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Tranporte desinteressado: a súmula 145 do STJ e sua aplicabilidade presente

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24/09/2012 às 14:23
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O transporte puramente gratuito deve ensejar responsabilidade ao motorista que gere lesões ao carona apenas quando provado ter agido com dolo ou culpa grave?

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa a dar um suporte doutrinário, compendiando a posição de alguns juristas pátrios a respeito do tema da responsabilidade civil do transportador, no transporte realizado gratuitamente, trazendo alguma luz atual sobre a Súmula 145 do Superior Tribunal de Justiça.

Não houve a mais leve intenção de se exaurir o assunto. Muito ao contrário, o limite da apresentação deve ser tomado como ponto de apoio para que o jurista se familiarize com o tema e siga adiante, perscrutando-o ao ponto em que seu fôlego permitir.

A matéria cria ainda celeuma visto que o tema transporte é algo relevante, em especial nas grandes cidades, devendo ser de perto analisado pelo gestor público.


2. DESENVOLVIMENTO

A matéria sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça sob o número 145[1] foi fruto de muita discussão anterior, doutrinária e jurisprudencial, vez que não havia disposição legal específica a respeito da responsabilidade do condutor quando este praticava o transporte desinteressado: se contratual ou aquiliana[2].

Em razão do caráter de benemerência, muitos autores passaram a designar o citado transporte como benéfico, de cortesia ou puramente gratuito, diferenciando-o do aparentemente gratuito onde o transportador não percebe nenhuma soma em pecúnia, mas aufere algum benefício (econômico ou não) em troca da atividade desenvolvida, demonstrando o interesse por detrás do transporte efetivado[3]. Tome-se, por exemplo, o transporte dos clientes de uma loja até um terminal de metrô, ofertado pelo empresário de maneira gratuita, mas puramente com vistas a atrair, conquistar e manter uma clientela, incrementando suas vendas.

Essa diferenciação entre uma modalidade e outra, a fim de se perquirir no caso concreto se realmente existem as características da comutatividade e onerosidade, essenciais ao contrato de transporte, é bem explicitada por Sérgio Cavalieri Filho[4].

De qualquer forma, o Código Civil de 2002, no parágrafo único do artigo 736, acabou, em certa medida, pondo fim a essa problemática de diferenciação entre os contratos gratuitos de transporte, pois dispõe que “não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas”[5], o que implica dizer que o transportador que alcançar alguma vantagem ou obtiver algum interesse com o transporte aparentemente gratuito se sujeitará ao regime legal imposto àquele que efetiva o transporte de modo oneroso, respondendo objetivamente por qualquer dano que o passageiro vier a sofrer.

Importante ressaltar que João de Matos Antunes Varela[6] esposou pensamento diferente quanto aos ditos contratos gratuitos. Para esse autor, sempre terá essa qualificação o transporte em que não existe correspectividade do transportado para com o ato do motorista, pouco importando que este último tenha qualquer interesse na prestação ofertada, quer de ordem moral, espiritual, ilícita etc., ou seja, “os motivos não contam como correspectivo para essa qualificação do contrato”.

No que tange ao transporte puramente gratuito (de cortesia ou desinteressado), nos termos do caput do supracitado artigo ele “não se subordina às normas dos contratos de transporte”, restando para a jurisprudência e doutrina o papel de definirem a sua natureza jurídica, se contratual ou não.

José de Aguiar Dias esposa a tese contratualista, caracterizando-o como um contrato inominado, “uma estipulação sui generis”[7], pois no seu entender nunca se chegou a demonstrar efetivamente a ausência do ânimo de se obrigar no transporte puramente gratuito.

Além disso, discorda do fato de que não haveria responsabilidade pela ausência de onerosidade, tomada esta pela dispensa no recebimento do preço, posto que o transportador não pode afastar as responsabilidades que advêm do vínculo negocial firmado, na medida em que os acidentes constituem riscos inerentes ao transporte (álea). Miguel Maria de Serpa Lopes[8] adere à mesma linha de pensamento.

Silvio Rodigues doutrina no mesmo sentido reconhecendo no transporte benéfico um contrato inominado, de natureza unilateral (ou contrato benéfico), lastreando seu pensamento na disposição do antigo artigo 1057[9] do Código Civil de 1916, representado pelo artigo 392 do Código Civil de 2002[10], de modo que a responsabilidade do transportador por danos provocados ao transportado “só se caracterizará se provado ficar que agiu com dolo ou culpa grave” [11].

