4Accountability e Controle Público
O controle público da gestão governamental tem íntima relação com o debate da democracia participativa, tendo em vista que a participação social busca, em certa medida, controlar as ações dos governantes e, sobretudo, intervir nas políticas propostas pelo governo. Nessa discussão, cabe também aos movimentos sociais e demais organizações da sociedade organizada estudar, articular e questionar a noção de accountability a fim de que possam intervir de forma mais efetiva.
Insta observar que, via de regra, a accountability é um mecanismo favorável à consolidação das sociedades democráticas e que pode garantir uma maior participação social na gestão das políticas públicas (ARATO, 2002). A compreensão de accountability, com base especialmente no trabalho de O’Donnell (1988), tem identificação com a definição proposta por Luis Miguel (2005), para quem,
... accountability diz respeito à capacidade que os constituintes têm de impor sanções aos governantes, notadamente reconduzindo ao cargo aqueles que se desincumbem bem de sua missão e destituindo os que possuem desempenho insatisfatório. Inclui a prestação de contas dos detentores de mandato e o veredicto popular sobre essa prestação de contas. É algo que depende de mecanismos institucionais, sobretudo da existência de eleições competitivas periódicas, e que é exercido pelo povo. (MIGUEL, 2005, p. 27-28)
Nesse debate, a accountability surge como o principal instrumento a ser utilizado para legitimar e garantir a eficiência da ação governamental (CARNEIRO; COSTA, 2001), sendo importante discutir as formas pelas quais tal controle público se manifesta.
Podem-se classificar os mecanismos da accountability em “horizontais” e “verticais”. Horizontais são aquelas atuações feitas pelo Estado, ou seja, órgãos estatais, de hierarquia ou diversa, que têm por função a fiscalização das ações realizadas por outro órgão. Verticais são aquelas feitas pela sociedade, englobando aqui o eleitorado e a opinião pública / meios de comunicação. Embora se reconheça que a eleição seja o mecanismo central de accountability nas sociedades democráticas – ou nas poliarquias modernas, usando a nomenclatura utilizada por O’Donnell (1988) –, somente o voto é insuficiente como instrumento de prestação de contas dos governantes à sociedade.
Mais especificamente, a accountability horizontal pode ser definida como a “existência de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment” (O’DONNELL, 1988). Dentre as formas de controle exercidas pelo Estado, destacam-se os três poderes, criados na lógica de freios e contrapesos (i.e., um poder fiscalizando o outro: o Executivo fiscalizado pelo Legislativo e pelo Judiciário, o Legislativo fiscalizado pelo Judiciário, e pouca ou nenhuma accountability do Judiciário), além das agências reguladoras criadas pelo Executivo com poder regulatório em determinada área temática.
Dentre as inovações criadas pela Constituição de 1988, cabe também salientar como mecanismo de accountability horizontal o papel concedido ao Ministério Público como guardião do interesse público, gozando de independência e poder fiscalizador sobre os três poderes. Podem-se ressaltar também, no âmbito brasileiro, as comissões parlamentares de inquérito e os conselhos de ética das casas legislativas, bem como os Tribunais de Contas e Controladorias/Auditorias Gerais, estes com atuação mais focada na probidade e legalidade administrativas.
