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Responsabilidade civil do Estado pela concomitância entre processo administrativo e processo penal por crime contra a ordem tributária

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09/10/2012 às 09:15
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2 O Lançamento Tributário, O Processo Administrativo Fiscal e o Processo Por Crime Contra a Ordem Tributária

2.1 O Lançamento Tributário

A fim de que se possa avançar no estudo do objeto deste trabalho, mister serem fixados alguns conceitos sobre o lançamento tributário e suas conseqüências jurídicas.

O lançamento tributário é o instrumento pelo qual se confere exigibilidade à obrigação tributária, a qual se converte em crédito tributário.

Do art. 142 do CTN extrai-se que

“Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”.[29]

Conforme leciona Eduardo Sabbag, é o lançamento que “confere exigibilidade à obrigação tributária, quantificando-a (aferição do quantum debeatur) e qualificando-a  (identificação do an debeatur)”.[30]

A obrigação tributária é inexigível, porquanto carece de liquidez e certeza. Estes atributos são conferidos pelo Fisco quando este procede, de forma privativa, o lançamento, dando origem ao crédito tributário.

O STJ corrobora este entendimento no REsp 250.306/DF, de onde se extrai: “o crédito tributário não surge com o fato gerador. Ele é constituído com o lançamento”.[31]

O ponto crucial deste tópico é compreender que a Fazenda Pública só pode exigir o pagamento de um tributo após o lançamento, quando o crédito tributário estiver efetivamente constituído. Antes disso não há que se falar em obrigação líquida e certa.

Ao trazer liquidez e certeza à relação jurídico-tributária, o lançamento confere à Fazenda Pública o real dimensionamento do tributo a que tem direito. Por outro lado, o contribuinte passa a saber exatamente a abrangência do tributo que tem a obrigação de pagar. É com o lançamento, pois, que “o sujeito ativo fica habilitado a exercitar o ato de cobrança, quer administrativa, em um primeiro momento, quer judicial, caso aquela se mostre malsucedida”.[32]

Por cautela, vale mencionar que, a despeito do que reza o caput do art. 142 do CTN, hpa diversos modos pelos quais o crédito tributário pode ser formalizado (leia-se representado documentalmente). É que há possibilidade do próprio contribuinte, em alguns casos, apurar e declarar tributos devidos (ao preencher sua declaração de imposto de renda, por exemplo). Além disso, existem créditos tributários que são formalizados por ato judicial, como ocorre com as contribuições previdenciárias no bojo de ações trabalhistas.[33]

Em rápida linhas, vale mencionar que há três modalidades de lançamento, classificadas conforme o maior ou menor auxílio do contribuinte na constituição do crédito tributário. São elas:

a)  Lançamento de Ofício – art. 149 do CTN[34];

b) Lançamento por Declaração ou Misto – art. 147 do CTN[35];

c)  Autolançamento ou Lançamento por Homologação – art. 150 do CTN[36].

2.2 O Processo Administrativo Fiscal

Em linhas gerais, o processo tributário pode ser dividido em procedimento administrativo e procedimento judicial tributário.

“O procedimento administrativo tributário é desenvolvido na própria repartição fiscal e tem por finalidade resolver as possíveis controvérsias entre o Fisco e o contribuinte”.[37]

As características principais do procedimento administrativo fiscal são ele ser escrito, sigiloso e inquisitivo. Ademais, por razões de subordinação à Constituição da República, o processo administrativo, assim como o judicial, deve respeitar princípios como “o da legalidade objetiva, da imparcialidade, da impulsão oficial, da garantia de defesa, igualdade, publicidade, tipicidade e informação”.[38]

O procedimento administrativo tributário existe nas esferas federal, estadual e municipal, conforme a competência originária dos entes federativos para instituir e cobrar cada um dos tributos.

Na esfera federal, o PAF é regido pelo Decreto 70.235, de 6 de março de 1972[39], com as alterações supervenientes. Este arcabouço normativo serve de espelho para as normas que regulam os procedimentos administrativos fiscais estaduais e municipais.