No mesmo sentido a posição de Wilson Melo da Silva, para quem essa solução se mostra “destituída de maiores complexidades”, sendo certo que a aplicação do antigo artigo 1057 do Código Civil de 1916 ao caso em exame fundar-se-ia na equidade e no bom senso[12].

Já juristas como Pontes de Miranda[13], Zeno Veloso[14], Caio Mário da Silva Pereira[15], Luiz Cláudio Silva[16] entendem que a responsabilidade que aflora em virtude de danos ocasionados ao passageiro transportado gratuitamente é de natureza aquiliana ou extracontratual, não havendo que se falar na formação de nenhum vínculo contratual entre ambos.

Orlando Gomes[17] entende que o transporte de simples cortesia ou de condescendência não é contrato (na verdade, contrato de transporte), sendo a responsabilidade do transportador extracontratual, asseverando, no entanto, que o mesmo somente reparará o prejuízo caso o tenha causado por dolo ou culpa grave, excluindo as situações da dita culpa leve, nos exatos termos do que ficou assentado na Súmula 145 do STJ.

Na verdade, a posição de Orlando Gomes, como a da maioria dos juristas e que foi acolhida pela Súmula, é a de que não se poderia responsabilizar objetivamente o transportador desinteressado[18]. No entanto, a aplicação da responsabilidade extracontratual por completo seria impraticável, na medida em que o mesmo responderia por mera culpa leve ou levíssima, colocando em risco a continuidade do transporte amigável. Por isso o abrandamento validado pelo artigo 1057 do Código Civil de 1916, de maneira a se pautar a responsabilidade tão somente se demonstrado o dolo ou a culpa grave.

Assim, tendo como pano de fundo toda a dissenção a respeito do tema, o Superior Tribunal de Justiça, com respaldo nos cinco precedentes abaixo apresentados, ao editar a Súmula 145 procurou traçar um norte para as disputas judiciais que se abriam em razão de lesões ou danos sofridos pelo carona no chamado transporte benévolo, em que o transportador não aufere nenhuma vantagem, muito ao contrário, traz um benefício ao transportado que, por algum motivo, não se valeu de um meio de transporte prestado de maneira onerosa (ônibus fretado, ônibus de linha, táxi, trem etc.).

A referida Súmula, gerada justamente por não se encontrar positivada a natureza do transporte de simples cortesia e, consequentemente, a responsabilidade do transportador pelos danos ocasionados ao transportado[19], fundou-se na adequação e aplicação do artigo 1057 do Código Civil de 1916 ao transporte de pessoas praticado de maneira desinteressada, consolidando a tese de que somente nas hipóteses de danos causados por dolo ou culpa grave[20], àquele equiparada, é que se poderia responsabilizar o motorista pelos danos experimentados pelo passageiro transportado por benevolência, “isentando o transportador gratuito de responsabilidade nas situações de culpa leve ou levíssima”[21].

Os julgados que deram origem à Súmula 145 do Superior Tribunal de Justiça são os seguintes:

“Direito Civil. Responsabilidade Civil. Transporte gratuito. Orientação doutrinária. Recurso não conhecido. Segundo autorizada doutrina, o transportador somente responde perante o gratuitamente transportado se por dolo ou falta gravíssima houver dado origem ao dano. Não se conhece do recurso especial quando não demonstrado satisfatoriamente o dissídio e nem prequestionada a questão federal, mesmo implicitamente”. (STJ – 4ª. T. - Resp nº 3.035-0-RS – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – j. 28.8.1990 – RSTJ 80/337).

“Responsabilidade Civil – Transporte de simples cortesia. No transporte benévolo, de simples cortesia, a responsabilidade do transportador, por danos sofridos pelo transportado, condiciona-se à demonstração de que resultaram de dolo ou de culpa grave, a que aquele se equipara. Hipótese em que se caracteriza contrato unilateral, incidindo o disposto no artigo 1.057 do Código Civil”. (STJ – 3ª. T. – Resp. nº 38.668-3-RJ – Rel. Min. Eduardo Ribeiro – j. 25.10.1993 – RSTJ 80/346).

“Responsabilidade Civil. Transporte gratuito. Art. 1057 do Código Civil. A responsabilidade do transportador gratuito radica no âmbito do dolo ou falta gravíssima. Assim, mera culpa consubstanciada na impossibilidade de impedir o evento danoso não rende ensejo à reparação. Recurso conhecido e provido”. (STJ – 3ª. T. – Resp. nº 34.544-7-MG – Rel. Min. Cláudio Santos – j. 13.12.1993 – RSTJ 80/344).