Quanto às formas de controle verticais, exercidas pela sociedade civil, podem-se estabelecer duas subdivisões: accountability eleitoral e accountability societal. A prestação de contas eleitoral é a forma de controle clássica da população (eleitorado) sobre seus representantes e parte do pressuposto de que o vínculo de legitimidade do governante reside em sua representatividade, não levando em consideração que o contexto político e socioeconômico tem impacto no sistema eleitoral. Tal noção mostra-se insuficiente na medida em que pressupõe que a reeleição de determinado representante (ou a eleição de seu sucessor) está necessariamente relacionada ao cumprimento de seus compromissos eleitorais ou à estrita satisfação do eleitorado com seu governo:
Accountability política é um princípio importante que pode ajudar a dar sentido à noção de soberania popular num regime de democracia representativa. Mas, se a consideramos como o único princípio importante, colocamos em risco a própria accountability. No nível do modelo institucional, accountability deve ser complementada por instituições de deliberação, constitucionalismo e representatividade descritiva. Mas a precondição mais importante para que um sistema de accountability realmente funcione é a atividade dos cidadãos nos fóruns públicos democráticos e na sociedade civil. (ARATO, 2002, p. 103)
Ao adotar a accountability societal como uma concepção alternativa ao mecanismo de controle eleitoral, pode-se constatar que importantes setores sociais têm se organizado a fim de proceder a uma supervisão do desempenho dos governantes. Visando dar suporte ao vínculo representativo (PERUZZOTTI, 2006), esses setores vêm exigindo que os governantes apresentem comportamentos que se enquadrem dentro dos atributos da responsabilidade (legal e política) e da responsiveness (capacidade de um governante atender e ser responsivo em relação às demandas e preferências do eleitorado):
O espaço público de muitas das novas democracias está sendo gradualmente ocupado por uma nova geração de associações civis, ONGs, movimentos sociais e organizações da mídia organizadas em torno de uma política de accountability societal. Essa política de accountability societal representa uma das diversas formas de politização com base na sociedade civil que têm lugar nas novas democracias. [...] O conceito de accountability societal faz referência a um conjunto diverso de ações e iniciativas civis guiadas por demandas de accountability legal. Essa nova forma de política que surge no espaço da sociedade civil engloba uma variedade de formas de ação coletiva e de ativismo cívico que compartilham uma preocupação comum em melhorar o funcionamento das instituições representativas através do fortalecimento dos mecanismos de controle da legalidade da burocracia pública. (PERUZZOTTI, 2006, p. 5. Tradução livre do autor)
Nesse âmbito, mostram-se relevantes as três formas de manifestação da accountability societal, quais sejam: as associações / ONGs; os movimentos sociais; e a mídia. Conforme explicitado, as associações e ONGs consistem em estruturas de caráter permanente e altamente profissionalizadas que dispõem de um corpo técnico voltado tanto para a fiscalização das ações governamentais quanto para a utilização de instrumentos legais e políticos de controle e monitoramento. Já os movimentos sociais configuram-se pela mobilização de grupos sociais diretamente afetados por ações governamentais discricionárias e, utilizando-se de seu potencial agregador e mobilizador, têm por objetivo o direito ao reconhecimento e à participação nas políticas. Por sua vez, a mídia (em especial, setores do jornalismo independente) tem atuado na visibilidade de denúncias de corrupção e falta de transparência, bem como na investigação de novas irregularidades e na divulgação de ações empreendidas por associações e movimentos.
A accountability societal consiste, portanto, em um mecanismo de controle não eleitoral que se utiliza de ferramentas institucionais e não institucionais, como ações legais, participação em instâncias de monitoramento e meios de comunicação. Em outros termos, atua por meio da articulação entre associações, movimentos e mídia, a fim de expor os erros e falhas do governo e pautar o debate da participação social na agenda pública, influenciando as decisões e políticas implantadas pelo governo (CARNEIRO; COSTA, 2001).
Dadas as experiências de controle público exercido pela sociedade civil, constata-se que as ações desta têm maior impacto a partir do momento em que se articulam com outros mecanismos de accountability. Em outras palavras, pode-se dizer que uma das principais funções das iniciativas de accountability societal é a ativação de mecanismos de prestação de contas, seja eleitoral ou administrativa. Embora tal responsabilização por meio dos outros mecanismos de controle não ocorra de maneira vinculante, a pressão social, em muitos casos, faz com que as agências estatais responsáveis pelo controle atuem de forma mais dedicada e efetiva, o que poderia não ocorrer sem a atuação das organizações, movimentos e mídia (PERUZZOTTI, 2006).