Quando um agente competente verifica a existência de um ilícito tributário, lavra-se um auto de infração e imposição de multa (AIIM). Se o contribuinte (sujeito passivo) não concordar com o AIIM, deve apresentar uma impugnação por escrito, devidamente fundamentada e instruída com os documentos necessários, no prazo de 30 dias a partir da intimação. Estará instaurado o PAF. Em primeira instância, o Delegado da Receita Federal será responsável pelo julgamento. Caso o contribuinte discorde da decisão, terá recurso no prazo de 30 dias para a segunda instância administrativa que, na esfera do contencioso fiscal da União é formada por um órgão colegiado de composição paritária, o Conselho de Contribuintes. A decisão dos Conselhos é final quando for favorável ao contribuinte. Porém, se for favorável ao Fisco, será possível recorrer à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) se a decisão não foi unânime ou se contrária ao posicionamento consolidado de outra Câmara de Conselho de Contribuintes ou da própria CSRF.[40]

Uma vez encerrado o PAF, ter-se-á uma decisão que irá favorecer o Fisco ou o Contribuinte. Se o Fisco restar vencido, a questão estará encerrada.

 “As decisões de que trata o art. 42[41] fazem coisa julgada na esfera administrativa, não podendo ser desrespeitadas pela administração, que deve acatá-las”.[42]

Contudo, se o Contribuinte restar perdedor, ele poderá dar origem a um processo judicial na tentativa de garantir seus direitos. “Ao contribuinte, todavia, é garantido o acesso ao poder judiciário para rediscutir qualquer decisão que lhe seja contrária”.[43]

A Fazenda, por sua vez, vai utilizar-se do Poder Judiciário para, através de um processo especial denominado execução fiscal, efetuar a cobrança do crédito tributário. Para propor uma execução fiscal “a Fazenda Pública necessita antes inscrever seu crédito em livro próprio e anexar à petição inicial do processo uma certidão extraída desse livro, contendo os requisitos relacionados no art. 202[44] do CTN”[45]. Trata-se da Certidão de Dívida Ativa (CDA).  

2.3 Delito Contra a Ordem Tributária

Na definição tradicional, crime é um ato típico, antijurídico e culpável.

Crime tributário, ou delito contra a ordem tributária é o ato dotado de tipicidade, contrário a lei, que quando cometido dolosamente[46] por um sujeito este estará sujeito às sanções previstas em lei. 

Tipicidade é o perfeito encaixe da conduta concreta na previsão abstrata da norma penal incriminadora. Trata-se do fenômeno da subsunção. “A tipicidade implica necessariamente circunscrever aquilo que, para proteção de um determinado bem jurídico específico, deve sofrer a atribuição de uma sanção com a gravidade da sanção penal, deixando fora do alcance penal todo o restante”.[47]

No que tange à antijuridicidade pode-se dizer que “envolve a indagação pelo interesse ou bem jurídico protegido pelas normas penais e tributárias referentes ao ilícito fiscal”.[48]

Sobre a culpabilidade, pode-se dizer que está relacionada à possibilidade ou não de aplicar uma pena a quem cometer um fato típico e antijurídico. Para que a culpabilidade esteja presente exige-se a concomitância de uma série de requisitos:

“capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta - que constituem os elementos positivos específicos do conceito de culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal”. [49]

Quando o conceito de crime recai sobre uma atividade inerente à relação jurídico-tributária, tem-se um delito contra a ordem tributária, onde sanção cominada pode ir desde multa até privação de liberdade.

É preciso ter em mente, porém, que a Constituição da República estabelece em seu art. 5º, LXVII que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e o depositário infiel”.[50]

Neste norte, a cominação de pena de prisão para o contribuinte que deixou de pagar uma obrigação tributária estaria eivada de inconstitucionalidade.

A doutrina não silencia sobre a situação. Dejalma de Campos questiona se a proibição de prisão por obrigação pecuniária desobedecida não abrangeria a tipificação como crime do inadimplemento de tributos.[51]

Já Agostinho Tavolaro[52] tece interessantes considerações sobre o tema, que merecem ser transcritas, in verbis:

“A nós nos parece anacronismo voltarmos, nos tempos hodiernos, a vincular o pagamento da dívida fiscal ao corpo do devedor. Que respondam seus nems, como desde há muito se preconizou e praticou. A dívida por imposto é dívida, não pena. Dívida há de ser saldada em seus bens ou numerários; jamais com o corpo. O Estado não pode e não é um mercador de Veneza, ávido para receber a libra de carne de um vivente em pagamento de uns tantos ducados de ouro. Dar a essa dívida os caracteres de crime parece-nos atentar contra a natureza das coisas e desatender a substância das condutas, chegando a extremos que mesmo a sociedade em seu estágio atual reluta em aceitar”.

