Resumo: Com a edição da Súmula Vinculante n.º 13 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece a vedação ao nepotismo no âmbito da Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, nas três esferas de Poder, muito se passou a discutir sobre o seu alcance e aplicabilidade. As discussões existentes ficaram restritas, entretanto, aos limites do preceito sumular, sendo necessário indagar sobre a própria existência e utilidade do enunciado, identificando se ele consiste em um meio hábil ao alcance de um fim.
Sumário: Introdução. 1. O nepotismo no ordenamento jurídico brasileiro. 2. Dos cargos comissionados e funções de confiança da administração pública: desvirtuamento constitucional. 3. Da revisão sumular anunciada pelo STF. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Em uma nação marcada por “atalhos políticos”, onde se busca sempre a solução mais rápida para os conflitos e críticas populares, não raro o ordenamento depara-se com incansáveis discussões acerca da eficácia e legalidade de medidas administrativas adotadas pelos gestores públicos, pois o famoso “jeitinho brasileiro”, termo substantivado e parte integrante da identidade nacional, não se limita à legislação e princípios jurídicos impostos.
De fato, está a se falar de um país onde, a título de exemplificação: i) elaboram-se cotas de acesso às universidades quando deficiente é o ensino público fundamental e médio, outrora símbolo de eficiência; e ii) instituem-se auxílios financeiros, quando inexistente ou insuficiente é a oferta ou as condições de trabalho.
Não se poderia esperar tratamento diferente quanto à criação exacerbada de cargos públicos, com critérios de investidura desconhecidos, e atuação igualmente ignorada, consubstanciados nos famigerados cargos em comissão.
Na clara tentativa de minimizar os efeitos desastrosos que a utilização indiscriminada desses cargos vem acarretando à Administração Pública, de ordem financeira, moral e técnica, concluiu a Suprema Corte brasileira pela elaboração da Súmula Vinculante n.º 13, que estabelece a vedação ao nepotismo.
A repercussão sobre o tema é infinita, mas esse artigo visa a ponderar o teor da referida súmula, identificando se ela consiste em um meio hábil ao alcance de um fim, ou em mais um atalho que leva a lugar nenhum.
1.O NEPOTISMO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
Consoante definição dada pelo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a palavra nepotismo significa “autoridade que os sobrinhos e outros parentes dos Papas exerciam na administração eclesiástica”1. Tal acepção demonstra que, historicamente, o vocábulo se deve ao hábito adotado pelos Pontífices da Igreja Católica de conceder cargos, dádivas, benesses e favores aos seus parentes mais próximos, traçando, assim, os contornos do nepotismo.
Hodiernamente, entende-se por nepotismo o ato de favorecer pessoas, por laços de parentesco consanguíneo ou por afinidade, na contratação para cargos da Administração Pública.
A par dos aspectos conceituais do termo, desafiadora se mostra a tarefa de conceber seu real alcance, bem como a efetividade da regra na busca da eficiência no serviço público.
O nepotismo, entendido como o favorecimento a aparentados de agentes públicos, consubstanciado na contratação de parentes sem o crivo do concurso público, estabeleceu-se como prática a ser repudiada para fins de probidade e moralização na condução da coisa pública.
Popularmente, o nepotismo é associado à imoralidade, assumindo sentido pejorativo. Todavia, tratando o tema friamente, de forma desapaixonada e sem dar margens a incursões emotivas, observa-se que o texto constitucional, ao estabelecer o concurso como forma de acessibilidade primeira aos cargos públicos, ressalvou as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Com efeito, a Carta Republicana, ao tratar da possibilidade de provimento de cargos públicos de livre nomeação e exoneração da autoridade contratante, pretendeu estabelecer que, em certas circunstâncias, notadamente quanto aos agentes públicos, tais autoridades necessitariam cercar-se de pessoas capacitadas, porém de sua inteira confiança, inclusive afinados ideologicamente com o gestor público nomeante.
Na tentativa de evitar abusos quanto a essa liberalidade constitucional acerca da livre nomeação para cargos e funções de confiança, o Supremo Tribunal Federal houve por bem editar a Súmula Vinculante n.º 13, pela qual “viola a Constituição a nomeação para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública Direta ou Indireta, de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor público da mesma Pessoa Jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento”.
