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Requisição de servidores do Poder Executivo pela Justiça Eleitoral.

Análise da compatibilidade da Lei nº 6.999/1982 em face da Constituição Federal de 1988

13/12/2012 às 08:43
Leia nesta página:

A transferência de servidor de qualquer Poder para a Justiça Eleitoral, sem necessidade de autorização respectiva, ofende a tripartição dos Poderes, sendo portanto inconstitucional.

Muito comum, principalmente em períodos eleitorais, é a requisição, pela Justiça Eleitoral, de servidores do Poder Executivo a fim de prestar serviços junto a Tribunais Eleitorais. Referida requisição, frise-se, não tem por escopo apenas o trabalho no período de eleição, mas também a efetiva mudança de lotação do servidor.

Nessa linha, ficam os Gestores de mãos atadas sem ter a certeza acerca da compulsoriedade de atendimento do pedido, vez se tratar de uma requisição, a qual, por natureza, não necessita de aprovação do órgão requisitado. Aliado a isso, há uma corriqueira falta de servidores no Executivo a prejudicar suas atividades, que ficam mais ainda defasadas com os constantes pedidos de requisição. Esclarecido o embate, passemos às considerações sobre a questão.

Inicialmente, convém ressaltar que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são autônomos, consoante prevê o art. 2º da Constituição Federal ao asseverar que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Há, todavia, no exercício de suas funções, um controle recíproco exercido uns pelos outros. Desta feita, pode-se dizer que os poderes são independentes, porém, harmônicos entre si, ensinando o Professor José Afonso da Silva[1], verbis:

A independência dos poderes significa: a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não depende da confiança nem da vontade dos outros; b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultarem os outros nem necessitam de sua autorização; c)  que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as condições constitucionais e legais.

O Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Kildare Gonçalves Carvalho, também já se pronunciou sobre o assunto. Vejamos:

Menciona-se, no entanto, a existência, no âmbito da separação de poderes, do princípio da tipicidade de competências e do princípio da indisponibilidade de competências. O primeiro significa que as competências dos órgãos constitucionais são apenas aquelas expressamente enumeradas na Constituição, e o outro traduz a idéia de que as competências constitucionalmente fixadas não podem ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu.


Os poderes do Estado não comportam hierarquia; é o que se depreende de Montesquieu.

Portanto, elucida-se dos transcritos alhures, que o Poder Judiciário não tem qualquer grau hierárquico superior ao Poder Executivo, notadamente à Administração Pública, seja ela Direta ou Indireta. Entretanto, em que pese mencionada autonomia, todos devem obediência à lei. Assim é que a Lei nº 6.999/1982, a qual dispõe sobre a requisição de servidores públicos pela Justiça Eleitoral, aduz:

Art. 1º - O afastamento de servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios e das autarquias, para prestar serviços à Justiça Eleitoral, dar-se-á na forma estabelecias por esta Lei.

Art. 2º - As requisições para os Cartórios Eleitorais deverão recair em servidor lotado na área de jurisdição do respectivo Juízo Eleitoral, salvo em casos especiais, a critério do Tribunal Superior Eleitoral.

§ 1º - As requisições serão feitas pelo prazo de 1 (um) ano, prorrogável, e não excederão a 1 (um) servidor por 10.000 (dez mil) ou fração superior a 5.000 (cinco mil) eleitores inscritos na Zona Eleitoral.

§ 2º - Independentemente da proporção prevista no, parágrafo anterior, admitir-se-á a requisição de 1 (um) servidor.

Como normatizado pelo Decreto nº 4.050/2001, a requisição é ato irrecusável, que implica a transferência do exercício do servidor ou empregado, sem alteração da lotação no órgão de origem e sem prejuízo da remuneração ou salário permanentes, ao passo que a cessão demanda ato autorizativo para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, ou ainda para atender situações previstas em leis específicas, em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sem alteração da lotação no órgão de origem.

Em que pese o decreto ser ato do poder executivo, a doutrina bem leciona a distinção precípua entre os dois institutos, corroborando a norma supracitada para afirmar que a requisição é ato vinculado, não dependente de autorização do órgão de origem do requisitado; noutra via, a cessão depende de uma liberação.