Críticas à parte, é fato que no Brasil a Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990 definiu os crimes contra a ordem tributária. O Capítulo I, Seção 2 da referida lei prevê os crimes desta espécie cometidos por particulares.

No art. 1º[53] estão previstas as condutas que caracterizam o crime de supressão ou redução de tributos. Já no art. 2º[54], há a previsão de outras condutas que também são consideradas crimes contra a ordem tributária.

2.3.1 Erro na interpretação da legislação tributária e consumação do delito contra a ordem tributária

Imagine-se a seguinte hipótese. Se ocorrer de fato o não pagamento de um tributo, ou o seu pagamento ocorre em valor menor do que o devido, em função erro cometido pelo contribuinte na interpretação da legislação tributária, está consumado o crime contra a ordem tributária?

Esta pergunta tem relação direta com a questão do exaurimento da via administrativa antes do oferecimento da denúncia na ação penal. Além disso, a questão está intimamente relacionada com a temática da interpretação da legislação tributária.

Será que o contribuinte não pode interpretar a lei?

É evidente que pode. Não existe qualquer obrigatoriedade de o contribuinte se submeter irresignadamente ao entendimento da Fazenda quando for plausível interpretação em sentido diverso.

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Por cautela, faz-se necessário salientar que, apesar do justificável erro de direito excluir a tipificação, se houver uma ocultação dolosa, ou fraude dolosa, configurado estará o crime fiscal.

Qual o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão?

No HC 81.611-DF, o Supremo decidiu que a consumação dos delitos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90 somente ocorre com a constituição definitiva do lançamento[55], ou seja, com o trânsito em julgado da decisão final na esfera administrativa.

Não haveria que se falar, portanto, em oferecimento de denuncia antes do trânsito em julgado administrativo, porquanto sequer teria havido consumação do crime.

Desta maneira, pode se dizer que se o contribuinte estiver discutindo em Administrativamente uma interpretação plausível, há de se sobrestar o oferecimento da denúncia. A uma para evitar a ocorrência de decisões contraditórias. E a duas porque, segundo o entendimento do Supremo exarado no HC 81.611-DF sequer há consumação do delito antes do transito em julgado administrativo.


3 Responsabilidade Civil do Estado por Danos Causados ao Contribuinte Pela Concomitância das Instâncias Administrativa e Judicial

3.1 A Necessidade do Prévio Exaurimento da via Administrativa

Faz-se necessário investigar se o ordenamento jurídico brasileiro permite que o Promotor de Justiça ofereça denuncia por crime contra a ordem tributária durante o trâmite de processo administrativo que trata da matéria.

Se a noticia criminis chegar ao promotor e este oferecer denúncia por crime contra a ordem tributária que reste recebida pelo magistrado, instaurar-se-á processo crime contra o contribuinte que supostamente reduziu ou suprimiu tributos.

Precipuamente, é necessário salientar que um dos princípios norteadores do direito penal é o da intervenção mínima. Este princípio “orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico”. Neste sentido, “se para o restabelecimento da ordem jurídica violada foram suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais”.[56]

É evidente que a força coercitiva que um processo crime tem sobre a vida                                                                                                            do contribuinte, com a ameaça iminente de aplicação de pena privativa de liberdade, pode fazer com que o processo crime seja utilizado como um meio para constranger o contribuinte e forçá-lo a recolher o tributo.

“Quem observa a história recente do Brasil vai verificar uma utilização abusiva do Direito Penal, o que vem contrariar os princípios deste ramo do Direito, que tem sido usado como instrumento de controle, esquecendo-se o seu caráter subsidiário, como recurso final que pode o Estado utilizar após o uso dos demais instrumentos de política econômica ou de controle”.[57]

Esta utilização indiscriminada do direito penal como meio de coerção a partir da previsão abstrata de cominação de pena privativa de liberdade para diversas condutas acaba por ter um efeito diverso do intencionado pelo legislador.

