3. REQUISITOS À CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Nesse panorama de perplexidades, a atuação da doutrina especializada assume o importante papel de possibilitar a conformação da Lei n. 8.429/92 ao desenho constitucional da infração ético-institucional sob análise. Assim, uma interpretação doutrinária que, de forma razoável, amplie o conjunto dos requisitos necessários à caracterização da improbidade administrativa possui o condão de colocar as coisas no devido lugar. Desse modo, lograr-se-á restringir o conceito de conduta ímproba e, por conseguinte, a própria aplicação das sanções a ele atreladas, apenas àqueles casos em que o ilícito efetivamente se amolde às balizas constitucionais da improbidade.
Com supedâneo nessa intermediação doutrinária, incumbe aos operadores do Direito, ao se depararem com a Lei de Improbidade Administrativa, interpretarem-na com a devida prudência, a fim de evitar a sua utilização para o enfrentamento de meras ilegalidades ou de singelos erros de conduta funcional, haja vista que a vontade do constituinte sempre se direcionou, de fato, ao rigoroso combate do agente público ou do terceiro que, de forma efetiva e consciente, desonrasse ou lesasse o patrimônio público.[30]
Assim, frise-se, desde logo, que, na busca do diagnóstico jurídico de improbidade administrativa, é necessário verificar a presença de quatro requisitos principais, a saber: tipicidade cerrada, grave violação ao princípio da moralidade administrativa, dolo e infração a dever funcional.[31] Esses quatro pilares, por sua importância destacada, serão objeto de tratamento pormenorizado e individualizado nos itens que se seguem. Desse modo, neste espaço, limitar-se-á a tecer comentários sucintos e pontuais acerca de outros requisitos laterais.
Para que seja possível falar em improbidade administrativa, é imprescindível, primeiramente, a presença de “conduta funcional”, comissiva ou omissiva. Somente existirá ilícito de improbidade, se houver pelo menos uma conduta praticada por agente público[32] e que se relacione, direta ou indiretamente, com o exercício de seu múnus público.[33] Ressalte-se, ademais, que, a despeito de o art. 3º da Lei n. 8.429/92 expressamente determinar a aplicação de suas disposições, no que couber, ao terceiro que, “mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”, é pacífico o entendimento de somente ser aplicável a disciplina da Lei de Improbidade aos casos em que haja o concurso de pelo menos um acusado que goze da qualidade de agente público.[34]
Ainda no que diz respeito ao sujeito ativo do ato de improbidade, é forçoso que se afira a “imputabilidade do agente”. A imputabilidade pode ser conceituada como o conjunto de condições pessoais que conferem ao agente a capacidade de discernimento e compreensão, bem como de determinar-se conforme esse entendimento. Por conseguinte, a imputabilidade do agente pode ser afastada tanto em razão de eventual anomalia psíquica (congênita ou adquirida) quanto em virtude de critérios etários fixados por lei. Fábio Medina Osório, ao se referir à inimputabilidade por anomalia mental, esclarece que:
Essa sanidade há de ser valorada por laudo especializado, indicando, à luz do contraditório, a impossibilidade de o sujeito dominar subjetivamente as circunstâncias mais relevantes de seu agir, seja quanto ao entendimento sobre o fato, seja no tocante à autodeterminação que seria necessária, tudo culminando no conhecido poder agir de outro modo.[35]
Portanto, demonstrada a inimputabilidade do agente por meio de laudo especializado, outra opção não resta ao magistrado senão julgar improcedente o pedido principal da ação de improbidade administrativa, abstendo-se, por conseguinte, de impor qualquer sanção ao acusado, uma vez que eventuais consequências maléficas a esse agente somente poderão ocorrer, no bojo de um processo civil, pela sua interdição ou, na seara criminal, pela imposição de medidas de segurança.
Por outro lado, ante a gravidade inata às suas sanções, é razoável que se reconheça os 18 anos completos como limite etário mínimo à responsabilização por improbidade administrativa,[36] em analogia ao que dispõe o art. 17 do Código Penal – diploma este que também disciplina a utilização do ius puniendi estatal. No entanto, o ideal seria que a própria Lei n. 8.429/92 houvesse estabelecido uma disciplina específica a respeito tema, já que o silêncio legal pode ensejar o surgimento de incertezas, oriundas de eventuais posicionamentos doutrinários no sentido de fixar limite etário distinto, seja com base na idade mínima para o trabalho (art. 7º, XXXIII, CR/88), seja com base na idade mínima para o exercício de determinada função pública, seja com base no limite etático para o pleno exercício dos direitos políticos (art. 14, CR/88).
Por derradeiro, para que reste caracterizada a figura da improbidade, é natural que se exija a presença de “nexo de causalidade” entre, de um lado, a conduta funcional e, de outro, o enriquecimento ilícito, a lesão ao erário ou a violação consciente a princípios informativos da Administração Pública. No que diz respeito a esse liame entre a conduta administrativa e o resultado juridicamente reprovável, ratifica-se as lições de Sérgio Cavalieri Filho, segundo o qual, “somente há uma relação de causalidade adequada entre fato e dano quando o ato ilícito praticado pelo agente seja de molde a provocar o dano sofrido pela vítima, segundo o curso normal das coisas e a experiência comum” (teoria da causalidade adequada).[37] No atual estágio evolutivo das ciências jurídicas, o nexo de causalidade não pode mais ser visto como um fenômeno simplesmente mecânico. Isto é, para que se verifique a presença de nexo causal, não basta que o fato tenha sido, em concreto, uma condição sine qua non do prejuízo. Exige-se, na realidade, que o fato constitua, em abstrato, uma causa adequada do dano.[38] Portanto, à luz da teoria da causalidade adequada, ainda que uma conduta funcional tenha causado concretamente o resultado ilícito, caso ela não tenha se revelado substancial e potencialmente adequada à ocorrência da lesão ao bem jurídico tutelado, inexistirá nexo de causalidade entre a atividade do agente e o resultado verificado.
Passa-se, neste passo, à análise dos quatros precípuos requisitos à configuração do ilícito de improbidade administrativa.
3.1. Tipicidade Cerrada
Na seara do Direito Administrativo Disciplinar, os estatutos dos servidores públicos, em regra, limitam-se a enumerar, de um lado, os vagos deveres funcionais e, de outro, as sanções cominadas, sem, todavia, realizar a correlação direta entre a sanção específica que deve ser aplicada em razão da violação a cada uma das imposições legais.[39] Ou seja, os estatutos arrolam as sanções administrativas sem estabelecer, a priori¸ qualquer elo rígido entre elas e os ilícitos funcionais.[40] Lado outro, no âmbito do Direito Penal, o legislador utilizou o sistema da tipificação cerrada de ilícitos, bem como determinou, de forma expressa e imediata, a sanção aplicável em virtude da inobservância de cada um dos modelos proibitivos legalmente previstos.
O clássico método de arrolamento de ilícitos por meio de mandados proibitivos de textura aberta adapta-se, sem margem a dúvidas, aos ilícitos administrativos comuns, porém, no que se refere aos atos de improbidade administrativa, espécie de gravíssima infração ético-funcional, a aplicação do referido modelo não se afigura adequada. Ora, o frequente uso de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas abertas na descrição das infrações disciplinares reclama, segundo a doutrina majoritária, amplos e constantes juízos de valor por parte da autoridade administrativa, o que, à evidência, não se coaduna com a gravidade das sanções que podem ser infligidas àquele que pratica atos qualificados como ilícito de improbidade.[41]
Aliás, na esteira da doutrina mais tradicional, diante do cometimento de ilícitos funcionais comuns, a autoridade administrativa seria dotada de discricionariedade na atividade de aplicação das sanções disciplinares interna corporis.[42] Assim, cometida a infração administrativa, a autoridade competente teria o dever de instaurar o procedimento para a apuração da falta funcional (ato vinculado). Porém, provado o cometimento da infração, competiria ao administrador, em um juízo de oportunidade e conveniência, adequar a punição a ser infligida, seja na escolha da espécie de sanção a ser imposta, seja em sua dosimetria (ato discricionário).[43]
Reconhecida essa suposta discricionariedade inerente à apenação dos ilícitos administrativos comuns, a doutrina majoritária conclui ser inviável a integral sindicabilidade jurisdicional desses atos sancionadores, uma vez que se estaria a versar matéria adstrita ao “mérito administrativo”. Alinhando-se a esse entendimento, encontra-se a jurisprudência amplamente majoritária dos Tribunais Superiores, segundo a qual, em se tratando de processo administrativo disciplinar, somente seria dado ao Poder Judiciário aferir a regularidade do procedimento, bem com a observância dos princípios do contraditório e a da ampla defesa, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, CR/88). Isto é, o Judiciário não poderia incursionar na análise de conveniência, oportunidade, eficiência, justiça, razoabilidade e proporcionalidade da sanção disciplinar aplicada.[44]
Entretanto, atualmente, exsurge entendimento doutrinário, exposado por administrativistas do escol de Luciano Ferraz e Flávio Henrique Unes Pereira, no sentido da inexistência de discricionariedade na aplicação das sanções disciplinares interna corporis. A despeito de ser inegável a ampla gama de conceitos jurídicos indeterminados constantes do arrolamento de ilícitos administrativos, Flávio Henrique Unes Pereira defende que, à luz da Teoria da Adequabilidade Normativa de Klaus Günther,[45] existe sempre uma única decisão adequada.[46] Essa decisão deveria ser “construída argumentativamente pelo administrador público e pelas partes envolvidas, no curso do devido processo legal administrativo”, de modo que, nessa seara, não remanesceriam escolhas que pudessem “ser legitimadas por um suposto juízo de conveniência e oportunidade que não fosse, a posteriori, passível de reexame pelo Poder Judiciário”.[47] Desse modo, considerando-se os princípios da inafastabilidade da jurisdição, da dignidade da pessoa humana, da culpabilidade e da individualização da pena, bem como os demais postulados do Estado Democrático de Direito, entende o autor que incumbe ao Judiciário o reexame integral das sanções disciplinares aplicadas pela Administração Pública, tanto sob o aspecto formal quanto sob o viés substancial.[48]-[49]
Portanto, mesmo no que se refere aos ilícitos funcionais comuns, em que sempre foram aceitos os juízos discricionários, já se verifica, hodiernamente, a existência de robusta corrente doutrinária entendendo que a aplicação das sanções disciplinares caracteriza ato administrativo de natureza estritamente vinculada. Ora, se assim o é em relação às infrações administrativas comuns, com muito maior razão também o será em relação à improbidade administrativa, de modo que também se deve buscar extirpar da disciplina punitiva desse ilícito qualquer vestígio de discricionariedade.
Cumulados com a inexistência de vinculação imediata entre conduta vedada e sua correspondente sanção, os conceitos demasiadamente abertos que permeiam a Lei n. 8.429/92 acabam por agravar ainda mais a sensação de insegurança jurídica suportada pelos agentes públicos, em frontal violação a postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito.[50] A garantia fundamental de segurança jurídica é uma decorrência natural do atual estágio evolutivo do Estado Democrático de Direito, o que revela a importância de, por meio da tipicidade cerrada, impingir-se elevado grau de densidade normativa à Lei de Improbidade Administrativa, neutralizando-se, pois, o uso excessivo de conceitos jurídicos indeterminados.
Por meio da noção de tipicidade cerrada, corrigir-se-ia a vagueza semântica da Lei de Improbidade, bem como se concretizaria a objetividade normativa necessária à razoável aplicação das gravíssimas sanções éticas e jurídicas advindas da prática de atos ímprobos. Com isso, restaria mitigada a necessidade de repugnáveis juízos discricionários na aplicação da Lei n. 8.429/92. A legitimidade desses juízos de valor, hodiernamente, é de difícil controle, o que pode acabar por dar ensejo ao surgimento de um “Direito dúctil”, em evidente afronta aos ideais republicanos e ao princípio da isonomia. Ora, a ductibilidade não se harmoniza com o alto grau de previsibilidade reclamado pelo Direito Punitivo, vez que é inaceitável que a aplicação das graves sanções previstas na Lei de Improbidade venha a se amoldar a eventuais interesses políticos que se encontrem presentes no contexto de uma ação de improbidade.