Tratada como tábua de salvação contra os abusos rotineiramente praticados pelos gestores públicos, a Súmula Vinculante n.º 13 foi editada pelo Pretório Excelso em razão da Corte considerar o nepotismo inconstitucional por afronta aos princípios da moralidade, da igualdade e da impessoalidade, gravados no art. 37 da Constituição da República, estabelecendo que a proibição decorre diretamente de tais princípios contidos no texto constitucional, conforme explicitado no RE n.º 579.951-4/RN2, tendo seu relator elucidado que tais princípios “são auto-aplicáveis, que a vedação ao nepotismo decorre exatamente da conjugação desses princípios da Constituição, com o ‘etos’ prevalente na sociedade brasileira”.
2. DOS CARGOS COMISSIONADOS E FUNÇÕES DE CONFIANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: DESVIRTUAMENTO CONSTITUCIONAL.
Assim dispõe a Constituição Federal sobre a criação de funções de confiança e cargos comissionados na Administração Pública brasileira:
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.
Perceba que o texto constitucional limitou as funções de confiança aos servidores investidos em cargo efetivo, e os cargos comissionados: i) a um porcentual mínimo legal de servidores investidos em cargos efetivos; e ii) a atribuições de direção, chefia e assessoramento.
Na prática, porém, além da excessiva criação de cargos comissionados, há a acanhada e quase inexistente aplicação e regulamentação do inciso V, do art. 37, da Constituição Republicana.
De fato, poucos entes federados estabeleceram um porcentual mínimo de cargos comissionados a serem preenchidos por servidores efetivos. Outros, por sua vez, chegaram a estabelecer porcentuais ínfimos (inferiores a 10%)3, o que chega a ser mais imoral que a própria ausência de sua previsão legal.
Como se não bastasse a ausência de regulamentação do porcentual acima definido, a parte final do mesmo dispositivo é constantemente violada, pois o que se verifica é uma proliferação desmedida de cargos comissionados de todas as ordens, principalmente os de caráter meramente burocráticos e subalternos.
Ora, para que o cargo seja considerado de confiança, deve ser restrito a agentes que tomem decisões políticas, ou possam influenciar essas, o que obviamente exclui cargos burocráticos ou de assessoramente técnico inferior.
Assim, o assessoramento, que possibilita a definição de um cargo ou emprego público como de provimento em comissão, não é qualquer assessoramento, mas apenas o assessoramento qualificado, que se poderia denominar de assessoramento superior. É o assessoramento que influencia as decisões políticas.
Entrementes, não é isso que se vê na prática administrativa brasileira, onde motoristas e garçons são investidos em cargos comissionados de “assessoramento”.
Em notória manifestação sobre o tema, assim discorre Jessé Torres4:
(...)
No que respeita aos cargos em comissão, a Emenda 19 adotou uma segunda ordem de providência, cuja finalidade, intui-se, é a de conter a multiplicação desses cargos em todos os níveis da organização administrativa. Doravante, os cargos em comissão devem corresponder tão-só a atribuições de direção, chefia e assessoramento. Isto é, aos cargos em comissão estará reservado o nível decisório da hierarquia administrativa. Mais uma razão para que seus ocupantes sejam profissionais qualificados e conhecedores dos misteres da atividade administrativa pública. Serão os responsáveis pela pertinência das decisões de política administrativa do serviço público, com sustentação técnica.
Esse entendimento encontrou eco no Supremo Tribunal Federal, nos termos do acórdão abaixo ementado:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 37, II E V. CRIAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO. LEI 15.224/2005 DO ESTADO DE GOIÁS. INCONSTITUCIONALIDADE.
I. É inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandam relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico, tais como os cargos de Perito Médico-Psiquiátrico, Perito Médico-Clínico, Auditor de Controle Interno, Produtor Jornalístico, Repórter Fotográfico, Perito Psicológico, Enfermeiro e Motorista de Representação. Ofensa ao artigo 37, II e V da Constituição Federal.
II. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos XI, XII, XIII, XVIII, XIX, XX, XXIV e XXV do art. 16-A da lei 15.224/2005 do Estado de Goiás, bem como do Anexo I da mesma lei, na parte em que cria os cargos em comissão mencionados. (Grifos nossos)
(3602 GO , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 14/04/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-01 PP-00027)
Percebe-se que a intensa e desmedida criação aleatória de cargos comissionados, sem discriminação de suas atribuições, requisitos de acesso, e em total desrespeito ao quanto preconizado pelo inciso V, do art. 37, da CF, consiste em uma fonte inesgotável para favorecimentos políticos e familiares.
Em sendo, entretanto, combatidos os desvirtuamentos há pouco elencados, com: i) o estabelecimento dos casos, condições e percentuais mínimos para que os cargos em comissão sejam preenchidos por servidores de carreira; e ii) a efetiva limitação dos cargos comissionados a atribuições de Direção, Chefia, e Assessoramento Superior, conforme preconizado pelo STF e pela doutrina pátria, com a consequente redução numérica desses; certamente o gestor público procuraria designar entre as pessoas de sua confiança aquelas melhor qualificados e capacitadas para o cargo (parentes ou não), pois a má escolha implicaria na ausência de um auxílio técnico necessário ao eficiente assessoramento da autoridade nomeante.
É instintiva a conclusão de que todo desperdício advém da abundância. O mesmo raciocínio aplica-se aos cargos públicos. Quanto mais cargos o administrador dispuser, mais ele desperdiçará com a nomeação de pessoas desqualificadas.
Mostra-se imperativo que a sociedade questione se a solução eficaz para impedir a transformação da administração pública em cabide de empregos reside na proibição de nomeação de parentes para cargos comissionados, ou na diminuição da intensidade com que o gestor público cria postos de trabalho sem a necessária acessibilidade por concurso público.
Cabe igualmente indagar se, ao cidadão zeloso do patrimônio público, existirá distinção moral entre a nomeação da esposa, do apadrinhado político, do melhor amigo, ou do vizinho do Administrador. Pela dicção da Súmula Vinculante n.º 13, dentre as pessoas citadas, é certo que apenas a esposa estaria impedida de assumir o cargo público. Todavia, se a nomeação de qualquer um deles advir tão somente de suas qualificações pessoais, todas serão igualmente imorais e reprováveis, pois o que de fato importa é a qualificação profissional desses indivíduos, a competência e habilitação técnica para as tarefas próprias do cargo.
Conclui-se que o real objetivo constitucional é a vedação ao favorecimento administrativo em qualquer grau, inobstante a origem (familiar, social ou político).
3. DA REVISÃO SUMULAR ANUNCIADA PELO STF.
Editada em 2008, a Súmula Vinculante n.º 13, que veda o nepotismo nos Três Poderes, no âmbito da União, estados e municípios, enfrentou diferentes focos de divergência, inclusive no seio da Suprema Corte, que já se inclinou pela revisão do enunciado sumular.
A proposta de revisão partira da própria Presidência do STF, por considerar necessária a definição clara dos limites da vedação ao nepotismo no âmbito da Administração Pública.
Inegável é que no âmbito do STF se abateu verdadeira cisão acerca da interpretação sobre o alcance da mencionada súmula, cujos julgamentos houveram por criar regras de exceção que vão dilapidando a norma para situações casuísticas.
Em momento posterior à edição da Súmula Vinculante n.º 13, o STF afastou incidência da vedação ao nepotismo nas hipóteses de nomeações para cargos eminentemente políticos, como Ministros de Estado, Secretários de Governo Estadual ou Municipal, todos de natureza política e, portanto, fora do alcance da Súmula Vinculante 13. O entendimento foi firmado no julgamento do Recurso Extraordinário 579.951/RN, consoante observado no voto do Ministro Carlos Ayres Britto5, e conforme atesta abalizada jurisprudência6.
Insta observar que a Corte Suprema pontifica que a classificação em “cargo político”, com o objetivo da não aplicação da Súmula Vinculante n.º 13, “não alcança cargos e funções com atribuições de direção, chefia e assessoramento na estrutura administrativa de entidades e órgãos públicos de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, consoante se observa do teor da decisão do ministro Dias Toffoli, nos autos da Reclamação 142237.