“Os legisladores contemporâneos – tanto de primeiro como de terceiro mundo – têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame[58], levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos”.[59]

Tendo isto em mente, o professor Hugo de Brito Machado desde cedo adotou a posição de que não é possível a propositura da ação penal antes do exaurimento da via administrativa porque neste ínterim sequer se sabe se houve supressão ou redução de tributo devido.

Os julgadores administrativos nada mais fazem do que exteriorizar, através do Processo Administrativo Fiscal - PAF, a vontade da própria administração pública. Dessarte, a decisão final do PAF é a palavra da Fazenda Pública. Se a Fazenda concluir que não houve redução ou supressão de tributo, haverá uma incongruência tremenda se o contribuinte já estiver enfrentando o desgaste de uma ação penal, quiçá até mesmo com sentença transitada em julgado cominando in concreto pena privativa de liberdade.

Em que pese hoje o STF já ter firmado entendimento no sentido de que não é possível o início da ação penal antes de concluído o PAF, é necessário lembrar que durante anos a polêmica perdurou no meio jurídico.

Os adeptos da concomitância argumentavam que se fosse necessário esperar pela solução administrativa, quando chegasse o momento de ofertar a denúncia provavelmente o delito estaria prescrito.

Tal problema foi enfrentado pelo Supremo no leading case HC 81.611-DF adiante estudado.

3.1.1 Leading case: HC 81.661-DF

O Habeas Corpus 81.661, do Distrito Federal, constitui verdadeiro leading case sobre a matéria.

Na esteira do voto do Min. Nelson Jobim, o STF acolheu, por maioria, a tese de que é necessário exaurir a via administrativa para só então, se for o caso, ser acionada a esfera penal. O Min. Nelson Jobim sustentou que no PAF o

Ao observar que o Supremo acatou a posição que há tempos defendia, Hugo de Brito Machado escreveu:

“No julgamento do HC 81.661, dia 10.12.2003, o Supremo Tribunal Federal fixou finalmente sua jurisprudência no sentido da tese que temos defendido. O assunto rendeu divergências, tanto que a decisão não foi unânime. Restaram vencidos a Min. Ellen Gracie e os Mins. Joaquim Barbosa e Carlos Brito. Importante, porém, é que, a final, restou afastada a possibilidade de uso da ação penal como instrumento de coação contra o contribuinte com o objetivo de impedir que o mesmo conteste, pelas vias legais, a cobrança de tributo indevido”[60].

Em suma, neste acórdão paradigma o Supremo criou duas normas jurídicas:

a)Inviabilidade de oferecimento de denúncia antes do trânsito em julgado administrativo;

b) Enquanto estiver em curso o PAF não correrá a prescrição da pretensão punitiva.

Esta última conclusão decorre do seguinte raciocínio: enquanto o credor do tributo não afirmar definitivamente que há um tributo devido, não há que se falar em prescrição da pretensão punitiva da ação penal que apuraria a suposta supressão ou redução deste tributo.

Ao decidir pela impossibilidade de se instaurar a ação penal antes do trânsito em julgado da decisão administrativa favorável ao Fisco, os Ministros do Supremo definiram que o processo penal não pode ser utilizado como meio para coagir os contribuintes a pagar tributos.

“Esse aspecto foi destacado, com inteira propriedade, pelo Min. Nel­son Jobim, sustentando que no processo administrativo fiscal o contribuinte exerce seu direito ao contraditório e à ampla defesa, e a instauração de ação penal antes de concluído esse processo administrativo consubstancia uma ameaça ao contribuinte. Quem conhece o comportamento do Ministério Público, que em mui­tos casos atua como verdadeiro cobrador de impostos, sabe muito bem que a ameaça de ação penal pode levar o contribuinte a pagar o tributo mesmo quando seja este flagrantemente indevido. E isto, evidentemente, não é compatível com o Estado Democrático de Direito, no qual deve ser asse­gurado a todos o direito de não pagar tributos indevidos”[61]

3.2 A Lei nº 9.430 de 27 de dezembro de 1996

Consoante o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, a ação penal para apuração do crime contra a ordem tributária só pode ser deflagrado após decisão definitiva prolatada na esfera administrativa.