Assim, para que reste caracterizada a improbidade administrativa, é imprescindível que se realize uma rigorosa aferição tanto da subsunção formal da conduta funcional ao tipo legal abstrato (tipicidade formal) quanto da efetiva violação do principal bem jurídico tutelado pela Lei de Improbidade, qual seja, a moralidade administrativa (tipicidade material).
Infere-se, pois, a absoluta possibilidade da utilização do princípio da insignificância no campo da improbidade administrativa, por escopo de afastar a tipicidade material de determinadas condutas.[51] Em outras palavras, ainda que exista subsunção formal da conduta ao tipo legal, é razoável que, por falta de tipicidade material, seja afastada a improbidade administrativa naqueles casos em que não se verifique uma efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo modelo proibitivo (moralidade administrativa).
Julgado emblemático acerca do tema foi proferido pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos da Apelação Cível n. 70011242963, Rel. Des. Araken de Assis, julgada em 25/05/2005, oriunda da Comarca de Novo Hamburgo, cuja ementa foi lavrada nos seguintes termos:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. USO DE PAPEL TIMBRADO. INSIGNIFICÂNCIA DO FATO MÍNIMO.
A ação civil pública para coibir atos de improbidade administrativa não pode ser amesquinhada e utilizada para reprimir o uso de quatorze folhas de papel timbrado da Câmara dos Vereadores em defesa prévia, assinada por Assessor Jurídico do Legislativo em outra ação da mesma natureza. Princípio da Insignificância. Apelação desprovida.
Trata-se de demanda proposta para o combate de suposto ato de improbidade praticado pelo Presidente da Câmara dos Vereadores do Município de Novo Hamburgo, consistente no uso da máquina administrativa em benefício privado (art. 9º, IV, Lei n. 8.429/92), cuja sanção pode traduzir-se, por exemplo, na perda do cargo público cumulada com a suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos (art. 12, I). No caso, a suposta ilicitude compreendia o uso de quatorze folhas de papel timbrado pertencentes à Câmara, em defesa prévia firmada por Assessor Jurídico do Legislativo, que foi juntada aos autos de outro processo judicial em que se discutia a ilicitude de um ato praticado pelo agente político no exercício do seu cargo público. Em razão da fundada dúvida que existia acerca do direito do mencionado agente político fazer uso da defesa institucional, o Assessor Jurídico renunciou, de imediato, ao patrocínio da causa. A despeito disso, entendendo não ser lícita essa prática, o membro do Parquet propôs a ação de improbidade para o combate do uso indevido de folhas de papel timbrado, uma vez que o referido Assessor Jurídico já havia previamente deixado de atuar no primeiro processo.
Esse caso serve para demonstrar como a disciplina normativa desarrazoada, atécnica e ambígua emprestada à Lei de Improbidade acaba por ensejar interpretações extremadas que redundam na propositura de ações judiciais absurdas, em evidente violação aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da economicidade dos recursos públicos.
Saliente-se que a insignificância ensejadora do afastamento da tipicidade material não se refere exclusivamente à pecúnia, mas, sobretudo, à inexpressividade da lesão jurídica provocada e ao reduzidíssimo desvalor da conduta funcional, uma vez que, ainda que inexista qualquer resquício de enriquecimento ilícito ou de lesão ao erário, é obviamente possível o enquadramento da conduta nos tipos do art. 11 da Lei n. 8.429/92.[52]
A despeito da demonstrada necessidade de utilização do princípio da insignificância como causa excludente da tipicidade de condutas supostamente ímprobas, o STJ, sob o questionável argumento de que se adota uma espécie de silogismo em que a premissa maior é o “juízo de improbidade da conduta” e a premissa menor é o “juízo de dosimetria da sanção”, acaba por negar qualquer aplicabilidade prática a esse princípio na seara do Direito Administrativo Sancionador.[53]
Ademais, outros inegáveis benefícios decorrem da consideração da rígida tipicidade como requisito inarredável à configuração do ilícito de improbidade administrativa. Tal método fechado possibilita uma maximização de todos os aspectos do princípio da segurança jurídica, quais sejam, determinabilidade, previsibilidade, estabilidade e continuidade. Além disso, a tipicidade cerrada auxilia firmemente na neutralização do arbítrio e subjetivismo que permeiam a Administração Pública brasileira e que, frequentemente, acarretam a desconsideração dos princípios da isonomia, da legalidade e da proporcionalidade, os quais são ferramentas essenciais à escorreita utilização dos institutos do Direito Punitivo.
Além da utilização de tipos dotados de pouca concretude, a Lei n. 8.429/92 é explícita na adoção do sistema numerus apertus para o arrolamento dos atos de improbidade, o que acaba por possibilitar que o intérprete faça uso da analogia tipificadora com o intuito de ampliar o leque de condutas vedadas. Entretanto, à luz de postulados garantistas do Direito Punitivo e da gravidade extraordinária das sanções cominadas, incumbe ao operador jurídico sensato interpretar com a devida cautela e de forma restritiva tais modelos proibitivos.
Em face da natureza punitiva da Lei de Improbidade Administrativa, faz-se mister que se reconheça a inadmissibilidade da utilização de analogia[54] ou de interpretação extensiva[55] para fins de caracterização do ato ímprobo, vez que os arts. 9º, 10 e 11 devem ser encarados como catálogos taxativos, em decorrência dos imperativos da tipicidade fechada. Ora, diante da omissão legislativa, é extremamente perversa, além de tecnicamente repudiável, a utilização dos mencionados métodos hermenêutico-integrativos para a tipificação de condutas funcionais.
Essa interpretação ampliatória criaria inaceitável insegurança jurídica na vida de todos os agentes públicos, que restariam sujeitos aos sabores de eventuais entendimentos imbuídos de excessivo subjetivismo. Daí a flagrante violação aos princípios norteadores do Direito Punitivo, sobretudo, aquele expresso na parêmia nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, o qual, em que pese ter sido gestado no seio criminal, também deve ser aplicado ao Direito Administrativo Sancionador.[56] O referido adágio representa a garantia da reserva legal, que é consagrada tanto em sede constitucional (art. 5º, II e XXXIX) quanto no âmbito supranacional, senão vejamos o artigo 22º, parágrafo 2 do Estatuto de Roma:
Artigo 22.º 2 - A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objecto de inquérito, acusada ou condenada.
No preceito normativo internacional, está clara a proscrição tanto da analogia tipificadora quanto da interpretação extensiva prejudicial ao acusado. Deste modo, como decorrência dos postulados da reserva legal e da segurança jurídica, dúvida não resta quanto à imperiosa aplicação, mutatis mutandis, dessa norma supranacional também à tutela da probidade administrativa, sob pena de empreenderem-se tratamentos antagônicos a situações fáticas dotadas de inegável similitude.
A despeito das críticas, reitere-se que decorre da mera leitura dos arts. 9º a 11 a conclusão de que a opção legislativa foi realmente no sentido de prever um rol meramente exemplificativo. Assim, por óbvio, não se está a defender uma completa desconsideração pragmática do texto legislado, o que representaria uma ilegítima violação ao princípio democrático da “liberdade de conformação legislativa dos ilícitos”. Sustenta-se, na realidade, em sede de uma interpretação finalística da obra do constituinte originário, tão-somente a absoluta inadequação da opção legislativa, a qual pode acarretar inclusive vício de inconstitucionalidade, em face do disposto no art. 1º (“Estado Democrático de Direito”) e no art. 5º, caput, II e XXXIX, todos da CR/88.
Portanto, hodiernamente, a definição das condutas legalmente consideradas como ímprobas é realizada por meio de conceitos jurídicos indeterminados, em rol exemplificativo, inexistindo, ainda, uma rígida e direta vinculação legal entre os atos ilícitos e as suas respectivas sanções. Em sentido diametralmente oposto, propõe-se, ainda que de lege ferenda, a adoção de um sistema de tipicidade cerrada, dotado de precisão semântica na fixação dos ilícitos e que seja hostil a qualquer espécie de interpretação ampliativa. Sustenta-se, pois, que a tutela da improbidade administrativa, em diversos casos, deve se aproximar muito mais de institutos penais do que da flexível disciplina legal atrelada aos ilícitos administrativos comuns.
3.1.1. Da aproximação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal Garantista
Demonstrada a imprescindibilidade da aplicação do princípio da legalidade estrita à tutela da improbidade administrativa, urge frisar, neste passo, a idêntica necessidade de utilização de outros princípios informativos do Direito Penal e Processual Penal como balizas à idônea apuração e apenação pelo cometimento de ilícitos de improbidade.
Reconhecendo-se a origem comum de ambos os ramos jurídicos, a partir da década de 1960, começa a se notar, na Europa, uma efetiva aproximação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Criminal, de modo que os princípios deste último passaram a ser rotineiramente aplicados com alguns matizes àquele ramo do Direito. Essa aproximação fortaleceu-se sobremaneira na década de 1990, pois se tornou notório o fato de que ambos os braços do Direito Punitivo – quais sejam, Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador – afetavam gravemente direitos fundamentais, não sendo crível, portanto, que as garantias que tradicionalmente se encontravam vinculadas ao Direito Penal não se estendessem, mutatis mutandis, ao Direito Administrativo Punitivo. Ou seja, o estreitamento da relação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal é uma medida necessária, na perspectiva dos direitos fundamentais que hão de balizar o Direito Punitivo considerado em sua totalidade.[57]
Assim, o Direito Penal serve como inspiração à dogmática do Direito Administrativo Sancionador, de modo que a este último devem ser aplicadas as garantias inerentes à Teoria da Sanção (ou da Pena), estudadas com detença pelos penalistas.[58] Em sua dicção sempre precisa, Fábio Medina Osório esclarece que:
Não se tratará de reduzir as fontes do direito administrativo sancionador ao Direito Penal, como se este ostentasse alguma espécie de superioridade normativa. Trata-se apenas de perceber a superioridade teórica da dogmática penal, que pode e deve servir de inspiração garantista na seara do direito administrativo punitivo.[59]
É proveitoso, deste modo, que se dê uma aproximação da tutela punitiva da improbidade com as tradicionais e sedimentadas linhas garantistas do Direito Penal. Com isso, lograr-se-á afastar os efeitos deletérios de uma “civilização” exacerbada desta infração administrativa – isto é, encarar a improbidade administrativa como um mero ilícito civil –, o que poderia dar ensejo a uma desregrada flexibilização das garantias fundamentais dos acusados.
Assim sendo, resta claro que a correta compreensão dos institutos do Direito Administrativo Punitivo deve perpassar necessariamente pelas ideias, ainda que cum grano salis, do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli.[60] Essa corrente doutrinária tem como seu ponto basilar o princípio da legalidade e almeja reduzir a um grau mínimo o poder punitivo do Estado, bem como maximizar as garantias constitucionais dos cidadãos.[61] À luz do Garantismo Penal, a função imediata da jurisdição seria a salvaguarda intransigente dos direitos fundamentais do acusado e, de forma mediata, a proteção das garantias de toda a comunidade, não sendo crível, conseguintemente, atribuir à penalidade qualquer ranço de cunho exclusivamente retributivo. Portanto, o juiz não possuiria como seu precípuo mister a aplicação da lei, fazendo as vezes de mero executor da vontade do legislador ordinário. Pelo contrário, ao magistrado deveria ser atribuído principalmente o ofício de proteção ativa dos direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão submetido à sua jurisdição.
Desse modo, acautelando-se de afastar algum resquício de radicalismo presente nas ideias de Luigi Ferrajoli, é possível a adequada aplicação com matizes dos postulados garantistas à persecução jurisdicional do ilícito de improbidade. Assim, alcança-se um tratamento judicial do imputado que satisfaça o ideário de concretização da dimensão substancial dos direitos fundamentais.