“Recurso Especial. Falta de prequestionamento do dispositivo de lei federal dito contrariado. Recurso especial não conhecido. Maioria”. (STJ – 4ª. T. – Resp. nº 3.254-0-RS – Rel. Min. Bueno de Souza – j. 14.11.1994 – RSTJ 80/340).

“Responsabilidade Civil. Transporte de simples cortesia (ou benévolo). Dolo ou culpa grave. Quem oferece transporte por simples cortesia somente responde pelos danos causados ao passageiro em caso de dolo ou culpa grave. Jurisprudência do STJ. Art. 1057 do CC. Recurso conhecido e provido”. (STJ – 4ª. T. – Resp. nº 54.658-3-SP – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – j. 12.12.1994 – RSTJ 80/348).

Em todos os julgados acima os Recursos Especiais foram interpostos, quer pela seguradora (Resp 3035-0, Resp 3254-0), quer pelos transportadores vencidos em primeira e/ou segunda instâncias alegando divergência jurisprudencial, haja vista que as decisões teriam responsabilizado o condutor por mera culpa, com fundamento no artigo 159 do Código Civil de 1916, atual artigo 186, ao invés de lastrearem-se no artigo 1057 do Código Civil, atual artigo 392, em que se reconhece ao transporte gratuito a natureza de contrato unilateral (gratuito ou benéfico).

Essa posição sumulada, como já relatado anteriormente, vê no transporte puramente gratuito um contrato unilateral, em que há um acordo de vontade de ambas as partes – motorista e passageiro -, ainda que não se fale em remuneração ou qualquer outra espécie de contraprestação pelo transporte.

Wilson Melo da Silva, em doutrina que certamente teve papel relevante na fundamentação da Súmula 145 do Superior Tribunal de Justiça, esclarece que:

“tal artigo [1057 do Código Civil de 1916] dispõe de maneira genérica relativamente aos contratos unilaterais, sem restrições, fazendo abarcar, por isso mesmo, em seu bojo, tanto os contratos unilaterais nominados, como os inominados. Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”[22].

Importante lembrar que a discussão que levou à edição da Súmula 145 do Superior Tribunal de Justiça é anterior ao Código Civil de 2002, o qual já traz disposição a respeito do contrato de transporte e, especificamente, sobre o tema em análise, evidenciando que o transporte puramente gratuito não é contrato de transporte.

No entanto, esse novo disploma legal continua a não explicitar se tal transporte comporta ou não uma relação contratual, ainda que de natureza benéfica (ou unilateral), nos termos do seu artigo 392.

A maioria dos doutrinadores e julgadores continua a aceitar a Súmula 145, posicionando-se sob o entendimento de que o transporte de cortesia ou desinteressado, apesar de não corresponder a uma relação contratual de transporte, guarda a natureza de um contrato unilateral (agora dito benéfico) e, portanto, somente permite que o transportador, na eventualidade de danos gerados ao passageiro, venha a ser responsabilizado nas hipóteses de dolo ou culpa grave, excluindo-se as situações de culpa leve e levíssima.

Apesar da utilidade da Súmula na época em que foi editada, alguns juristas entendem que é chegada a hora da mesma ser revista sob o enfoque da justiça para com a própria vítima, em virtude da nova época, em termos de responsabilidade civil, onde se busca minimizar a quantidade de danos sem reparação.

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Sílvio de Salvo Venosa[23] assevera que nem sempre “atos de cortesia podem ser admitidos como vontade contratual”, na medida em que nem todos os acordos de vontade são negociais e buscam a formalização de um contrato. E, posto ser o parágrafo único do artigo 736 expresso no sentido de dispor não ser um contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia, entende que seria “a responsabilidade extracontratual a que melhor se amolda ao transporte gratuito”.

Enfático quanto à mudança de posição que devem adotar os juristas com respaldo no novo dispositivo do Código Civil (artigo 736), Arnaldo Rizzardo sustenta que com base nesse artigo:

“não cabe mais diferenciar a culpa, para efeitos da responsabilidade. Desde que presente, seja qual for o seu grau, decorre a responsabilidade. De observar que o dispositivo restringe-se unicamente a não considerar contrato o transporte feito gratuitamente. Afasta-se somente a responsabilidade objetiva”. Assim, “sempre que verificada a culpa incide a responsabilidade”[24].