Vejamos o inteiro teor do referido artigo, porquanto de crucial importância para o presente trabalho:

“Crime contra a Ordem Tributária

Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz”.[62]

Vê-se, pois, que o art. 83, dispositivo dotado de clareza solar, positivou a questão que durante tantos anos gerou debates e consolidou o entendimento de que a instauração de ação penal por crime contra a ordem tributária é incompatível com o processo administrativo ainda pendente.

Conforme explica Dejalma de Campos, a tipicidade prevista no art. 83 supra citado “é condicionada à constituição definitiva, vale dizer, à tipificação da respectiva infração tributária, e isto se explica porque a ação penal somente pode ser deflagrada após ser prolatada a decisão final administrativa”.[63]

É possível dizer que este dispositivo legal consagra a prejudicialidade do processo administrativo em relação à ação penal. Em outras palavras:

“a ação penal não poderá ser deflagrada sem que esteja definitivamente constituído o crédito, isto é, a eficácia que o torna indiscutível na esfera administrativa e tratando-se de débitos apurados mediante lavratura de auto de infração, poderá ocorrer do decurso do prazo de impugnação administrativa ou de decisão final prolatada no respectivo processo administrativo pela autoridade ou órgão colegiado competente”.[64]

Consoante visto no capítulo anterior, os direito penal tributário prevê tipos penais que dependem da ocorrência de fatos na esfera tributária.

É neste sentido que o jurista Zelmo Denari conclui que o tipo penal concernente aos delitos fiscais “encontra-se indissoluvelmente ligado à tipificação do ilícito fiscal, pois se trata de uma mera projeção da infração tributária que, por sua vez, resulta da decisão final proferida em processo administrativo fiscal”.[65]

3.3 Responsabilidade Civil do Estado pela Concomitância entre Processo Administrativo e Processo Penal por Crime Contra a Ordem Tributária

Com o lançamento de um débito tributário, especialmente quando efetuado de forma ostensiva, a credibilidade do contribuinte sofre um abalo perante a sociedade na qual está inserida.

Quando ocorre um lançamento tributário indevido e o contribuinte tem que buscar as vias administrativas para esclarecer o equívoco, inaugura-se uma “verdadeira via-crúcis” com prazo de duração longo e indeterminado. Nas palavras de Armond[66]:

“[...] o resultado de tamanho transtorno, por ineficiência do Estado, acarreta indenização a título de danos morais, utilizando-se como critério indicativo desse valor o dobro da quantia exigida, ex vi do art. 940 do Código Civil de 2002. É óbvio que outros prejuízos de cunho material podem também ser objeto de pleito indenizatório, ad exemplum: impedimento de participar de licitação, financiamento negado, linha de crédito glosada junto ao sistema financeiro etc. Tais situações significam prejuízo muito superior àquele patamar legal, logo, a indenização deverá ser compatível com a circunstância presente”.

Neste contexto, Roberto Armond verifica que “a inscrição indevida, por erro imputado ao Estado, é indenizável e o Poder Judiciário é o caminho mais célere para solucionar os transtornos originados por este”[67].

Em outro norte, além de toda a exposição e prejuízos à imagem do contribuinte, este tem que se empenhar em uma árdua batalha jurídica para proceder sua defesa no processo administrativo fiscal. Despesas com honorários advocatícios são inevitáveis, e o contribuinte é forçado a dispender recursos para provar sua inocência, tudo em função de uma atitude muitas vezes precipitada do Fisco.

Como se não bastasse, antes mesmo de ter o crédito tributário definitivamente constituído pelo trânsito em julgado da decisão administrativa favorável ao Fisco, o contribuinte pode ser surpreendido com a citação em um processo penal por crime contra a ordem tributária.

Se o mero lançamento ostensivo já gera danos ao contribuinte, o que dizer então da concomitância entre o processo administrativo e o processo criminal?

O cidadão se vê no banco dos réus sem ao menos o próprio credor ter decidido definitivamente se havia um débito para ser inadimplido. Lembre-se que, conforme visto alhures, o crédito tributário somente é definitivamente constituído com o trânsito em julgado do processo administrativo.