Nessa linha de intelecção, há julgados no Superior Tribunal de Justiça que já têm decidido com base na aproximação simétrica entre os braços do Direito Punitivo. Ora, reconhece-se que a “unicidade de tratamento do Direito Punitivo” é o ponto nodal para a correta interpretação dos institutos atrelados à improbidade administrativa.[62] No EREsp n. 875.163/RS, julgado pela 1ª Seção do STJ, em 23/06/2010, constou do brilhante voto do Min. Rel. Mauro Campbell Marques que:
As sanções da Lei de Ação Popular, da Lei de Ação Civil Publica e da Lei de Improbidade Administrativa não têm caráter penal, mas formam o arcabouço do direito administrativo sancionador, de cunho eminentemente punitivo, fato que autoriza trazermos à baila a lógica do Direito Penal, ainda que com granus salis. É razoável pensar, pois, que pelo menos os princípios relacionados a direitos fundamentais que informem o Direito Penal devam, igualmente, informar a aplicação de outras leis de cunho sancionatório.[63]
A despeito de ser pacífico, em sede jurisprudencial, o entendimento de que a improbidade administrativa constitui ilícito de ordem civil,[64] a doutrina de Fábio Medina Osório defende que o ato ímprobo deve ser classificado como ilícito administrativo e, por conseguinte, sujeitar-se aos postulados do regime do Direito Administrativo Sancionador, o qual, reitere-se, recebe incisivo influxo da teoria garantista do Direito Penal e limita os malefícios advindos da exacerbada “civilização” do instituto.
Apesar de defenderem a natureza civil do ilícito de improbidade, Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald[65] reconhecem expressamente que, não obstante a redação do art. 37, § 4º da CR/88, as sanções por improbidade administrativa são dotadas de forte “conteúdo” e “funcionalidade” penais, bem como de inegáveis aspectos de sanção política.[66] Concluem, lucidamente, os autorizados juristas que a ação de improbidade é dotada de “repercussões quase penais”. Corrobora-se esse entendimento, até porque, tal como ensina Fábio Medina Osório:
Apesar da natureza de ilícito administrativo de que é dotado o ato improbus, inexistem critérios qualitativos a separar os delitos e os ilícitos de ordem administrativa, tampouco um critério rigorosamente quantitativo, porque algumas sanções administrativas são mais severas do que as sanções penais.[67]
Com efeito, é plenamente factível que, em algumas hipóteses excepcionais, as repercussões de uma sanção por improbidade sejam dotadas de gravidade maior do que aquelas advindas da punição imposta ao mesmo fato pela jurisdição penal. Por exemplo, não há dúvidas de que o delito de prevaricação (art. 319 do Código Penal) abarca a mesma situação fática prevista como ilícito de improbidade pelo art. 11, II da Lei n. 8.429/92. Todavia, na seara penal, o agente está sujeito à pena de detenção de três meses a um ano, a qual certamente sofrerá a incidência dos benefícios despenalizadores da Lei n. 9.099/95 ou, então, será substituída por singelas penas restritivas de direitos (art. 43 do Código Penal), o que, por óbvio, também inviabilizará a incidência do art. 92, I, a, do Código Penal, atinente à perda do cargo, emprego ou função pública como efeito da condenação penal. Por outro lado, no âmbito da Lei n. 8.429/92, o agente ímprobo sujeitar-se-á, a depender do caso, dentre outras sanções, à perda do cargo, à suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de até cinco anos e ao pagamento de multa civil no valor de até cem vezes o valor da remuneração que percebe.
Em face de todas essas constatações, prefere-se aderir aos ensinamentos de Fábio Medina Osório, porquanto a propugnada sujeição da improbidade ao regime do Direito Administrativo Punitivo implica evidente maximização dos direitos fundamentais de titularidade dos agentes públicos.
Coadunando-se com a incidência dos postulados garantistas do Direito Penal à disciplina da infração ético-institucional ora estudada, está a “concepção fragmentária da improbidade administrativa”, segundo a qual, a punição do ilícito de improbidade deve ser encarada como ultima ratio do Direito Administrativo Sancionador. Não se deve olvidar que, no diagnóstico jurídico da improbidade, é imperioso que se afira a observância aos subprincípios da “adequação”, da “necessidade” e da “proporcionalidade em sentido estrito”, sobretudo no que se refere à adoção do regime jurídico especialmente gravoso da Lei n. 8.429/92 para a apuração de uma conduta supostamente ilícita. Isso decorre naturalmente da existência de outros sistemas de tutela de interesses públicos (tais como o da ação civil pública típica, o da ação popular e o regime administrativo disciplinar interna corporis), em cujo bojo também é possível obter, dentre outros efeitos, a anulação de atos ilegais e o ressarcimento ao erário.[68]
Em síntese, é incabível o manejo da ação de improbidade com o objetivo de combater aquelas situações que poderiam ser tuteladas adequadamente pela via da simples correição administrativa ou, mesmo, por outra via jurisdicional menos gravosa. Por conseguinte, é plenamente factível a imputação da prática de ato ímprobo ao agente público fiscalizador que, abusando de suas atribuições, venha a propor ações de improbidade que representem violação ao princípio da proporcionalidade.[69]
Se, por um lado, os legitimados à propositura desta ação devem sempre levar em consideração os efeitos deletérios advindos da mera pendência de um processo punitivo dessa magnitude, por outro, os magistrados também desempenham papel crucial nessa empreitada de mitigar tais malefícios. Considerando que, na escala axiológica de ilicitude, somente o crime ostenta maior desvalor do que a improbidade administrativa, incumbe ao magistrado fazer eficiente uso dos mecanismos preventivos que lhe faculta o art. 17, § 6º. Com supedâneo nesse preceptivo legal, o julgador não deverá receber a petição inicial de improbidade que não esteja suficientemente fundamentada e acompanhada de robusto material probatório, evitando-se, assim, que ações temerárias dêem origem a estigmas sociais e psicológicos que acompanharão o réu durante todo o trâmite jurisdicional.[70] Além disso, ao magistrado compete aplicar rigidamente as sanções por litigância de má-fé àqueles que, de forma espúria, propuserem demandas levianas.
Em face de todo o exposto e demonstrado acima, é tranquila a conclusão de que são aplicáveis ao Direito Administrativo Punitivo (e, por conseguinte, à tutela da probidade administrativa), dentre outros, os princípios da legalidade, da tipicidade cerrada, da culpabilidade em sentido amplo,[71] da motivação dos atos sancionatórios, da presunção de não culpa, do in dubio pro reo, da vedação da revisão contra o acusado de decisão absolutória acobertada pela coisa julgada material,[72] da consunção, do ne bis in idem, da proporcionalidade, da razoabilidade, do devido processo legal etc.[73] Assim, em que pese a inexistência de um rol específico de garantias processuais asseguradas aos imputados por ilícitos administrativos, a cláusula geral do devido processo legal, tanto em sua faceta formal quanto em seu viés substancial, pode servir como uma das principais fontes normativas dessas garantias fundamentais no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.[74] Acrescente-se, ademais, que a Lei n. 8.429/92 é muito lacunosa no que diz respeito aos critérios para a dosimetria da sanção a ser concretamente imposta ao agente condenado por ato de improbidade. Assim, como materialização dos princípios constitucionais da proporcionalidade (art. 5º, LIV), da razoabilidade (art. 5º, LIV) e da individualização da pena (art. 5º, XLVI), é plenamente possível a utilização analógica com matizes do art. 59 do Código Penal e do art. 128 da Lei n. 8.112/90, por escopo de realizar a adequada fixação em concreto da sanção a ser imposta ao agente ímprobo.
3.1.2. A Lei n. 8.429/92 e as normas sancionadoras em branco
Com a mesma preocupação que permeia a elaboração do presente estudo, Fábio Medina Osório também constatou a intolerável insegurança jurídica que certamente resultaria da aplicação direta e literal dos comandos normativos da Lei n. 8.429/92. Assim, por escopo de evitar que esse diploma legal acabasse por se tornar um “instrumento de arbítrio e injustiças com margens intoleráveis ao subjetivismo incontrolável dos operadores jurídicos”,[75] o renomado doutrinador suscita, de forma pioneira, interessantíssima tese, segundo a qual, as normas punitivas da Lei de Improbidade deveriam ser tidas como “normas sancionadoras em branco”, necessitando, por conseguinte, para serem aplicadas, de complementos normativos oriundos de legislações setoriais.
No escólio abalizado do referido administrativista, a improbidade administrativa seria uma conduta ilícita cuja estrutura jurídica seria composta pela conjugação necessária de normas gerais e de normas setoriais. Deste modo, para que restasse configurado o ato improbus, seria imprescindível que a conduta guerreada violasse, concomitantemente, as tipificações do Código Geral de Condutas e as legislações setoriais integradoras.[76] Em outras palavras, advoga-se a necessidade da existência de uma intermediação legislativa em todos os tipos proibitivos da Lei de Improbidade, o que deveria se dar por meio das regulamentações setoriais subjacentes. Em síntese, sendo a Lei n. 8.429/92 um diploma legislativo composto por normas sancionadoras em branco, a sua aplicabilidade estaria condicionada à existência de um complemento normativo setorial que concretizasse as suas imposições abstratas.[77]
Na realidade, Fábio Medina Osório sufraga basicamente a necessidade de introduzir-se uma maior densidade normativa à Lei n. 8.429/92, o que, por conseguinte, resultaria em uma mais efetiva concretização do princípio da segurança jurídica. Idêntico propósito está a se defender neste estudo. Todavia, opta-se por sustentar a necessidade inarredável de submeter, ainda que de lege ferenda, a disciplina legal da improbidade aos imperativos da tipicidade cerrada, alcançando, assim, um grau ainda maior de concretização do princípio da segurança jurídica, à luz de um regime plasmado pelos ideias garantistas que devem nortear a dogmática do Direito Administrativo Sancionador.
A tese defendida pelo doutrinador gaúcho merece todos os encômios, visto que analisa, de forma técnica e sensata, uma das maiores mazelas relativas à aplicação concreta dos institutos da Lei n. 8.429/92. Encarar tais regras punitivas como normas sancionadoras em branco realmente enseja uma leitura do texto legislado que se coaduna com o ideário constitucional de maximização dos direitos fundamentais. Entretanto, pelas razões exaustivamente exposta ao longo deste estudo, prefere-se sustentar, ainda assim, a tipicidade cerrada como uma solução mais eficiente no combate a estas lesões, que afetam diretamente os postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito.
3.2. Grave violação ao princípio da moralidade administrativa
É forçoso que se compreenda a grave lesão ao princípio da moralidade administrativa como o segundo elemento essencial à configuração da patologia ético-funcional objeto do presente trabalho.
Representando uma inegável aproximação entre o Direito e a Ética, a moralidade administrativa é um princípio jurídico que começou a ser estudado como um conjunto de normas de ética pública que, no início do século XX, objetivava servir como “ferramenta de rompimento do paradigma de um direito esgotado na lei, nos textos e nos dispositivos em seus conteúdos gramaticais estritos”.[78] Nesse passo, a moralidade administrativa serviu como supedâneo normativo à inauguração de um novo padrão comportamental dos agentes públicos, o qual se pauta por densas imposições de ordem ética e axiológica.[79]
Desta forma, a moral administrativa desempenhou importante papel no fortalecimento de uma legalidade substancial, em contraponto ao legalismo exacerbado que norteava o pensamento jurídico da época. Demonstrando a necessidade de realizarem-se valorações sobre as regras jurídicas vigentes, o princípio da moralidade possibilitou que o intérprete se livrasse das amarras dos métodos exegéticos formais, pautados rigidamente pela letra da lei.[80]
É incontestável, nesta toada, a relação de muita proximidade que se verificava entre as funções exercidas pelo princípio da moralidade e aquelas que eram desempenhadas pela boa-fé objetiva, uma vez que ambas atuavam com o fito de impor deveres públicos implícitos aos agentes do Estado, coibindo, deste modo, condutas violadoras do elemento axiológico da norma jurídica. Assim sendo, impuseram-se, dentre outros, os deveres de correção, de lealdade institucional, de proteção, de cooperação e de nemo potest venire contra factum proprium, todos decorrentes diretamente da moralidade administrativa e da boa-fé objetiva.[81]
Todavia, com a passar do tempo, percebeu-se que as potencialidades da moralidade administrativa não se exauriam em ser apenas uma faceta da boa-fé objetiva. De fato, reconhece-se, hodiernamente, que os deveres laterais que exsurgem do princípio da moralidade não se resumem à boa-fé objetiva (norma de conduta), abrangendo, igualmente, a boa-fé subjetiva (estado anímico do agente) e a obrigatoriedade jurídica de observância das regras de ética pública. Em síntese, “a moral administrativa engloba a funcionalidade da boa-fé objetiva, mas nela não se esgota, avançando em outros domínios funcionais”.[82]
Deste modo, pouco a pouco, a incidência dos postulados da moralidade administrativa deixou de restringir-se à disciplina do desvio de finalidade, passando a balizar todas as atuações administrativas do Estado.[83] A própria noção de democracia relaciona-se diretamente com a necessidade de um diuturno “crescimento moral da vida pública”.[84] Assim sendo, é imprescindível a observância da moralidade administrativa em todas as atuações dos agentes administrativos, mormente quando se trate do exercício de competências discricionárias.