Tentando ultrapassar a discussão e assentar o entendimento, Sérgio Cavalieri[25] ressalva claramente que nem mesmo como um contrato benévolo (nos termos do artigo 392 do Código Civil de 2002) poder-se-ia enquadrar o transporte de cortesia, haja vista que não existiria entre as partes a menor intenção de formalização de um contrato ainda que unilateral (em benefício do transportado)[26].

Aliás esse autor relata que não obstante “em alguns julgamentos” tenha sustentado “que o transporte puramente gratuito era regulado pelo art. 1057 do Código Civil de 1916 (atual art. 392), respondendo o transportador só por dolo”, mudou de posição em outros casos semelhantes, acabando por se convencer “que a solução justa e correta para o transporte puramente gratuito está na aplicação dos princípios que regem a responsabilidade aquiliana”.

Sua justificativa está no fato de que ao se estender ao transporte de cortesia a interpretação de que o mesmo seria um contrato unilateral ou benéfico (artigo 392 do Código Civil) o jurista colocaria “o carona, que, de certa forma, confiou em quem lhe ofereceu o transporte, em situação jurídica pior que a do pedestre eventualmente atropelado pelo mesmo motorista”, uma vez que para este bastaria a mera culpa pelo atropelamento (responsabilidade delitual), ao passo que para o carona seria imprescindível, ante a Súmula 145, que a conduta do motorista tenha sido dolosa. Tal situação redundaria em uma aberração jurídica, ao sugerir para um mesmo fato respostas distintas, de acordo com a esfera em que fôra julgado o caso.

Além do mais, para o citado autor, a equiparação entre culpa (grave) e dolo é errada, pois no seu sentir “não se confundem”[27].

A argumentação desse jurista deve ser analisada sob dois aspectos. Inicialmente, no que tange ao exemplo citado para justificar a teórica discrepância entre as posições do carona e do pedestre, vale-se de julgado em que este último faleceu e o motorista foi condenado, portanto, por homicídio deste e lesão corporal culposa pelas injúrias provocadas ao carona. Ora, nesta hipótese pode-se muito bem asseverar que a culpa provada no juízo penal quanto às lesões geradas ao transportado seria, no cível, possível de valorar-se como grave, haja vista que o pedestre acabou por falecer, o que implica dizer que o transporte era realizado de maneira tal que, de um modo ou de outro, levaria ao acidente do carona. Não haveria, segundo esse entendimento, incompatibilidade com a Súmula.

De qualquer modo, ainda que não tivesse havido a morte do pedestre e tanto este quanto o transportado sofressem alguma espécie de lesão corporal, mesmo que por culpa do motorista este poderia ser condenado na esfera criminal e, certamente, com respaldo no artigo 91, inciso I, do Código Penal, tornar-se-ia certa a obrigação de indenizar as vítimas no juízo cível, sem possibilidade de se rediscutir a culpa.

Neste aspecto sim, há, realmente, um choque com a Súmula 145 do STJ, na medida em que mera culpa (ainda que levíssima) provada e definida na esfera penal (com a condenação) bastaria para a indenização na esfera cível.

Ressalte-se que não há na legislação penal gradação de culpa (grave, leve ou levíssima) para efeitos da condenação: apurada e provada a culpa será condenado o autor do delito[28]. No entanto, como bem assevera Júlio Frabbrini Mirabete, “esses graus, não distinguidos expressamente na lei, tem interesse somente na aplicação da pena”, devendo o grau da culpa ser levado “em consideração como uma das circunstâncias do fato (art. 59[do CP])”[29].

O mesmo autor ainda entende “que está isento de responsabilidade o agente que dá causa ao resultado com culpa levíssima”[30]. Contudo, ressalva que existem posições doutrinárias contrárias, haja vista que não há disposição legal a respeito[31].

Entendo, não obstante o exemplo acima, que é adequada a indignação do autor mesmo quando se pensa no caso em que somente os danos gerados ao pedestre redundam em responsabilização penal. Nesta hipótese, este último realmente está em situação jurídica melhor do que a do carona, pois enquanto terá que provar, no mínimo, a culpa do lesante (na esfera criminal), o transportado deverá demonstrar, de acordo com o entendimento sumulado, no mínimo culpa grave do transportador (na esfera cível).