Malgrado haja certa coerência no entendimento do STF de que os agentes políticos fiquem a salvo da incidência da vedação esculpida na Súmula Vinculante n. 13, porquanto ligados à Administração Pública por vínculo diferenciado, já que exercem atribuições diversas daquelas desempenhadas pelos servidores públicos, estes de funções singelamente administrativas, por induvidoso, o Supremo Tribunal Federal começara a tratar o tema de maneira relativizada, ao fazer inúmeras exceções acerca da não aplicabilidade da regra sumular.
O mais recente juízo do STF acerca da incidência da súmula diz respeito ao entendimento de que seria legítima a contratação de parentes num mesmo órgão se não houver subordinação entre eles, mesmo que ambos não detenham vínculo efetivo na administração pública.
A novel exceção foi tornada pública a partir da nomeação de indivíduos casados para cargos de direção da Suprema Corte, tendo sido amplamente noticiado o fato na imprensa nacional, com repercussões negativas quanto à justificativa da Presidência do órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro, no sentido de que deve haver “correta interpretação da súmula”8 para não punir “honestos”9. Com efeito, tal entendimento vai na contramão da orientação emanada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, demonstrando-se estar longe de interpretação uniforme sobre a matéria.
Ora, ao se criar um critério objetivo para avaliar algo eminentemente subjetivo, é lógico que pessoas honestas serão punidas, pois todas serão, inevitavelmente, postas numa “vala comum”, na medida em que a avaliação se dará em razão da existência de vínculo familiar, e não em decorrência do mérito do servidor.
Mais grave ainda é concluir que a vedação ao nepotismo é uma via de mão dupla: se de um lado é imoral contratar alguém apenas em razão do seu vínculo com o administrador, seria igualmente errado demiti-lo tão somente por esse fato.
Muito embora a doutrina e a jurisprudência tentem definir as situações que gerariam incompatibilidade entre nomeante e nomeado para o exercício do cargo ou da função de confiança, certo é que, no âmbito nacional, está se longe de encerrar as discussões que dividem opiniões acerca da aplicação do referido verbete sumular.
CONCLUSÃO
Indubitável que o princípio do concurso público, como regra para garantir a ampla acessibilidade aos cargos públicos, deve e merece prevalecer, para dar efetividade à regra constitucional gravada no art. 37, II.
Todavia, a solução para a moralização das nomeações para cargos comissionados, a ser feita de maneira impessoal e que atenda à eficiência positivada no caput do art. 37 da Magna Carta, no sentido mais amplo, certamente não está na vedação ao acesso de parentes a cargos de provimento em comissão.
A medida que se impõe permeia pela correta aplicação do art.37, V, da Constituição federal, limitando-se a criação de cargos comissionados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento superior, bem como estabelecendo as condições e percentuais mínimos para que os cargos em comissão sejam preenchidos por servidores de carreira, reservando-se, assim, parcela minoritariamente razoável para que o gestor público possa exercer a livre escolha dos ocupantes dos cargos de confiança postos à sua disposição, independentemente do grau de parentesco havido entre nomeante e nomeado, no que restaria atendido o fim almejado pelo constituinte quando garantiu exceção à regra do concurso público.
Conforme alhures enfatizado, a existência de um número expressivo de cargos comissionados à disposição da autoridade nomeante permite que esta não se comprometa com uma postura responsável na escolha de quem deva ocupar o cargo, permitindo nomeações cuja seleção não se dará por um critério técnico, sendo, nessa hipótese, indiferente o vínculo existente entre o nomeado e a autoridade.
Em verdade, a vedação ao nepotismo, incensada como o fim da imoralidade nas nomeações para cargos e funções públicas, em muito lembra a conhecida estória “O Mágico de Oz”, na qual os personagens por fim descobrem que a “estrada de tijolos amarelos”, longe de levá-los à solução de seus problemas, acaba por apresentá-los tantos outros.
De fato, a ilusão criada pelo verbete sumular alimenta os anseios de uma população farta dos desvios administrativos, mas se trata de um alimento incapaz de saciar pretensões de Administração justa e igualitária.