O que se dizer então, da continuidade do processo criminal, mesmo após ter havido decisão administrativa definitiva em que se verificou a inexistência do fato gerador do tributo? Evidentemente que o contribuinte, ora réu, está sendo submetido a uma provação desproposital e descabida.

Demorou, mas o Poder Legislativo finalmente positivou a matéria, adotando a orientação jurisprudencial, quando da publicação do art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, segundo o qual a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão administrativa final onde conclui-se pela exigibilidade do crédito tributário.

Hugo de Brito Machado defende que a admissão da concomitância dos processos administrativo e penal implica atribuir à ação penal a função de “contranger o contribuinte ao pagamento de tributo, que pode não ser devido”[68].

Conclui o mestre:

“Assim, para que sejam preservados os direitos constitucionais do contribuinte, entre os quais o de pagar apenas os tributos devidos, e de utilizar-se para este fim, do direito ao contraditório e da ampla defesa, inclusive no processo administrativo, não se pode admitir a denúncia sem o prévio exaurimento da via administrativa” [69].

Sobre a pretensão dos contribuintes de serem ressarcidos por eventuais danos, é certo que, ainda que o Estado esteja agindo de maneira legítima, se houver dano causado pela conduta do agente estatal e nexo de causalidade surge o dever de ressarcir, tudo conforme pressupostos da pretensão ressarcitória vistos no capítulo 1 deste trabalho.

Vale lembrar que “o Estado é obrigado a ressarcir prejuízos causados a particular, embora tais prejuízos sejam conseqüência indireta de atividade legítima do Poder Público”.[70]

Cahali[71], citando Duez, leciona que todo dano anormal, extraordinário, que, em função de sua importância ou natureza, é superior aos sacrifícios e incômodos normalmente exigíveis na vida em sociedade, deve ser encarado como um atentado à igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. Não se estaria observando a equidade se apenas um ou outro administrado arcasse com as consequências dos atos exercidos pela administração em nome da coletividade. É justo que todos suportem os encargos daí advindos, através do ressarcimento dos danos causados.

Mister salientar que, tendo em vista a predominância da responsabilidade objetiva do Estado no direito brasileiro, o dano ressarcível pode resultar de ato doloso ou culposo da administração, mas também de ato que “embora não culposo ou revelador de falha da máquina administrativa ou do serviço, tenha-se caracterizado como injusto para o particular, como lesivo ao seu direito subjetivo”[72].

Desta maneira, a utilização do direito penal como instrumento de coação para o pagamento de tributos, ainda que não pudesse ser caracterizado como ato ilegal antes do advento da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, é pelo menos injusto para com o particular.

Quais seriam, pois os requisitos para se pleitear uma indenização por dano causado por atividade legítima do Estado? Além daqueles já inerentes à responsabilização civil – dano, ação e nexo de causalidade – é preciso observar se o ato é anormal e especial.[73] Anormal é aquele ato que excede os incômodos normais da vida em sociedade. Especial é aquele ato relativo a uma pessoa ou a um grupo de pessoas.

Consoante leciona Oreste Laspro, “a anormalidade é casuística e ficará a cargo do bom-senso do julgador sua aferição no caso concreto. Importante, nesse ponto é a distinção entre o simples dano e o dano juridicamente tutelado”.[74]

É de ressaltar as características que devem ser observadas para que a pretensão do cidadão de ser ressarcida por dano causado pelo Estado tenha fundamento jurídico: “quando o evento danoso corresponda à lesão a um direito da vítima, ou seja, situação legítima, protegida pelo direito; for certo, não eventual (especial e anormal), de valor econômico apreciável, ainda que seja dano moral”.[75]

O Estado pode, pois, a partir de uma ação legítima ou ilegítima, causar danos ao administrado que não atingem sua esfera patrimonial, mas sim direitos personalíssimos ligados à sua esfera moral.

Quando o mesmo Estado que ainda não decidiu definitivamente sequer pela existência de um crédito tributário processa criminalmente o contribuinte, submetendo-o a todas as agruras inerentes a um processo por crime contra a ordem tributária, deve responder pela dor e aflição causadas, além de reparar eventuais danos materiais.

3.4.Instrumentos Jurídicos para Satisfazer a Pretensão Ressarcitória

Para inibir a atividade lesiva do Estado, o ordenamento jurídico prevê instrumentos de responsabilização dos órgãos estatais por suas condutas que gerem prejuízo.