É importante frisar o explícito acolhimento da moralidade como norte principiológico de todo o ordenamento jurídico, seja este considerado em seu viés publicista,[85] seja tomado em sua faceta privatística.[86] Nessa linha, encontra-se a lição de Juarez Freitas, segundo o qual, a Constituição não efetivou a “mera positivação inclusiva da moralidade: realizou-se, na realidade, uma proclamação vocacionada à eficácia direta de um princípio axiológico que, a par de outros, precisa ser considerado em toda e qualquer hierarquização jurídica”, tornando-se, deste modo, “pedra de arrimo do edifício jurídico”.[87]
Não se faz despiciendo, neste passo, ressaltar que a moralidade somente foi inserida no arcabouço de princípios constitucionais que rege a Administração Pública brasileira com o advento da Carta Política de 1988. Inserção esta muito coerente, aliás, com a evolução do princípio da legalidade, o qual, atualmente, abarca diversos outros princípios, tais como o da razoabilidade, da moralidade, da boa-fé e da economicidade. Não há dúvida de que a própria gênese do Estado Democrático de Direito está visceralmente vinculada à aludida dilatação do princípio da legalidade, a qual representa a luta pela reconquista do conteúdo axiológico do Direito, perdido em grande parte com o Positivismo Jurídico.[88]
Desta forma, no seio de um Estado Democrático de Direito, é importante conceber o “princípio da legalidade em sentido amplo” (ou princípio da juridicidade), com o fito de abranger não apenas o estrito cumprimento da lei, mas, sobretudo, a observância dos princípios e valores tidos como sustentáculos do próprio ordenamento jurídico.[89] Em síntese, para que se afira a plena observância ao princípio da legalidade em sentido amplo, é imperioso que se verifique o cumprimento tanto da “lei” quanto do “Direito”, o que explicita o rompimento com o ideário do hard positivism, que negava qualquer relação entre Direito e Moral.[90]
Assim, a investigação acerca da legitimidade do ato administrativo não deve se limitar apenas à verificação do cumprimento formal das imposições legais explícitas, devendo, igualmente, aferir a obediência ao “dever de lealdade às instituições” (ou “dever de ética pública”[91]). Marcelo Caetano, com percuciência, define o dever de lealdade como aquele que impõe ao agente público servir à “Administração com honestidade, procedendo no exercício de funções sempre no intuito de realizar interesses públicos, sem aproveitar os poderes ou facilidades dela decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”.[92]
Ante todo o exposto, é forçoso conceber a grave violação ao princípio da moralidade administrativa como um requisito impostergável à caracterização da figura ilícita de improbidade.[93] Não há como negar que toda improbidade constitui, antes, uma imoralidade administrativa. Entretanto, nem toda imoralidade alcançará o status de improbidade, uma vez que há diversos outros requisitos essenciais à perfeição do ato improbus, sendo, por conseguinte, plenamente factível a ocorrência de uma eventual imoralidade que não atinja as raias da improbidade, já que esta pressupõe, sobretudo, a índole de desonestidade.
Frise-se que, para a existência dessa infração ético-funcional, a lesão ao princípio da moralidade deve ser grave a ponto de atingi-lo em sua alma, em seu âmago, isto é, o princípio deve ser imediata e nuclearmente violado. Em outras palavras, somente será catalogável como ímproba a conduta funcional que represente “o destoamento nítido e grave da moralidade percebida pelo senso médio superior da coletividade”.[94] Tal gravidade é aferível tanto pelo elemento subjetivo do comportamento reprovável quanto pelo descompasso de sua dimensão objetiva com as imposições do sistema jurídico.[95] Portanto, à luz da fragmentariedade que norteia a aplicação concreta da improbidade, a exigência de um elevadíssimo grau de lesividade ao princípio da moralidade administrativa constitui importante elemento restritivo à caracterização dessa patologia funcional.
Além disso, a própria Constituição da República faz expressa menção tanto à moralidade (e.g., art. 5º, LXXIII; art. 14, § 9º; art. 37, caput) quanto à improbidade administrativa (e.g., art. 14, § 9º; art. 15, IV; art. 37, § 4º; art. 85; art. 97, § 10, III), o que, por si só, pode ser compreendido como a adoção de uma efetiva escala axiológica para a punição das infrações que lesem a moralidade administrativa. Nessa linha de intelecção, somente estará configurada a improbidade, caso haja uma imoralidade de grau especialmente elevado, ou seja, uma imoralidade qualificada. Com esse mesmo pensamento, Edilson Pereira Nobre Júnior ensina que:
Não haveria sentido de o Constituinte distinguir a improbidade da moralidade administrativa se não fosse para legar àquela um conteúdo especial. Isto porque a só ofensa à moralidade administrativa já acarretaria as conseqüências previstas na Lei 4.717/65, relativas à ação popular, não havendo, portanto, que se criar dois institutos para se alcançar fim idêntico.[96]
Campo especialmente fértil à grave violação aos postulados da moralidade administrativa é, indubitavelmente, o procedimento de licitação pública.
Assim, afigurou-se perfeito o entendimento adotado pela 1ª Turma do STJ, no REsp n. 439.280/RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 01/04/2003, DJU 16/06/2003, ocasião em que se entendeu que a improbidade por vício de legalidade na licitação (art. 10, VIII, ab initio, Lei n. 8.429/92) somente restou concretizada, em virtude da prévia evidenciação da ocorrência de intolerável lesão aos princípios da moralidade e da impessoalidade. No caso dos autos, determinado Município celebrou contrato administrativo, mediante o procedimento licitatório “convite”, com uma empresa cujos sócios eram o Vice-Prefeito e o irmão do Prefeito, pessoas impedidas de licitar. Ora, o vício de legalidade da mencionada licitação adveio, obviamente, da mera participação de pessoas sujeitas a impedimentos legais. No entanto, essa ilegalidade, isoladamente considerada, não ensejaria a imputação da prática de improbidade, haja vista que a constatação do referido vício não demonstra, automaticamente, a grave lesão ao princípio da moralidade. Portanto, o julgado deixa explícito que a improbidade caracterizou-se, sobretudo, pela constatação da existência de conluio entre as partes com o intuito de frustrar a legalidade da licitação, o que acarreta grave prejuízo à moralidade e à impessoalidade que devem nortear a atuação administrativa.
Logo, em que pese a redação do art. 10, VIII, parte inicial, da Lei n. 8.429/92, é plenamente factível que a frustração da liceidade de um procedimento licitatório não venha a caracterizar a patologia de extrema gravidade representada pelo ilícito de improbidade.
Outra situação em que, frequentemente, se verifica o cometimento de atos de improbidade é a que envolve, nos termos art. 10, VIII, in fine, da Lei n. 8.429/92, a contratação direta levada a cabo por dispensa de licitação. Grande parcela desse elevado número de casos de improbidade origina-se, em muito, da amplitude semântica e do alto grau de abstração presentes na disciplina legal da contratação direta. Dessa forma, se, por um lado, a elasticidade das hipóteses de dispensa confere aos administradores a possibilidade de desenvolver juízos interpretativos para aferir, em casos limítrofes, a obrigatoriedade ou não da realização da licitação, por outro lado, tais regras de ínfima concretude também abrem considerável espaço para que agentes públicos mal intencionados atuem à margem da juridicidade.
Portanto, não obstante a inapropriada redação do art. 10, VIII, in fine, o importante é compreender que a simples demonstração da ilegalidade da dispensa do procedimento licitatório não implicará automática configuração de improbidade administrativa, haja vista que a desonestidade funcional não se encontrará, pelo menos em regra, cabalmente demonstrada. Afigura-se factível a ocorrência de falhas que se situem dentro das balizas do erro comum do administrador público. Esses comportamentos, a despeito de estarem contaminados pela irregularidade, serão aptos a caracterizar, quando muito, falta funcional culposa. Além disso, muitas situações de dispensas supostamente ilegais estão a versar hipóteses realmente controversas, o que impede, prima facie, que se qualifique esse ato como improbidade administrativa.[97]
Por meio desses dois exemplos, almejou-se demonstrar que o entendimento que aloca a grave imoralidade administrativa como requisito à configuração da improbidade não ostenta apenas superioridade teórica, mas, também, traz benefícios pragmáticos à adequada e justa aplicação da Lei n. 8.429/92.
3.2.1. O conceito doutrinário de improbidade e o princípio da moralidade administrativa
Em sede doutrinária, é assentado o reconhecimento da existência de uma íntima e indissociável relação entre a improbidade e o princípio da moralidade administrativa.
Nos ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, a ação de improbidade administrativa visa precipuamente à preservação, pela via jurisdicional, do princípio da moralidade administrativa, vez que, “diante do direito positivo, o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade”.[98] Daí conclui o doutrinador que a moralidade, em si, é um elemento aberto e disciplinador de todas as condutas da Administração Pública, ao passo que a improbidade deve ser encarada como uma “imoralidade administrativa qualificada pela lei”.
Nesse sentido, ainda, José Afonso da Silva, em seu clássico Curso de Direito Constitucional Positivo, defende a tese de que a imoralidade representa uma ideia mais ampla e que abarca a noção de improbidade, uma vez que esta é uma imoralidade administrativa qualificada em sede constitucional.[99] Portanto, a improbidade é espécie do gênero imoralidade, o que deixa transparecer, mais uma vez, a ideia de que somente existirá improbidade (espécie), se, antes, puder ser constatada uma imoralidade (gênero). Em dicção muito próxima, encontram-se, ademais, os ensinamentos de Aristides Junqueira Alvarenga, segundo o qual, a improbidade é uma imoralidade administrativa qualificada pela desonestidade, sendo, pois, espécie do gênero imoralidade administrativa.[100]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, defende que, enquanto consideradas como princípios, as expressões “moralidade” e “probidade” estão, a rigor, vinculadas entre si por uma relação de sinonímia, tendo em vista que ambas dizem respeito à noção de honestidade na conduta funcional. Isto é, quando se exige probidade ou moralidade administrativa, “não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos”.[101]
Contudo, a autora ressalta que somente existe essa identidade de significados entre as expressões, enquanto as consideramos como princípios, porque, quando nos referimos à improbidade como “ato ilícito”, ou seja, como infração sancionada pelo ordenamento jurídico, não mais perduraria a sinonímia entre improbidade e imoralidade. Entende Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “improbidade” teria um sentido muito mais amplo do que o de “imoralidade”, vez que aquela abarcaria não só atos desonestos ou imorais, mas também os meramente ilegais. Partindo dessas premissas, a autora conclui que “a lesão à moralidade administrativa é apenas umas das inúmeras hipóteses de atos de improbidade administrativa previstos em lei”.[102]
Discorda-se. É correto que a improbidade, quando encarada como ato ilícito, deixa de se identificar plenamente com a imoralidade, porém, não se afigura razoável asseverar que a violação à moralidade administrativa é apenas uma das hipóteses de condutas tipificadas como ímprobas.
