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Contrato de parceria sem ônus para a Administração: uma releitura do princípio da legalidade

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18/12/2012 às 08:39
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Discute-se a possibilidade de celebração de contrato de parceria sem ônus para a Administração, inexistindo autorização normativa expressa.

Resumo: O presente artigo discute a possibilidade de celebração de contrato de parceria sem ônus para a Administração, inexistindo autorização normativa expressa. A proposta se insere no modelo teórico da gestão pública gerencial, como alternativa à escola burocrática do Estado Liberal, em face das significativas mudanças da estrutura, funções, e ênfase na eficiência do Estado Social. No Direito Administrativo moderno, ao princípio da legalidade se acresce o conceito de juridicidade, tendo como referência todo o ordenamento jurídico e em particular, a constituição. A extensão do âmbito de discricionariedade do gestor público, na medida em que permite a inovação e o empreendedorismo, amplia proporcionalmente o grau de responsabilização, a sindicância do mérito administrativo, e o exame da legalidade e legitimidade dos atos administrativos.

Palavras-chave: Contrato de parceria sem ônus para a Administração. Gestão pública gerencial. Releitura do princípio da legalidade. Juridicidade e legitimidade dos atos administrativos.


Introdução

Sob o plano da validade os atos administrativos se respaldam na lei, enquanto autorização normativa para sua realização. Este é o substrato jurídico do princípio que a Administração somente pode fazer o que a lei autoriza. Não há dúvidas de que o princípio da legalidade é uma das garantias do Estado Democrático de Direito.

No modelo da civil law, associado à tradição ibérica, no qual deita raízes o ordenamento jurídico pátrio, o atendimento ao princípio da legalidade é uma das explicações da vertiginosa produção legislativa da Administração Pública.

Entretanto, por maior que seja o labor legiferante dos entes políticos e órgãos administrativos, não é factível prever todas as situações que possibilitam, diuturnamente, a participação estatal.

Ocasionalmente, o agente público se depara com propostas de atuação, para as quais inexiste disposição legal específica. Conformando as necessidades administrativas ao arcabouço normativo, são criados novos modelos jurídicos, como a parceria sem ônus para a Administração.

Tais práticas de inovação são melhor colmatadas ao modelo de gestão gerencial, calcado no conceito de governança, e institutos como a eficiência e discricionariedade, em superação ao paradigma burocrático, sendo certo que a fundamentação teórica desta diretriz perpassa a releitura do princípio da legalidade.


1 O princípio da legalidade e a escola burocrática

O estudo do Direito Administrativo assenta-se na premissa básica da observância ao princípio da legalidade, com inversão da regra ontológica da liberdade de atuação da vontade incidente nas relações privadas: “Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize.”[1]

Esta diretriz adstringe-se à limitação do poder estatal nos regimes de tripartição das funções - administrativa, legislativa e jurisdicional, em contraposição aos regimes absolutistas em que o Estado se confundia com a vontade do soberano.

A lei dispõe previamente acerca do âmbito de ação do Estado; representa garantia contra privilégios e arbítrios que possam ser encetados por agentes públicos, que estão, assim, limitados na sua atuação, aos parâmetros de condutas normativamente previstos. Como observado por  João Batista Gomes Moreira, tais disposições formam o cerne da Burocracia, como modelo de administração associado à gestão pública:

O objetivo de preservar a impessoalidade do administrador e de prevenir o desvio de finalidade serviu de base à instituição da administração racional burocrática, a partir da segunda metade do século XIX, portanto, na vigência do Estado liberal e de uma sociedade autoritária e classista. [2]

Vulgarmente o termo burocracia significa atraso, lentidão e ineficiência na atuação da Administração Pública, o que é em parte, conseqüência do formalismo, uma de suas características típicas.  

 Em sentido técnico, a Escola Burocrática preconiza a padronização de procedimentos com base em modelos pré-estabelecidos, tendo por objetivo a racionalidade e agilidade das ações da Administração, de forma que “A legitimação desse modelo social baseia-se na justiça da lei e na promulgação e regulamentação de normas legais previamente definidas.” [3]

Na esfera pública brasileira, sob o argumento de atender ao princípio da legalidade, a cultura burocrática respondeu pela inserção, no ordenamento jurídico, de infindáveis normas, por meio dos órgãos de representação política, órgãos subalternos ao Poder Executivo, e entes autônomos no exercício de competência normativa delegada.