Acontece que a já citada Lei nº 6.999/1982 fala em requisição, instituto esse que não permitiria um juízo valorativo de liberação por parte da Administração Pública. Ao que tudo indica, há robustos indícios de que a supracitada norma não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, em evidente afronta à tripartição dos Poderes estabelecida em seu art. 2º. Por ser a Lei nº 6.999/1982 anterior à Constituição Federal de 1988, não se fala em inconstitucionalidade da norma, mas sim em recepção ou não dela pela nova Carta.

Corroborando a intelecção firmada, temos que o Decreto nº 4.050/2001 expressamente preconiza a imprescindibilidade de autorização do Poder Executivo, por meio do Órgão Central do Sistema de Pessoal Civil - SIPEC, nos seguintes termos:

Art. 2º  O servidor da Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações poderá ser cedido a outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluindo as empresas públicas e sociedades de economia mista, para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e, ainda, para atender a situações previstas em leis específicas.

Parágrafo único.  Ressalvadas as cessões no âmbito do Poder Executivo e os casos previstos em leis específicas, a cessão será concedida pelo prazo de até um ano, podendo ser prorrogado no interesse dos órgãos ou das entidades cedentes e cessionários.

Art. 3º  Ressalvada a hipótese contida no § 4º do art. 93 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, a cessão obedecerá aos seguintes procedimentos:

I - quando ocorrer no âmbito do Poder Executivo, será autorizada pelo Ministro de Estado ou autoridade competente de órgão integrante da Presidência da República a que pertencer o servidor; e

II - quando ocorrer para órgão ou entidade dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou de outro Poder da União, será autorizada pelo Órgão Central do Sistema de Pessoal Civil - SIPEC, ficando condicionada à anuência do Ministro de Estado ou autoridade competente de órgão integrante da Presidência da República ao qual o servidor estiver lotado.

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Explicitando o que se disse em linhas precedentes, existe grande celeuma quando se analisa a incompatibilidade de uma norma pretérita e a Constituição que lhe é superveniente. Jorge Miranda aduz que “(...) a inconstitucionalidade não é primitiva ou subsequente, originária ou derivada, inicial ou ulterior. A sua abstrata realidade jurídico-formal não depende do tempo de produção dos preceitos”[2].

Acontece que, já na vigência da atual Carta Magna, o Colendo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 02, o Exmo. Ministro Relator Paulo Brossard, por ocasião do julgamento, argumentou que o “legislador não deve obediência à Constituição Antiga, já revogada, pois ela não existe mais. Existiu, deixou de existir. Muito menos a Constituição futura, inexistente, por conseguinte, por não existir ainda. De resto, só por adivinhação poderia obedecê-la, numa que futura e, por conseguinte, ainda inexistente”.

Dessa feita, estamos inseridos num plano de existência de normas[3]. Quando se fala em não recepção, quer se dizer que as normas anteriores à novel Constituição são com esta incompatíveis; desconformes, desconsidera-se a sua existência como se não normas fossem.

No estudo em tela, temos que a Lei nº 6.999/1982, ao prever hipótese de transferência de servidor, de qualquer Poder que seja para a Justiça Eleitoral, sem necessidade de autorização respectiva, ofende diametralmente a tripartição dos Poderes, não podendo ser admitida como norma em conformidade com a Constituição Federal de 1988.

Entendimento contrário pode levar a um intenso embate entre Poder Executivo e Poder Judiciário, tendo o primeiro uma indevida ingerência em seu quadro de servidores que venha a prejudicar o exercício de suas atividades típicas. Deverá prevalecer, pois, o bom senso e a norma constitucional posta para que qualquer transferência entre servidores de Poderes da União distintos se dê por cessão, com a devida autorização do Cedente, e não por requisição.


Notas

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 33ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 110.

[2] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. rev. Coimbra: Coimbra Ed., 1988, t. 2, p. 250.

[3] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 8ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 199. 

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Sobre o autor
René da Fonseca e Silva Neto

Procurador Federal. Coordenador Nacional de Matéria Administrativa da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes - ICMBio. Ex-Coordenador Nacional do Consultivo da PFE/ICMBio. Bacharel em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Ambiental. Coautor do livro Manual do Parecer Jurídico, teoria e prática, da Editora JusPodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, René Fonseca. Requisição de servidores do Poder Executivo pela Justiça Eleitoral.: Análise da compatibilidade da Lei nº 6.999/1982 em face da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3452, 13 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23234. Acesso em: 21 nov. 2024.

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