Na realidade, tal como demonstrado, a lesão ao princípio da moralidade é um dos precípuos elementos constitutivos de toda e qualquer improbidade. Ao se fechar os olhos para a importância desse requisito, corre-se o risco de grave distorção do próprio desenho constitucional do ilícito de improbidade, em patente violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Em suma, quando se encara a moralidade e a improbidade como atos ilícitos (e não mais como meros princípios informativos), pulveriza-se a relação de sinonímia entre as expressões, exsurgindo, em seu lugar, a constatação de que a grave violação à moralidade é requisito essencial à caracterização da improbidade administrativa.
Conclui-se que conceber a improbidade administrativa como um ilícito de “imoralidade qualificada” ostenta, pelo menos, dois incontestáveis benefícios pragmáticos: primeiro, evitar que se confunda a mera ilegalidade com a improbidade administrativa;[103] segundo, restringir a utilização do instituto da improbidade apenas àquelas hipóteses realmente dotadas de um solene grau de lesividade ao princípio da moralidade administrativa.[104]
3.2.2. Improbidade administrativa como espécie de má gestão pública eivada de desonestidade
Nos ensinamentos pioneiros de Maurice Hauriou, a noção de “boa administração pública” (ou “boa gestão pública”) já era identificada como o suporte fundamental do princípio da moralidade administrativa.[105] Hauriou demonstra que esse princípio está funcionalmente alicerçado nos postulados de boa gestão pública. A verificação da boa administração não deve levar em consideração apenas a obediência ou não daquilo que estiver pormenorizadamente consagrado em lei, porquanto seus parâmetros também abarcam deveres ético-funcionais implícitos. Deste modo, o festejado jurista francês claramente se contrapunha ao hard positivism, Escola de incisiva influência no início do século XX. Fábio Medina Osório, ao trabalhar o tema, esclarece que:
Existia uma moralidade administrativa segundo a qual o administrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disciplina interna da Administração Pública, o que significava a obediência necessária a pautas de boa administração, transcendendo as minúcias ou previsões expressas nas regras legais. A boa administração comportaria, por esse ângulo, um universo de condutas eticamente exigíveis dos administradores públicos, tivessem ou não previsão expressa no ordenamento jurídico.[106]
A desonestidade funcional é uma das mais fúnebres facetas da má gestão pública, cujas raízes já podiam ser encontradas, e de modo extremamente nefasto e com dimensões descomunais, desde a Roma Antiga.[107] Portanto, a degradação moral dos agentes públicos e a podridão da vida política constituem fenômenos perenes que insistem em desrespeitar os rígidos padrões éticos que, por imposição do princípio da moralidade administrativa, devem (ou, ao menos, deveriam) pautar atuação dos homens do Estado.
Lado outro, a grave ineficiência de agentes públicos é a outra faceta da má gestão pública. Caso uma dada conduta funcional tenha sido praticada com desconsideração dos imperativos da ética pública, ainda que logre alcançar resultados administrativos benéficos, esse comportamento deverá ser taxado como “ineficiente”, uma vez que os resultados obtidos estarão fatalmente contaminados pela imoralidade que inquinou o iter percorrido pelo agente público. Na dicção de Fábio Medina Osório:
Uma atuação contra as regras éticas que presidem o setor público não pode ser eficiente, já que seus resultados e, mais do que isso, seus caminhos estão entranhados no conjunto de danos produzidos. Um agente público que, atropelando fórmulas ético-normativas, consegue obter resultados econômicos favoráveis não será um sujeito eficiente na perspectiva da ética institucional.[108]
O princípio da moralidade é um valor aberto ao qual toda atuação administrativa deve se amoldar, de modo que o seu amplo espectro de incidência também repercute na valoração das imposições oriundas do princípio da eficiência no setor público. Com isso, da harmonização entre o princípio da eficiência e o princípio da moralidade administrativa, infere-se que a observância plena do próprio princípio da eficiência funcional pressupõe, necessariamente, o estrito cumprimento dos deveres da ética pública. Em outros termos, o cumprimento do princípio da eficiência no setor público reclama muitos mais do que a simples otimização do dispêndio dos recursos públicos e a eficiente organização da estrutura administrativa.
Nesse passo, é importante que não se confunda a ideia de eficiência exigida pelo setor privado com aquela outra que, por incidência do princípio da eficiência administrativa, deve permear a atuação do Poder Público. É evidente que a boa gestão pública não deve observância apenas aos imperativos da boa gestão empresarial, visto que esta se preocupa basicamente com interesses privados, os quais podem ser resumidos na percepção de resultados econômicos favoráveis. A boa administração pública, por sua vez, além de almejar resultados que satisfaçam os interesses privados da coletividade, reclama também a adequação ética da conduta funcional. Assim sendo, “os meios e os fins são relevantes e positivamente valorados dentro dos paradigmas do bom administrador (público), daí a processualidade das relações nesse setor”.[109]
A boa gestão pública pressupõe a conjugação e a harmonização dos princípios da eficiência funcional e da moralidade administrativa. Isto é, a boa administração não se pauta exclusivamente pela aferição de eventuais resultados vantajosos, uma vez que se deve, igualmente, avaliar o “proceder do homem público”. À luz do princípio da moralidade administrativa, é também dever funcional a adoção de caminhos e métodos que sejam eticamente adequados. Em síntese, são inadmissíveis condutas funcionais economicamente úteis, mas eticamente perniciosas à sociedade, sob pena de aniquilar-se toda a eficácia do princípio da moralidade administrativa.[110]
Em face da estreita relação existente entre a violação aos ditames da boa administração e a imoralidade administrativa, sustenta Fábio Medina Osório que a improbidade representa a principal espécie de grave má gestão pública.[111] Logo, ainda que nem toda má gestão pública deva ser encarada como improbidade administrativa, o inverso é fatalmente verdadeiro.
Entretanto, ao identificar a improbidade administrativa como espécie de má gestão pública, Fábio Medina Osório defende, com veemência, que o ilícito de improbidade poderia se expressar de duas maneiras distintas: grave desonestidade do agente público e intolerável ineficiência funcional. Ora, ao assim proceder, o autor acaba reconhecendo a possibilidade de responsabilização, a título de improbidade, pela prática de ilícitos culposos.
A nosso sentir, no entanto, tal como restará exaustivamente demonstrado no item 3.3, a improbidade somente se configura pela prática de condutas conscientes e intencionais (representação e vontade – ou seja, dolo), não se podendo aceitar a caracterização desse ilícito em virtude de ineficiência funcional. Assim, deve-se identificar a improbidade administrativa como uma espécie de “má gestão pública eivada de desonestidade”, descartando a aplicação de suas severíssimas sanções àquelas condutas meramente ineficientes ou negligentes.[112]
Por evidente, não se ignora o sério problema institucional de ineficiência e negligência por parte de alguns agentes no desempenho de sua função pública. Entretanto, afigura-se mais razoável (e constitucionalmente adequado) que tais servidores sejam punidos pela própria Administração, no bojo de um procedimento administrativo disciplinar, ou, até mesmo, pelos órgãos dotados de competência jurisdicional, porém fora das raias da improbidade.
Na seara do combate à ineficiência funcional, a Administração já se encontra suficientemente protegida, uma vez que seus interesses, nesses casos, podem ser adequadamente tutelados pela disciplina normativa da Lei n. 4.717/65 e da Lei n. 7.347/85. Deste modo, a Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada com exclusividade àquelas condutas funcionais eivadas de dolo, sob pena de sermos forçados a aceitar o inapropriado entendimento de ter o constituinte originário previsto três institutos distintos (improbidade administrativa, ação popular e ação civil pública) para salvaguardar idênticas facetas do interesse público.
Ora, restou demonstrado que o conceito de má gestão pública abarca, de fato, tanto a ideia de desonestidade funcional quanto a de grave ineficiência no seio da Administração. Contudo, não é adequada a responsabilização por improbidade em virtude de condutas meramente culposas, haja vista que não se verificará lesão ao princípio da moralidade administrativa, a qual é, segundo a melhor doutrina, um dos principais elementos configuradores do ilícito de improbidade. Assim, para que se imputem as sanções previstas na Lei n. 8.429/92, faz-se mister a existência de má gestão pública eivada de desonestidade – ou seja, lesiva ao princípio da moralidade administrativa –, de modo que a mera ineficiência culposa do servidor público, ainda que dotada de irrefutável gravidade, é insuficiente para, por si só, caracterizar a excepcional figura punitiva sob exame.[113]
Com o fito de abarcar os atos funcionais eivados de grave ineficiência no conceito de má gestão pública (desgoverno) e, por conseguinte, possibilitar (ao ver de Fábio Medina Osório) a caracterização de improbidade administrativa em tais situações, o mencionado doutrinador procura aproximar as duas facetas da má gestão pública, nos seguintes termos:
A ineficiência em altos graus proporciona o ambiente ideal à corrupção, já que o exercício de um simples direito se transforma em favor. Além disso, o ambiente desorganizado, o desgoverno, é o terreno mais aberto às graves desonestidades e também à impunidade.[114]
Ademais, Fábio Medina Osório demonstra, de forma insofismável, que existe uma forte tendência global no sentido de aproximar a disciplina repressiva aplicável à desonestidade e à grave ineficiência funcionais, vez que ambas estão abarcadas pelo conceito de “má gestão pública” – também chamada, na Europa, de desgoverno, maladministration ou administrative malpractice. Todavia, ainda que se aceite que, no contexto brasileiro, semelhante aproximação também seja pertinente, é forçoso o reconhecimento de que, por outro lado, à luz das sanções extremamente severas cominadas, bem como do sólido entendimento doutrinário que relaciona a improbidade à imoralidade, não se pode admitir a aplicação das punições de improbidade àquelas condutas meramente ineficientes, sob pena de incontestável violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
3.3. Elemento volitivo: dolo
Um dos temas mais polêmicos relacionados à improbidade administrativa é, indubitavelmente, a discussão acerca do elemento volitivo que deve mover a conduta do agente público para que se caracterize a grave patologia funcional objeto deste estudo. Há entendimentos doutrinários e pretorianos em todos os sentidos, recrudescendo, ainda mais, a insegurança jurídica que permeia a dogmática administrativista especializada no tema.
Por um lado, tem-se forte corrente doutrinária, capitaneada por Edilson Pereira Nobre Júnior e Aristides Junqueira Alvarenga, entendendo que a improbidade administrativa pressupõe vontade livre e consciente do sujeito ativo no sentido de violar o sistema jurídico, sendo, deste modo, incompatível com a modalidade culposa.[115]
Em sentido diametralmente oposto, encontram-se Nicolao Dino Costa Neto, George Sarmento[116] e José Jairo Gomes,[117] que concebem, sem qualquer restrição, a possibilidade do legislador elevar condutas meramente culposas ao status de improbidade, cabendo ao magistrado, no momento de fixação das sanções, levar em conta o grau de reprovabilidade do elemento subjetivo presente no comportamento ilícito do agente.
Em uma posição intermediária, localizam-se os pensamentos de Juarez Freitas,[118] Fábio Medina Osório,[119] Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald,[120] segundo os quais, a improbidade pode ser punida a título de dolo ou de culpa grave, restando impossível apenas a configuração dessa infração ético-funcional nas condutas pautadas por culpa leve ou levíssima.
A despeito de poderem ser tranquilamente incluídas na referida corrente intermediária, as considerações tecidas por Fábio Medina Osório[121] merecem, em virtude da forma peculiar com que aborda o tema, algumas explicações adicionais. Segundo o doutrinador, é possível que, a partir da leitura da redação legal de cada um dos modelos proibitivos, o intérprete vislumbre a natureza dolosa e/ou culposa de cada tipo previsto na lei. Partindo dessa premissa, o autor conclui que o art. 9º, em seu caput, somente comportaria a figura típica dolosa, ao passo que os seus incisos poderiam admitir tanto a modalidade gravemente culposa[122] quanto a dolosa, a depender da análise concreta da estruturação textual empregada em cada inciso. Forte nessa mesma justificativa, afirma que, no que tange ao art. 10, tanto a sua cabeça quanto os seus incisos abarcariam a modalidade de culpa grave e a de dolo. Por fim, o autor afirma que o art. 11, caput e inciso I, somente comportariam a improbidade dolosa, enquanto que os incisos II a VII abarcariam, em razão da amplitude semântica de seus textos, tanto o tipo dolo quanto o de culpa grave.
