olhos um “véu” que nos impeça de saber exatamente em qual das posições estaríamos no caso. Se independente da posição que venhamos a ocupar, ainda assim mantivermos nossa tese, então ela será legítima. Um exemplo ilustra o que se pretende dizer. Suponha que em um quarto de hospital há cinco pessoas doentes, cada qual carecendo de determinado órgão vital para sobreviver. Já em outro quarto, há uma pessoa saudável e em condições de doar seus órgãos aos demais. Isto, na perspectiva utilitarista, seria justificável, pois cinco vidas seriam salvas e uma – apenas “uma” – perdida. Para Rawls, contudo, antes de se aderir à perspectiva utilitarista, seu defensor, com o “véu da ignorância”, deve avaliar se caso ele ocupasse a posição de doador (leia-se: sacrificado), ainda assim manteria seu ponto de vista.[8]
Como se observa, o filme traz à tona debates, por exemplo, de cunho vinculado à bioética, repleto dos chamados “hard cases”, além de apresentar inúmeras aporias filosóficas e filosóficas do Direito. Demonstra, mais, que, conforme a corrente ideológica seguida, a solução para determinados casos pode receber desfechos diametralmente opostos, ambos, em tese, juridicamente “sustentáveis”. Daí a importância de se ter presente quais os fundamentos ideológicos que norteiam ordenamento jurídico de cada país, sobretudo a partir de suas diretrizes constitucionais, antes de emitir opiniões, fechar conclusões, proferir decisões.
O filme aborda, além do mais, temas não menos importantes, ao questionar, a todo momento, o que é afinal a vida e qual seria, em essência, a diferença, se é que existe, entre os “doadores” e “receptores”. Ou seja, quem é e quem não é destinatário da tutela jurídica decorrente do princípio da dignidade humana, se é que alguém pode não o ser...
Em conclusão, o filme “Não me abandone jamais” é uma oportunidade singular para estudar os fundamentos que inspiram e coordenam as relações jurídicas em suas mais diversas expressões.
REFERÊNCIAS
EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Tradução de H. P. de Andrade. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
SÓCRATES. Col. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin Claret, 2005.
SANDEL, Michael J. Justice: What’s the right thing to do? New York: FSG, 2009.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, Lisboa: Companhia Editora Nacional, 1964, p. 23.
Notas
[1] EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Tradução de H. P. de Andrade. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 16.
[2] SÓCRATES. Col. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 14.
[3] SANDEL, Michael J. Justice: What’s the right thing to do? New York: FSG, 2009, p. 34.
[4] A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776, firmou, dentre outros, o seguinte: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness”. Tradução livre do autor: “Nós consideramos estas verdades como evidentes em si mesmas, ou seja, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, e que entre estes direitos estão a vida, a liberdade e a busca da Felicidade.”
[5] SANDEL, Michael J. Op. cit,. p. 122.
[6] É a partir desta óptica que Kant formula um dos postulados mais importantes de seu pensamento: o Imperativo Categórico, o qual pode ser assim enunciado: “Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se tome em lei universal.” KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, Lisboa: Companhia Editora Nacional, 1964, p. 23.
[7] A propósito, vale transcrever as palavras do próprio Kant sobre o tema, a saber: “No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade. Tudo o que se refere às inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço de mercadoria; o que, embora não pressuponha uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, à satisfação que nos advém de um simples jogo, mesmo destituído de finalidade, de nossas faculdades intelectuais, tem um preço de sentimento; mas o que constitui a só condição capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si, isso não tem apenas simples valor relativo, isto é, um preço, mas sim um valor intrínseco, uma dignidade”. KANT, Immanuel. Op. cit., p. 32.
[8] SANDEL, Michael J. Op. Cit., p. 140-166.