O principal limite à accountability societal abrange exatamente o desgaste público que pode advir ao sistema político a partir de constantes denúncias de corrupção e falta de responsabilização dos atores envolvidos. Os mecanismos de controle público devem realizar o monitoramento constante das atuações governamentais; contudo, sua atuação no sentido de denúncias, pressão política e mobilização deve ser empreendida de maneira eventual e responsável, sob risco de a descrença no sistema político gerar a ruína do próprio Estado (ARATO, 2002; O’DONNELL, 1988).
5Experiências de Participação na Gestão das Políticas Públicas
A expansão democrática para os países do Sul, a partir dos anos 1970 e 1980, envolveu uma relação estreita com movimentos sociais, que lutavam não somente pela democratização, mas também pela ampliação da participação. A redemocratização no Brasil, marcada pela Constituição Federal de 1988, coincidiu com a criação de diversos mecanismos de participação. Embora existam procedimentos consolidados de organização do poder nas sociedades atuais, como eleições periódicas e separação de poderes, a democracia deliberativa emerge como uma alternativa de participação dos atores sociais em amplos fóruns de debate e negociação sem que seja ocupado o espaço de representantes eleitos.
A partir da análise da literatura sobre o tema, é possível identificar algumas variáveis determinantes para a efetividade democrática da participação social (FARIA, 2008), a saber:
1. perfil associativo dos municípios (BAIERLE, 1992; AVRITZER, 2002);
2. tipo de política pública envolvida (LÜCHMANN, 2005);
3. vontade e/ou envolvimento político do gestor (FARIA, 2005);
4. capacidade financeira do município (FARIA, 2008);
5. formato institucional assumido pelas inovações participativas (LÜCHMANN, 2002).
Essas variáveis (e outras) podem ser aplicadas para a análise da real efetividade das experiências de participação nas políticas públicas, além de serem utilizadas para se verificar em que medida tais iniciativas de participação são realmente inclusivas. Cada variável se relaciona, de maneira determinante, com a experiência de participação, isto é, moldando o grau e o formato da participação pretendida.
Apoiando-se nos estudos de Avritzer e Santos (2002) e de Lüchmann (2007), esta seção apresenta três experiências brasileiras exitosas quanto ao recurso conjunto de representação e participação, a saber: (i) o orçamento participativo (ainda restrito a algumas cidades brasileiras); (ii) os conselhos gestores de políticas públicas; e (iii) as conferências nacionais de políticas e de direitos.
O orçamento participativo (OP) consiste em uma prática criada em alguns governos municipais, marcadamente ocupados pelo Partido dos Trabalhadores, e que vem sendo replicada em diversos outros municípios no Brasil e em outros países. De acordo com Avritzer e Pereira (2005, p. 19),
[o] orçamento participativo é uma forma de rebalancear a articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa baseada em três elementos de hibridismo: a primeira característica do OP é a cessão da soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo representativo a nível local [sic]. A soberania é partilhada com um conjunto de assembleias regionais e temáticas que operam a partir de critérios de universalidade participativa. Todos os cidadãos são tornados, automaticamente, membros das assembleias regionais e temáticas com igual poder de deliberação. Temos, nesse caso, o hibridismo entre um conjunto de assembleias públicas de participação aberta e o fato de suas deliberações se tornarem políticas estatais.
O orçamento participativo combina essa ideia de participação com representação nos chamados “conselhos do OP”, que deliberam sobre as políticas públicas e sobre o investimento nas cidades, o que configura uma forma de participação quase direta (em especial na experiência inicial de Porto Alegre). São características do orçamento participativo: (a) a participação aberta de todos os cidadãos; (b) a combinação entre democracia participativa e representativa, com regras estabelecidas pelos próprios atores; e (c) a alocação de recursos com base em critérios gerais e técnicos, combinando a deliberação geral com as exigências legais da ação estatal.