Para que chegasse à conclusão condensada acima, Fábio Medina Osório, sem expor qualquer justificativa plausível, sufraga expressamente o absurdo entendimento de que, na Lei n. 8.429/92, o silêncio acerca do elemento volitivo exigível para o cometimento da improbidade somente seria “eloquente” em relação ao caput do arts. 9º, 10 e 11, não o sendo, porém, no que diz respeito aos seus incisos. Reitere-se: o referido doutrinador não expõe qualquer argumento que pudesse fundamentar essa diferença de tratamento dentro da mesma modalidade de improbidade administrativa. Ora, não são dotadas de qualquer discrímen entre si as circunstâncias fáticas previstas nos caput e aquelas outras arroladas nos incisos, o que demonstra a incoerência da grave diferença de tratamento jurídico concebida pelo professor gaúcho. Com supedâneo nessa equivocada premissa, Fábio Medina Osório parece defender a possibilidade de se caracterizar enriquecimento ilícito por condutas culposas,[123] o que, à evidência, se afigura logicamente inaceitável.
Juarez Freitas, por sua vez, ao defender a posição intermediária (improbidade administrativa caracterizada por dolo ou culpa grave), acaba por cair em insanável contradição, visto que ele expressamente arrola a “inequívoca intenção desonesta”[124] como sendo o precípuo requisito à configuração da improbidade. Ora, é cediço que o dolo é composto por representação e vontade (ou intenção), de modo que, sendo a grave intenção desonesta um requisito inarredável da improbidade, deve-se afastar, pelos fundamentos expostos pelo próprio doutrinador, a possibilidade de improbidade na modalidade culposa. Onde se verifica “inequívoca intenção desonesta”, há nitidamente dolo, e não simples culpa na conduta funcional. Semelhante incoerência também é encontrada nas lições de Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes, haja vista que os autores afirmam, em uma mesma página,[125] de um lado, que é possível a improbidade culposa e, de outro, colocam a comprovação da má-fé e da desonestidade do agente como requisitos essenciais à improbidade. No entanto, não se coaduna com a lógica do razoável a existência de desonestidades ou más-fés meramente culposas.
Com o intuito de reforçar a sua tese, Fábio Medina Osório demonstra irrefutavelmente que o “Código Internacional de Condutas para Titulares de Cargos Públicos”[126] exige que o servidor atue sempre a favor do interesse público, porquanto exerce um cargo que implica especial confiança por parte dos cidadãos. Tal dever especial de lealdade, consagrado agora em sede normativa internacional, impõe ao agente que, em todas as suas atuações, procure administrar os recursos públicos com o maior grau possível de eficiência. Portanto, o referido conjunto normativo supranacional não se contenta com a mera honestidade dos homens públicos, exigindo, ademais, que estes sejam eficientes, diligentes e, sobretudo, justos. Quanto a isso, não há margem para qualquer dúvida. Todavia, com fulcro nessas considerações, o referido administrativista acaba por concluir que: “a LGIA (Lei n. 8.429/92) está em sintonia com as diretrizes internacionais, na medida em que consagra mecanismos de repressão aos atos culposos e dolosos”.[127]
Discorda-se de Fábio Medina Osório. É cediço que o aludido diploma internacional realmente impõe tanto o dever de honestidade quanto os de eficiência, diligência, presteza, solicitude e zelo aos servidores no trato com a coisa pública. Faz-se necessária, por conseguinte, a punição do agente que, intencional ou culposamente, fira o interesse público. Entretanto, ao contrário do que expõe o mencionado doutrinador, em momento algum o Código Internacional determina a punição, a título de improbidade administrativa, aos atos culposos dos homens públicos. Ora, mecanismos de repressão ao agente público negligente ou desidioso são imprescindíveis e sempre existirão na ordem constitucional brasileira. No âmbito do controle interno disciplinar, existem os processos administrativos, que podem resultar inclusive na demissão do servidor[128] e que são disciplinados, mormente, pelos respectivos estatutos funcionais. Ao passo que, na seara do controle externo, podem ser manejadas, dentre outras, ações ordinárias de responsabilidade civil, ações populares, ações civis públicas típicas ou procedimentos de tomada de contas nos Tribunais de Contas, com o intuito de responsabilizar o agente que, culposamente, atuou em desacordo com as suas diretrizes funcionais. O que não se deve admitir é a draconiana imposição da mácula de desonestidade cumulada com a aplicação de sanções de extraordinária severidade àqueles agentes públicos que somente pecaram por serem ineficientes ou desidiosos.
Em síntese, é incontestável a necessidade de que sejam idoneamente punidos os servidores públicos que culposamente lesem os interesses da Administração, o que, contudo, afigura-se inaceitável, desarrazoado e desproporcional é imputar-lhes a prática de improbidade administrativa, apenando-os com as severíssimas sanções a ela atreladas.
Nesta toada, concorda-se, in totum, com o entendimento de Edilson Pereira Nobre Júnior e Aristides Junqueira Alvarenga, de acordo com o qual, a presença de dolo é um dos principais elementos configuradores do ato improbus. Além disso, o próprio conceito doutrinário de improbidade está, tal como demonstrado supra, inexoravelmente atrelado à ideia de imoralidade administrativa qualificada, que pressupõe a presença do ânimo de desonestidade.[129]
No Direito Administrativo Sancionador, a punição a título de culpa é dotada de excepcionalidade, em virtude da aplicação analógica do art. 18, p.u., do Código Penal, segundo o qual, salvo disposição expressa em sentido contrário, nenhum cidadão será punido pela prática de fato previsto como crime, senão quando atuar dolosamente. Ora, ubi eadem ratio, idem jus, devendo a aludida regra ser aplicada aos dois ramos do Direito Punitivo (Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador). Na omissão legislativa, há presunção iuris et de iure da tipificação apenas da conduta dolosa. Trata-se, pois, de um “silêncio eloquente restritivo”.[130]
Em sentido contrário, Fábio Medina Osório, alterando a posição que anteriormente sustentava, defende que, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, existe um verdadeiro silêncio eloquente em prol do alargamento do espectro punitivo estatal.[131] Todavia, novamente, não se pode concordar. Ora, uma das principais características do Estado Democrático de Direito é a preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais em sua dimensão substancial, de modo que estes sempre devem ser interpretados ampliativamente. Na realidade, o próprio rol constitucionalmente consagrado de direitos fundamentais, vetor interpretativo de toda a CR/88, exerce a importante função de represar, em limites juridicamente aceitáveis, a cobiça punitiva do Estado. Desta feita, não há como se presumir, à luz de postulados garantista, a restrição a direitos fundamentais dos cidadãos, pois esta é, sem dúvida, uma exceção e toda situação excepcional deve ser interpretada restritivamente (exceptiones sunt strictissimae interpretationis).[132]
Ademais, não se devem imputar aos cidadãos as graves consequências advindas da falta de técnica legislativa de nossos agentes políticos. A responsabilidade pela ausência de um marco regulatório expresso e ostensivo sobre o elemento subjetivo necessário à caracterização da improbidade deve ser atribuída exclusivamente ao Estado. Afinal, em sede de Direito Punitivo, eventuais ambiguidades devem ser sempre interpretadas favor rei, aumentando, por conseguinte, o ônus probatório e argumentativo dos acusadores, de modo que deverão comprovar, de forma inequívoca, o dolo do agente supostamente ímprobo, para que logre a sua condenação, sobretudo nas modalidades dos arts. 9º e 11 da Lei n 8.429/92.
Apesar do peculiar entendimento esposado por Fábio Medina Osório sobre uma eventual possibilidade de imputação de improbidade administrativa por comportamentos culposos com fulcro no art. 9º, é imperioso que se afirme que essa tese não encontra ressonância significativa na doutrina e muito menos nos Tribunais pátrios. Assim, afigura-se amplamente majoritário o entendimento de que é inconcebível a hipótese de um agente público que venha a enriquecer-se ilicitamente em razão de eventuais condutas que tenha praticado de forma negligente, imprudente ou imperita.[133]
É importante analisar, neste momento, o entendimento jurisprudencial acerca do elemento subjetivo que deve pautar a conduta do agente público, para que lhe sejam aplicadas as sanções atreladas ao ilícito de improbidade por violação aos princípios informativos da Administração (art. 11 da Lei n. 8.429/92).
Na 2ª Turma do STJ, era sedimentado o entendimento de que seria dispensável, para fins de configurar a modalidade de improbidade prevista no art. 11, qualquer análise sobre o elemento subjetivo da conduta funcional. Em outros termos, a mera violação aos princípios regentes da Administração, por si só, já caracterizava a prática de ato ímprobo, existindo, assim, uma verdadeira responsabilidade funcional objetiva.[134] Em suma: esta grave infração ético-institucional poderia ser imputada ao agente público, ainda que restasse comprovado que ele não agiu com dolo nem com culpa.
Diametralmente oposto era o entendimento sufragado pela 1ª Turma do STJ, haja vista que esta sempre considerou indispensável a demonstração do dolo do agente, para que se lhe imputasse a prática da modalidade de improbidade administrativa disciplinada no art.11.[135]
Colocando um fim à inaceitável insegurança jurídica que plasmava o tema, a 2ª Turma, no REsp n. 765.212/AC, relatado pelo Min. Herman Benjamin, julgado em 02/03/2010, publicado no DJe de 23/06/2010, alterou o seu entendimento, aderindo expressamente à posição que já era adotada pela 1ª Turma. Reconheceu-se, pois, a incompatibilidade entre a imputação de responsabilidade objetiva e o regime garantista que deve permear o Direito Punitivo. Além disso, o art. 37, §6º da CR/88 expressamente exige a presença de culpa ou dolo por parte do servidor público para que seja possível o manejo de ação regressiva pelo ente estatal. Assim sendo, uma vez consagrada a responsabilidade funcional subjetiva para a hipótese de simples ressarcimento ao erário, que não se confunde com a imposição de punição, “maiores e melhores razões existem para fundamentar a culpabilidade como princípio constitucional, limitando todo o Direito Punitivo do Estado”.[136]
Com supedâneo nesses argumentos, desde então, a 1ª Seção do STJ (composta pela 1ª e 2ª Turmas) passou a firmar, solidamente, o entendimento de que a existência da improbidade prevista no art. 11 exige a presença de “dolo genérico”,[137] seja na espécie “dolo direto” (representação e vontade de produção do resultado querido), seja na espécie “dolo eventual” (aceitação do risco de produção do resultado). Desta forma, por meio do “dolo genérico”, dispensou-se a comprovação da intenção específica do agente de violar princípios administrativos, bastando a constatação de que ele haja consentido em atuar em determinado sentido.
Portanto, é fundamental frisar que, hodiernamente, no que tange especificamente ao art. 11 da Lei n. 8.429/92, encontram-se completamente superadas tanto a tese da responsabilidade objetiva quanto aquela que pregava a possibilidade de configuração de improbidade administrativa culposa. Ora, isto se deve, por um lado, à exigência de desonestidade como elemento constitutivo da improbidade e, por outro, à necessidade de aproximação entre os dois braços do Direito Punitivo, aplicando-se ao Direito Administrativo Sancionador os princípios informativos do Direito Penal, sobretudo o princípio da responsabilidade exclusivamente subjetiva e o princípio da legalidade estrita.[138]
Por derradeiro, ressalte-se que, tendo em vista os meios de prova razoavelmente postos à disposição dos sujeitos processuais, é evidente que a comprovação cabal da presença de dolo em determinada conduta administrativa afigura-se, muitas vezes, inviável, quase impossível sob o ponto de vista pragmático. Entretanto, ainda que a demonstração do “dolo em si” seja algo temeroso, deve-se lembrar que, na realidade, é plenamente possível a comprovação da ocorrência de circunstâncias objetivas exteriores que, em face de considerações de ordem empírica, façam com que o magistrado possa, por indução, concluir pela presença, no caso sob exame, do referido elemento subjetivo do fato típico.[139]
Em suma, trata-se da comprovação do elemento subjetivo por meio de “indícios”, ou seja, provas indiretas,[140] que se consubstanciam na demonstração de dados objetivos que autorizem a indução sobre a presença de dolo na conduta funcional.