Relativamente ao entendimento de Sérgio Cavalieri de que impossível equiparar-se culpa ao dolo, Miguel Maria de Serpa Lopes possui a mesma visão, pois para ele “nada autoriza a se consagrar, de um modo geral em nosso direito, o princípio da culpa grave equivalente ao dolo”[32].

Serpa Lopes reconhece aos glosadores do Direito Romano a “tripartição da culpa em lata, leve e levíssima” a qual “foi adotada por Pothier e todos os jurisconsultos do direito antigo”.

Na verdade, a compilação de Justiniano – período da monarquia absoluta em Roma, de 284 d.C a 565 d.C. - já distingue os graus de culpa – lata (não compreensão do que todos compreendem), assemelhada ao dolo (lata culpa dolo similis est), e culpa levis (não observância do cuidado que teria o homem médio, o bonus patefamilias)[33]. No entanto, somente no século XII, posteriormente ao renascimento do Direito Romano na Itália, é que as codificações de Justiniano entraram no mundo ocidental, servindo de base para a construção de um sistema jurídico[34].

O entendimento da tripartição da culpa “foi demolido no começo do século XIX pelo trabalho clássico de HASSE acerca da teoria da culpa”. A classificação passou a ser entre culpa grave e culpa simples[35], nos dizeres de Serpa Lopes.

O Código Civil de 1916 não acolheu a tripartição da culpa, apenas a distinguiu do dolo. Por esse motivo, Miguel de Serpa Lopes entende impraticável querer-se equiparar culpa grave e dolo.

A título de curiosidade, destaque-se que houve um dispositivo legal, já revogado – parágrafo único do artigo 83 do Decreto-lei 483 de 8 de junho de 1938 (antigo Código do Ar) – que dispunha que nos casos de transporte gratuito ou a título gracioso, a responsabilidade se limitava apenas aos prejuízos resultantes de dolo ou culpa grave.

Há, ainda, a Súmula 229 do STF que fala em dolo ou culpa grave do empregador nas hipóteses de indenização acidentária, casos em que não se excluirá a indenização civil.

Desse modo, o que se percebe é que mesmo ante a ausência de qualquer dispositivo legal que trate especificamente sobre a diferenciação dos graus de culpa, ou mesmo sobre a equiparação entre culpa grave e dolo, a doutrina e a jurisprudência continuam a efetivar a comparação entre estes dois últimos, aceitando a gradação da culpa no caso em estudo para a única finalidade de tratar com moderação pessoa que praticou um ato por benemerência ou generosidade, evitando-se que o transporte por cortesia acabe caindo em descrédito.

Não obstante a Súmula 145 do Superior Tribunal de Justiça ainda estar sendo aplicada[36], não ter o Código Civil expressamente disposto a respeito da natureza do transporte de cortesia – se contratual ou não -, e ainda existir dispositivo semelhante ao antigo artigo 1057 do Código Civil de 1916 (artigo 392 do Código Civil de 2002), alguns doutrinadores, como acima visto, põem em xeque a real justiça da aplicação daquela Súmula a muitos dos casos de transporte por pura cortesia.

Mais do que questão de justiça – conceito por demais relativo – o que se deve avaliar é a real intenção do jurista embutida nas palavras da Súmula.

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Sobre a autora
Andréa Silva Rasga Ueda

Advogada desde 1994, com atuação por cerca de 12 anos em escritórios e 13 anos em corporações, com grande experiência no consultivo e contencioso civil, comercial, societário, M&A, operações de finanças estruturadas e de mercado de capitais, bem como em transações imobiliárias e questões envolvendo governança corporativa e compliance. De 2007 até hoje criei e gerenciei departamentos jurídicos de empresas nacionais e transnacionais. Forte experiência no regulatório de energia (de 2007 a 2012 e 2019 em diante), de mercado de capitais e de construção de torres para suporte às antenas de empresas de telecomunicações (desde 2013). Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA-SP), entre 2001 e 2002, na matéria de Prática em Processo Civil, bem como assistente de professor na matéria Direito Privado I e II, na Faculdade de Direito da USP, durante o ano de 2006, e professora colunista no IBijus desde maio de 2019. Graduada (1993), Mestre em Direito Civil (2009) e Doutora em Direito Civil (2015) pela USP, e Especialização em Administração de Empresas pela FGV/SP (2011). Meu site é: deaalex.wordpress.com. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6450080476147839

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

UEDA, Andréa Silva Rasga. Tranporte desinteressado: a súmula 145 do STJ e sua aplicabilidade presente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3372, 24 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22672. Acesso em: 18 dez. 2024.

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