Um mecanismo jurídico para o administrado ressarcir-se dos d anos causados pela atuação do agente estatal é a ação de indenização por perdas e danos contra o ente público. O embasamento jurídico é o já citado §6º do art. 37[76] da Constituição, além dos art. 186, 187[77] e 927[78] da Lei 10.406/2002. Dentre os dispositivos do código civil, vale mencionar o conteúdo do art. 186 que diz: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito a causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.[79]

Inobstante a previsão constitucional de possibilidade exercício de direito de regresso pelas pessoas jurídicas de direito público em detrimento de seus agentes, há doutrina de respaldo que defende a responsabilização direta dos agentes causadores de dano.

Nas palavras de Hugo de Brito Machado que seguem na íntegra fica bem evidenciada a necessidade de responsabilização dos agentes públicos que cometem atos ilícitos no exercício de suas funções como agentes fiscais.

“Enquanto ninguém for responsabilizado pelas práticas ilegais, o fisco vai continuar agindo de forma arbitrária, porque as autoridades não estão preocupadas de nenhum modo com a legalidade. Mesmo que haja respon­sabilização da entidade pública, a ilegalidade seguirá sendo praticada, por­que cada governante vai deixar o problema da indenização para o suces­sor, cuidando apenas de protelar o desfecho da questão. Entretanto, no momento em que a autoridade sentir-se responsabilizada, pessoalmente, pela conduta ilegal ou abusiva, certamente vai pensar bem antes de pros­seguir em sua prática”. [80]

Naturalmente, uma corrente contrária crítica o posicionamento de Machado pró responsabilização pessoal. O argumento principal daqueles que acreditam que a responsabilização pessoal do agente público inviabilizaria a atuação profissional do agente fiscal em função da segurança jurídica que seria gerada. Em função da complexidade da legislação tributária, é comum encontrar-se divergências jurisprudenciais e doutrinárias. Como poderia o agente público incumbido da função de fiscal de tributos atuar sem saber como agir para não ser, ao final, responsabilizado por eventuais danos aos contribuintes?

Prosseguindo sobre o tema, o professor Machado responde aos críticos:

“Tal argumento, embora à primeira vista pareça procedente, na verda­de não resiste a um exame mais atento. Em primeiro lugar porque à mes­ma insegurança estamos todos submetidos, e o contribuinte, quando viola a lei, submete-se a pesadas multas, sem que o Fisco admita a seu favor o argumento fundado na complexidade das leis e nas divergências jurisprudenciais. Em segundo lugar, a responsabilidade do agente público só será a final reconhecida e afirmada na sentença que o condenar ao pagamento da indenização se o juiz restar convencido de que realmente configurou-se sua culpa ou dolo. Esses elementos subjetivos devem ser apreciados pelo juiz, em cada caso. O que não é razoável é admitir, sob o pretexto da insegurança jurídica, uma conduta inteiramente irresponsável daquele que age em nome do Estado”[81].

Na esteira da melhor doutrina, portanto, a ação cível cobrando indenização do agente que cometeu o ato ilícito em excesso de exação é um bom instrumento para satisfazer a pretensão do contribuinte de se ver ressarcido das despesas que teve para se defender de cobrança flagrantemente ilegal[82].

Neste ínterim, Büring conclui que os autores pesquisados, de uma forma geral, “compreendem a responsabilidade como uma obrigação de reparar economicamente os danos causados a terceiros, em razão de comportamentos unilaterais, comissivos ou omissivos, legítimos ou ilegítimos, lícitos ou ilícitos, materiais ou jurídicos, que sejam imputáveis ao agente público”.[83]

A regra, pois, é que o lesado exerça seu direito de ação em detrimento do órgão público, até mesmo porque a capacidade econômica do requerido é primordial em uma ação de reparação de danos.

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Sobre a autora
Gabriela Lucena Andreazza

Advogada, professora de Direito Notarial e Registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDREAZZA, Gabriela Lucena. Responsabilidade civil do Estado pela concomitância entre processo administrativo e processo penal por crime contra a ordem tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3387, 9 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22766. Acesso em: 16 abr. 2024.

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