3.3.1. Improbidade administrativa culposa: inconstitucionalidade
Muito mais proveitosa e desafiadora se afigura, neste momento, uma análise mais acurada acerca do elemento subjetivo necessário à caracterização da modalidade de improbidade por danos ao erário, disciplinada no art. 10 da Lei de Improbidade.
Por meio de uma interpretação meramente literal do art. 10 da Lei n. 8.429/92, consolidou-se, na 1ª e 2ª Turmas do STJ, sem maiores celeumas, o entendimento de que seria possível o cometimento dessa modalidade de improbidade pela prática de condutas culposas. A título meramente ilustrativo, cite-se, por todos, excerto do REsp n. 951.389/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 09/06/2011, publicado no DJe de 04/05/2011, em que cuja ementa restou assentado: “é importante ressaltar que a forma culposa somente é admitida no ato de improbidade administrativa relacionado à lesão ao erário (art. 10 da LIA), não sendo aplicável aos demais tipos (arts. 9º e 11 da LIA)”.[141] Corroborando esse posicionamento pretoriano, encontra-se a quase unanimidade da doutrina pátria,[142] segundo a qual, comportamentos culposos podem ser dotados de suficiente gravidade a ponto de serem alçados ao status de imoralidade administrativa qualificada.
Mas seria esse mesmo o melhor entendimento? Seria realmente factível que uma conduta culposa, além de lesar o erário, resultasse em gravíssima e intolerável violação ao princípio da moralidade administrativa? Seria verdadeiramente possível a violação aos mais elevados deveres ético-institucionais por atos movidos apenas por culpa?
Ora, se, por um lado, a doutrina e jurisprudência são uníssonas em alocar o combate à desonestidade funcional como a precípua meta da Lei de Improbidade, por outro, aceitam passivamente a configuração da improbidade administrativa por condutas culposas. Há evidente incoerência nesse modo de pensar.
Tal como restou demonstrado no item 3.2.1. supra, consolidada posição doutrinária identifica o ilícito de improbidade como uma “imoralidade administrativa qualificada”, denotando que o principal bem jurídico tutelado pelo diploma legal é justamente o dever de lealdade do agente público em sua relação com o Estado. O ilícito de improbidade administrativa, reitere-se à exaustão, visa a guerrear condutas gravemente desonestas, corruptas, violadoras de normas de ética pública. Isto é, almeja-se extirpar dos quadros funcionais aqueles agentes devassos que, indiscutivelmente, não façam jus à confiança estatal neles depositada.
Nesta toada, tanto em sede doutrinária[143] quanto nos Tribunais, afirma-se a imprescindibilidade da comprovação da má-fé para a existência de ato improbus. Na jurisprudência:
“Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ associam a improbidade administrativa à noção de desonestidade, má-fé do agente público. Somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a configuração de improbidade por ato culposo (Lei n. 8.429/92, art. 10). O enquadramento dos arts. 9º e 11 da Lei de Improbidade, portanto, não pode prescindir do reconhecimento de conduta dolosa”. Grifou-se. (REsp n. 604.151/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, j. 25/04/2006, DJU 08/06/2006)
“Como vem reconhecendo a doutrina, o ato de improbidade é um ato ilegal e praticado com má-fé, esta, essência da imoralidade”. Grifou-se. (REsp n. 514.820/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, v.u., j. 05/05/2005, DJU 24/05/04).[144]
“A má-fé (...) é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvado pela má-intenção do administrador”. Grifou-se. (REsp n. 807.551/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 25/09/2007, DJe 05/11/2007)
“O ato de improbidade, a ensejar a aplicação da Lei n. 8.429/92, não pode ser identificado tão somente com o ato ilegal. A incidência das sanções previstas na lei carece de um plus, traduzido no evidente propósito de auferir vantagem, causando dano ao Erário, pela prática de ato desonesto, dissociado da moralidade e dos deveres de boa administração, lealdade e boa-fé”. Grifou-se. (REsp n. 269.683/SC, relatoria para o acórdão do Min. Paulo Medina, 2ª Turma, j. 06/08/2002, DJU 03/11/2004)
Ora, os mesmos julgados que, de um lado, reconhecem a plausibilidade de improbidade por condutas culposas, de outro, inserem, como requisito inarredável dessa infração ético-institucional, a “desonestidade”, a “má-fé”, a “má-intenção do administrador”, o “evidente propósito de auferir vantagem” etc. Há uma evidente incoerência, pois é absolutamente descabido falar em má-fé no âmbito de condutas contaminadas exclusivamente pela culpa em sentido estrito.
Uma simples leitura dos arestos colacionados leva-nos à óbvia e insofismável conclusão: todos eles estão a fazer clara referência à necessidade de má-fé subjetiva, ou seja, eles exigem, para que haja improbidade, um estado de ânimo que esteja em desconformidade com os postulados da ética institucional. No entanto, não há como se conceber que um agente que viole tão-somente deveres objetivos de cuidado tenha realmente atuado imbuído de espírito desonesto (má-fé subjetiva). Ora, se má-fé subjetiva houvesse, estar-se-ia a falar de dolo (direto ou eventual), e não de culpa. Portanto, o ânimo de má-fé somente é compatível com comportamentos dolosos (representação e vontade).
Com idêntico raciocínio, encontram-se os irretocáveis ensinamentos de Edilson Pereira Nobre Júnior, senão vejamos:
Não posso olvidar o conceito de improbidade retratado por imoralidade administrativa qualificada, onde indissociável a presença de desonestidade. Por esta razão, é imprescindível a vontade deliberada de malferir a ordem jurídica, ou seja, o dolo. A culpa grave não bastaria (...). Como conseqüência, mostra-se incompatível com a Constituição a expressão ‘culposa’, inserta no art. 10, caput, Lei 8.429/92.[145]
Além disso, da extraordinária gravidade das sanções cominadas é possível inferir que o próprio télos em pauta na disciplina constitucional da improbidade não se coaduna com a tipificação de condutas culposas. O tratamento de especial rigidez empregado pelo constituinte à matéria revela que o seu autêntico intuito era, na esteira da melhor doutrina, utilizar o instituto da improbidade para combater veementemente a imoralidade administrativa, sobretudo na sua faceta exteriorizada pela corrupção.
A interpretação exclusivamente literal do art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa, desconsiderando, assim, as ponderações ora propostas, pode levar a consequências jurídicas excêntricas.
Imagine-se uma situação em que um Procurador da Fazenda, uma única vez, por negligência, deixe de propor tempestivamente uma ação de execução fiscal, o que acaba por resultar na prescrição da pretensão de um crédito tributário. Uma interpretação gramático-formalista pode, sem dúvida, enquadrá-lo no disposto no art. 10, caput, uma vez que a sua omissão culposa acabou por redundar em perda patrimonial ao erário. Assim, teria ele praticado improbidade administrativa? Estaria caracterizada grave lesão à moralidade? Seria razoável imputar a sanção de perda do cargo a este agente que dedicou toda a sua vida ao serviço público e que, por um lapso, uma única e singela vez, acarretou uma lesão pecuniária aos cofres do Estado? Evidentemente, não. Poder-se-ia argumentar que, em tais casos, o princípio da proporcionalidade se incumbiria de impedir a aplicação das sanções mais graves, tais como a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos. No entanto, não é esse o foco da crítica. Trata-se, na realidade, de constatar a absoluta impropriedade técnica do legislador ao cuidar da matéria, visto que é irrefutável que todo o desenvolvimento doutrinário e constitucional do instituto direciona-se em outro sentido, almejando fins distintos daqueles colimados pelo ius puniendi estatal na apenação de infrações culposas. Afinal, há instrumentos jurídicos próprios para a apuração e a apenação de ilícitos funcionais meramente culposos (e.g., processo administrativo disciplinar interna corporis, ação ordinária de indenização, ação popular, ação civil pública comum desprovida da aplicação subsidiária da Lei n. 8.429/92), sendo plenamente desaconselhável esse uso vulgar da improbidade administrativa para guerrear infrações comezinhas.[146]
Além disso, não se pode olvidar que a mera sujeição a um processo judicial para a apuração de suposta improbidade já avilta, por si só, a honra subjetiva de um homem público correto. Ademais, a imagem do agente restaria manchada ad perpetuam, em caso de eventual condenação judicial que lhe impute a alcunha de ímprobo, desonesto, acarretando evidente violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Este problema o princípio da proporcionalidade, infelizmente, não lograria solucionar, de forma adequada, no caso em tela.
Com o mesmo raciocínio, admita-se, hipoteticamente, que, durante a madrugada, ao passar por um local ermo, um servidor público ocupante do cargo de motorista, ao dirigir o carro oficial em serviço, amedrontado, avance um semáforo vermelho e ocasione o abalroamento com outro veículo, acarretando danos ao erário. Seria possível subsumir esse caso ao disposto no art. 10, X, in fine? Deveria esse motorista ser condenado por improbidade, sujeitando-se, abstratamente, a sofrer a suspensão de seus direitos políticos por até oito anos? À evidência, não foi esse o intuito do constituinte ao redigir o art. 37, § 4º da CR/88.
Esses casos possuem o condão de evidenciar a completa incompatibilidade entre as condutas culposas e a grave enfermidade ético-institucional ora em estudo. Além disso, tal como já se demonstrou, existem múltiplos mecanismos institucionais de reação contra os atos ilícitos perpetrados, de forma dolosa ou culposa, por agentes públicos, de modo que se deve evitar a vulgarização da ação de improbidade, sob pena de que, em um futuro próximo, venha ela a perder a sua própria funcionalidade, acabando por ter o seu status reduzido ao de mais uma forma comum de controle sancionatório no seio da atuação administrativa.
Desta feita, é forçoso aceitar que a modalidade culposa prevista no art. 10 não se compatibiliza com a natureza de ultima ratio que deve nortear a aplicação do ilícito de imoralidade qualificada. Outrossim, o referido preceptivo legal não se harmoniza com o desenho constitucional desse ilícito administrativo, sobretudo em razão da impossibilidade de verificarem-se, em sede de condutas culposas, quaisquer ranços de desonestidade.
Logo, faz-se mister concluir pela inconstitucionalidade do art. 10, caput, no trecho em que faz menção à possibilidade de imputação de improbidade administrativa a condutas culposas, haja vista não ter o legislador ordinário observados as balizas conceituais e constitucionais que norteiam a patologia objeto deste trabalho.[147]
3.4. Infração a dever funcional
Como quarto e derradeiro requisito necessário à elevação de uma determinada conduta ao status de gravíssimo ilícito ético-institucional representado pela improbidade administrativa, deve-se avaliar se o comportamento supostamente ímprobo acarreta a infração a dever funcional.
Por meio da aplicação do adágio latino tertium non datur, salta aos olhos que determinada situação fática, ou será taxada como lícita, ou, então, necessariamente será ilícita. Ou uma conduta está em conformidade com o sistema jurídico, ou não o está. Não há outra possibilidade. Lei do terceiro excluído. A propósito, dúvida não resta quanto à natureza definitivamente ilícita do ato de improbidade administrativa.