Considerando as variáveis recém-apresentadas, a experiência de Porto Alegre é bastante ilustrativa de como diversos fatores contribuem diretamente para o sucesso (ou o fracasso) de determinada ação. Em um município com densidade associativa, isto é, forte atuação de movimentos sociais e organizações na esfera pública (vide a experiência do Fórum Social Mundial, surgida em Porto Alegre), a democratização do orçamento ganha contornos de destaque e certamente envolve uma ampla gama de atores sociais – em especial por se tratar de uma capital com orçamento relativamente elevado onde a discussão de boa parte do orçamento é balizada em compromissos legais, sem o comprometimento das demais áreas governamentais. O engajamento do Prefeito e de todo o Executivo municipal no sucesso da experiência é fator determinante para que a prática seja, de fato, participativa e efetiva, tendo em vista que o orçamento participativo foi substancialmente restringido e esvaziado após a saída do Partido dos Trabalhadores do governo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. O formato institucional adotado também foi determinante do sucesso do OP, já que a autorregulação é fator que dá legitimidade ao processo, trazendo um maior número de atores para a discussão e deliberação (AVRITZER; SANTOS, 2002).
Os conselhos, por sua vez, podem ser entendidos como uma típica experiência de representação na participação. Conselhos de políticas (ou conselhos gestores) são aqueles criados por lei e que constituem espaços de deliberação dos diversos atores sociais sobre as políticas públicas temáticas, sendo uma arena intermediária entre o Estado e a sociedade civil (AVRITZER; PEREIRA, 2005). Os principais exemplos são os conselhos de criança e adolescente, saúde, educação e meio ambiente, bem como os recém-criados conselhos das cidades. É importante ressaltar que tais conselhos são compostos por membros da sociedade civil e por representantes governamentais, preferencialmente de forma paritária.[2] A experiência dos conselhos é apresentada de forma mais detalhada na próxima seção deste artigo.
As conferências nacionais, por sua vez, são processos de discussão e deliberação que ocorrem, em regra, a cada dois anos e que envolvem etapas municipais, estaduais e federal (em alguns casos, são feitas pré-conferências regionais dentro dos municípios). A ideia é que, em cada etapa, sejam discutidas propostas para as políticas públicas no âmbito municipal, estadual e federal. Da mesma forma, em cada nível federativo são eleitos delegados para a próxima etapa, os quais devem fomentar e apresentar, nas etapas posteriores, as propostas discutidas e aprovadas no fórum em que foram eleitos.
Embora se trate de momentos pontuais (bianuais), a mobilização em cada conferência e o espaço de discussão das políticas setoriais propiciam um ambiente de participação democrática com muitos avanços. Citem-se, como exemplo, as conferências das Cidades, que vêm elegendo os representantes não governamentais que comporão os conselhos das cidades[3], o que dá transparência ao processo de escolha e garante certo grau de accountability. Além disso, essas conferências têm discutido planos nacionais de políticas públicas que vêm orientando a ação governamental na referida temática.
Há, ainda, que se interpretar o papel exercido pelas conferências como uma forma encontrada pelos conselhos para conseguirem romper seu isolamento político. Embora, em muitos casos, as etapas municipais e estaduais constituam espaço de eleição para a etapa seguinte, sem qualquer discussão aprofundada acerca de propostas de políticas públicas, trata-se de um lócus que dá visibilidade a determinada política pública setorial e às discussões que têm sido travadas nos espaços dos conselhos, possibilitando aos interessados intervir e até mesmo questionar a atuação dos conselheiros que estão representando a sociedade civil.
Finalmente, ressalta-se que os conselhos e as conferências são espaços institucionalizados de participação e que, portanto, gozam de certo status deliberativo e vinculativo em suas proposições. Representam, assim, a institucionalização da participação tal qual propugnado por Cohen (1989; 1997) e Bohman (1996) ao discordarem da teoria habermasiana.