Nessa linha, somente se afigurará possível, sob um enfoque lógico, falar de conduta ímproba quando se verificar previamente a sua desconformidade com o ordenamento jurídico. Em síntese, a lesão intencional a dever jurídico é requisito essencial à caracterização da improbidade administrativa. Sobre o tema, Fábio Medina Osório tece palavras esclarecedoras:
Os atos de improbidade (...) têm íntima relação com a violação à legalidade. Pelo menos, é possível dizer que condutas legais, de um ângulo formal e material, em um âmbito estritamente jurídico, não podem ser consideradas desonestas nem intoleravelmente ineficientes ao efeito de configurarem suporte de improbidade, embora possam sê-lo desde um ponto de vista moral ou ético. A conduta legal pode ser imoral, ou reprovável noutros setores, mas não pode configurar improbidade, porque esta é, por definição, uma ilegalidade comportamental.[148]
Hodiernamente, com a superação definitiva das máximas perfilhadas pelos positivistas extremados, é consolidado o entendimento de que muitos deveres, não obstante jurídicos, não são impostos de forma clara e individualizada por meio de texto explícito de lei. Os deveres jurídicos também podem decorrer, sem qualquer obstáculo, e com a mesma força coercitiva, dos princípios estruturantes do sistema jurídico, vez que estes também possuem, tal como foi esclarecido pelo Pós-Positivismo, alta carga de normatividade.
Desta feita, é factível que um agente público desrespeite um dever funcional, à míngua de qualquer previsão legal expressa a impor-lhe, especificamente, a regra de conduta violada. Ora, se, por um lado, é comum que deveres funcionais constem expressamente dos estatutos dos agentes públicos,[149] por outro, deve-se reconhecer que é igualmente razoável o surgimento de outros tantos deveres a partir de cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados ou, ainda, de princípios expressos ou implícitos no ordenamento jurídico. Ambos os grupos abarcam normas dotadas de igual juridicidade e coercibilidade, sendo, deste modo, naturalmente suscetíveis de violação. Portanto, inexiste empecilho a que uma dada conduta funcional seja considerada ilegal, utilizando-se como parâmetro de aferição de sua legitimidade o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da boa-fé, o dever de sigilo profissional, o dever de honeste vivere, qualquer princípio informativo da Administração etc.[150]
Em razão da gravidade intrínseca às sanções cominadas, a aferição da presença dos requisitos à caracterização da improbidade há de desenvolver-se de forma especialmente rigorosa. Nesta senda, não se deve taxar de violadora a dever legal, ao menos com o fito de aplicar a disciplina da Lei n. 8.429/92, a conduta que houver se balizado por uma das interpretações juridicamente aceitáveis acerca do conteúdo normativo de determinado dever funcional.
Assim, caso a atuação do agente público tenha se pautado por uma interpretação que figurava dentro de parâmetros hermenêuticos razoáveis, inexistirá improbidade administrativa, ainda que o órgão jurisdicional corrobore entendimento diverso, porquanto “a violação de normas controvertidas, nas quais se discute abertamente a própria legalidade da atuação do agente público, não poderia, a priori, desembocar em um julgamento de grave desonestidade funcional”.[151] Portanto, havendo regra cuja aplicabilidade esteja permeada por razoáveis polêmicas institucionais, é forçoso que se reconheça a inexistência do suporte fático imprescindível à imputação da responsabilidade por improbidade administrativa.
A despeito dessa irrefutável incompatibilidade entre a improbidade e a violação de normas controversas, os Tribunais, inúmeras vezes, não se sensibilizam com essa constatação e, erroneamente, acabam aplicando as sanções da Lei n. 8.429/92 a essas situações polêmicas. Com esta falha, veja-se o seguinte excerto extraído da ementa do aresto proferido no REsp n. 488.842/SP, relatoria para o acórdão do Min. Castro Meira, 2ª Turma, j. 17/04.2008, DJU 05/12/2008:
A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contratado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente.
É cediço que a aplicação dos arts. 13 e 25, II da Lei n. 8.666/93, que dispõem sobre os requisitos à contratação direta com fulcro na inexigibilidade do procedimento licitatório, são normas de textura ampla e que, por isso, originam, diuturnamente, acirrados debates acerca do preenchimento ou não desses requisitos em determinados casos concretos. Então, por serem normas jurídicas que tranquilamente comportam mais de uma exegese juridicamente plausível, deve-se ter extrema cautela na realização de eventual diagnóstico de improbidade administrativa.
Portanto, ao contrário do que se pode inferir do julgado colacionado acima, é inaceitável o entendimento de que a declaração de ilegalidade em tais situações de contratação direta acarrete, automaticamente, a caracterização do ilícito de improbidade. Por óbvio, essas considerações são tecidas sem prejuízo de, a depender do caso, restar realmente configurada essa patologia institucional, mas, para tanto, será inarredável a demonstração da presença de todos os requisitos da improbidade, sobretudo a manifesta desonestidade do administrador público que perpetrou a contratação direta.
3.4.1. Lesão ao princípio da legalidade e improbidade administrativa
A simples comprovação da ilegalidade de um ato não é condição suficiente para, de per si, embasar a imputação de improbidade.[152] Na realidade, o vício de juridicidade é uma condição necessária à configuração de todas as modalidades dessa infração ético-institucional, de modo que tanto a improbidade por enriquecimento ilícito (art. 9º) quanto aquela por lesão ao erário (art. 10) também pressupõem, naturalmente, o defeito de legalidade (art. 11). Enfim, toda conduta ímproba enquadrada nas disposições do arts. 9º e 10 tem como premissa impostergável a concomitante subsunção também à modalidade de ilícito prevista no art. 11, ao menos no que tange à violação aos princípios da legalidade e da honestidade.
Nessa linha de intelecção, tem sido reiteradamente consagrado pela melhor doutrina[153] que o objetivo da Lei n. 8.429/92, à evidência, não é a apenação do agente público eventualmente desastrado, inábil, incompetente, atabalhoado, inexperto, incauto, negligente ou imprudente, mas, sim, a dura responsabilização daquele que, sob as vestes de agente público, é desonesto ou corrupto, lesando de morte os imperativos da ética pública.
Por escopo de revelar a verdadeira norma constante do art. 11, caput da Lei n. 8.429/92, deve-se repelir a utilização de métodos hermenêuticos puramente literais ou gramático-formais, sob pena de se alcançar supostas determinações normativas desprovidas de qualquer credibilidade no seio jurídico. Na realidade, a atividade interpretativa desenvolvida sobre o referido preceptivo legal deve balizar-se, em sede de verdadeira “interpretação conforme”, por métodos de cunho muito mais finalísticos do que estritamente léxico-gramaticais.
Caso a mera ilegalidade se confundisse com a improbidade administrativa, forçoso seria reconhecer que todo o julgamento que, em sede de mandado de segurança, concedesse a segurança pleiteada, deveria implicar, automaticamente, o envio de cópias dos autos ao Parquet com o fito de que este viesse a promover a pertinente ação de improbidade. É inaceitável essa conclusão. Em pensamento similar, Fábio Medina Osório afirma que, se a ilegalidade configurasse, ipso facto, improbidade administrativa, o agente público estaria em um paradoxo contraproducente à Administração Pública no que diz respeito ao dever de anular os seus próprios atos quando eivados de ilegalidade (Súmula n. 473 do STF):
Ora, se houvesse improbidade automática, decorrente dessa anulação, nenhum administrador minimamente cauteloso ousaria anular ou rever seus próprios atos, sob pena de enredar-se nas malhas da LGIA. A iniciativa de promover a anulação seria indício suficiente para ensejar a abertura de inquérito civil junto ao Ministério Público, ou a propositura de demanda punitiva, para averiguar pressupostos probatórios em juízo.[154]
Os Tribunais, por sua vez, aderem, tranquila e uniformemente, ao entendimento doutrinário de que, não obstante a redação do art. 11, caput da Lei n. 8.429/92, não se deve confundir a ilegalidade com a gravíssima patologia social objeto deste estudo.[155]
É evidente que as considerações ora tecidas acerca da inexistência da improbidade administrativa pela isolada lesão ao princípio da legalidade são aplicáveis, mutatis mutandis, a algumas das outras previsões normativas constantes do art. 11, estejam presentes em seu caput, estejam em seus incisos.[156]
Explica-se: não obstante a dicção expressa do art. 11, caput posicionar-se em sentido contrário, é juridicamente tolerável, por exemplo, a existência de algum grau de parcialidade na atuação administrativa, casos em que tais comportamentos acabarão por não alcançar o status de ímprobos. Ou seja, nem toda conduta funcional eivada de parcialidade deverá ser tida como improbidade administrativa. Leciona Fábio Medina Osório que, por ser a realidade administrativa dotada de inúmeros matizes, é possível sustentar a existência de graus toleráveis de parcialidade na atuação de agentes públicos, haja vista ser imprescindível que se suporte, quando menos, as inclinações políticas e pessoais desses agentes. Isto se verifica diuturnamente na Administração Pública brasileira, sem que se deva encarar tais práticas como patologias ético-funcionais. Na realidade, trata-se de “comportamentos institucionalmente legitimados e consolidados, a ponto de merecerem respaldo jurídico, ou seja, um olhar funcionalizado”.[157]
Ilustre-se o problema com a seguinte situação hipotética: verificar-se-ia grave lesão ao princípio da imparcialidade quando agentes públicos impedissem que adversários políticos publicassem, nos veículos estatais de notícias, informações sobre benefícios que eventualmente tenham trazido à região? Em outras palavras, um Prefeito poderia impedir que um político de partido adversário veiculasse, no site oficial do Município, informações de utilidade pública e sem conotação de promoção pessoal sobre as benesses que a atuação do político da oposição tem levado aos munícipes? Não há dúvida de que esta obstrução de acesso aos meios oficiais de divulgação representa desrespeito aos princípios da impessoalidade e da imparcialidade, que devem nortear o funcionamento da máquina administrativa. Todavia, no caso, não se pode cogitar de improbidade, uma vez que inexiste grave violação à moralidade administrativa e nem mesmo relevante descumprimento de deveres funcionais, uma vez que essas decisões governamentais são institucionalmente legítimas e estão abarcadas pelo campo de livre atuação política de que goza o administrador público. Aliás, este último foi democraticamente eleito, por sufrágio universal, justamente para tomar essas decisões de cunho eminentemente político. Tem-se, pois, na hipótese suscitada, violação à imparcialidade sem que se caracterize improbidade administrativa.
O mesmo raciocínio finalístico deve ser empreendido na análise do art. 11, II, uma vez que não é possível alcunhar de “ímproba” toda e qualquer procrastinação indevida na prática de atos de ofício. A interpretação literal do citado inciso imporia, por exemplo, a conclusão de que estariam a cometer ilícito de improbidade todos os magistrados que, de forma negligente, desrespeitassem injustificadamente eventual prazo processual impróprio, ainda que inexistisse qualquer ranço de desonestidade em sua omissão. Definitivamente, não é esse o objetivo da Lei de Improbidade. Ora, partindo-se de uma visão teleológica e sistêmica, comprometida com o desenho constitucional do ilícito de improbidade, é notório que o mencionado diploma legislativo não visa a disciplinar a punição de meros descumprimentos indevidos de prazos, mas, sim, de atrasos ou omissões especialmente censuráveis e danosos ao funcionamento e, sobretudo, à moralidade da Administração Pública.[158]
Por outro lado, no que diz respeito aos deveres de honestidade e lealdade às instituições, também previstos no art. 11, caput, é importante salientar que eles assumem, na seara da improbidade, papel muito similar ao exercido pelo próprio princípio da legalidade. Tal qual se dá com o vício de legalidade, a desonestidade e a deslealdade também devem ser encaradas como requisitos impostergáveis à configuração de toda e qualquer modalidade de improbidade administrativa (art. 9º a 11 da Lei n. 8.429/92), porquanto estão intrinsecamente relacionados com o próprio conteúdo normativo do dever de moralidade administrativa.
Em suma, a redação deficiente do art. 11 deixa claro que os responsáveis por sua elaboração não se atentaram para o fato de que a ocorrência de todas as modalidades de improbidade administrativa pressupõe a prévia constatação da violação aos deveres de legalidade, honestidade e lealdade às instituições, não sendo estes, portanto, circunstâncias atreladas estritamente à configuração da modalidade prevista no malfadado art. 11.