São leis, decretos, regulamentos, instruções normativas, ordens de serviço e outras normas infra-legais destinados a vincular a atuação dos agentes públicos, conforme acentuado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

A decisão administrativa que mais se assenta à visão legalista estrita do Estado de Direito seria, é claro e par excellence, a vinculada – obediente a uma técnica em que a lei não concede opção alguma ao administrador público, uma vez que, basicamente, se concebe o ato de administrar como uma aplicação da lei ex officio, não devendo remanescer, salvo excepcionalmente, espaços de escolhas voluntaristas para o agente da administração. [4]

Mas, pela própria dinâmica das relações sociais, é impossível que as normas se antecipem aos fatos, conferindo disciplina prévia a todas as necessidades dos sujeitos de direito, dentre os quais o próprio Estado se coloca, não como criador, mas como destinatário dos enunciados normativos.

A doutrina tradicional reputa por inválidas as relações de direito público se o seu objeto não tem previsão legal expressa. Na prática do modelo burocrático na Administração Pública provocou uma série de disfunções como o excesso de formalismo, resistências a mudanças, despersonalização do relacionamento, superposição da estrutura governamental em detrimento ao atendimento aos cidadãos etc. [5]

Embora a lei seja a base do direito público e em particular do direito administrativo, como proceder se o ordenamento jurídico não proporciona, ao caso concreto, uma resposta normativa que autorize a prática de um ato consentâneo ao interesse público? É possível estabelecer um parâmetro geral de balizamento da ação administrativa ante a inexistência de regra legal específica?

Sem embargo de preservar as garantias inerentes ao princípio da legalidade, a resposta a estas questões passa pela constatação de que o arcabouço teórico do princípio da legalidade na Escola Burocrática não mais atende satisfatoriamente as necessidades do Estado Social e da sociedade contemporânea, como a seguir exposto.


2 Do Estado liberal ao Estado Social. Delineamentos da Administração Gerencial

A escola burocrática assenta-se na base de estruturação do Estado liberal, no qual o poder público detinha limitadas funções, como a administração tributária, da justiça e a preservação da ordem pública. No início do século XX nasce o Estado Social com a incorporação dos direitos sociais aos textos constitucionais.

O pós-guerra alça o Poder Público à função de prestador de direitos fundamentais sociais como saúde, previdência e educação. A Administração Pública diversifica-se e responde pela concretização da igualdade e justiça social.[6] O serviço público ampliou-se consideravelmente, passando de algumas atividades exclusivas a ações das mais variadas matizes:

No Estado social-democrático ou do bem-estar social, os professores da educação fundamental, professores universitários, médicos e enfermeiros dos hospitais, músicos de orquestras sinfônicas, curadores de museus, assistentes sociais de organizações de assistência social, engenheiros e gerentes do transporte público e de serviços públicos, funcionários de portaria, funcionários de escritório e os gerentes de todas essas organizações, e nas organizações propriamente ditas do Estado, todos eles eram agora considerados funcionários públicos. [7]

Com mais serviços a prestar, o Estado contemporâneo enfrenta uma crise, notória, “sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores”.[8] Neste contexto, o modelo de administração burocrático terminou por aumentar a estrutura governamental, tornando-a um “fim em si mesma, em vez de instrumento de realização do interesse verdadeiramente público.”[9]

As reformas do Estado adotadas em várias nações nos últimos cinqüenta anos têm como uma de suas idéias principais a melhoria da qualidade dos serviços públicos, adotando como paradigma a eficiência, “um imperativo não só de desenvolvimento como de sobrevivência, em um mundo em que as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: seja pelas instituições públicas, seja pelas instituições privadas.” [10]

Para a Administração Pública a eficiência é um dever[11], que consiste em aplicar racionalmente os recursos disponíveis. João Batista Gomes Moreira aduz que “Atualmente a preocupação situa-se, para além da eficiência stricto sensu, na questão da equidade ou justiça na distribuição dos serviços ou resultados.” [12]

Em busca de maior eficiência, parte das atribuições sob a tutela do Estado é repassada à iniciativa privada por meio de delegação de competências, incumbindo ao Poder Público a regulação e a fiscalização dos serviços. Em outros setores, o Estado permanece atuando, mas sem exclusividade, permitindo a participação privada em regime de concorrência. No Brasil, são exemplos recentes a privatização das telecomunicações e a quebra do monopólio na prospecção de petróleo.

Contudo, mais do repassar serviços ao setor privado, o Estado passa a incorporar técnicas da iniciativa privada em seu próprio tecido organizacional, mesmo porque, há de se reconhecer que o espaço público não diz respeito unicamente ao Estado, é do interesse de toda a sociedade, de modo que a função administrativa passa a  incorpor atributos “que possibilitem reunir racionalmente as vantagens críticas das disciplinas privadas e da pública.”[13],  o que acentua duas características na gestão pública contemporânea: flexibilidade e discricionariedade.

A flexibilidade denota a capacidade do Estado de adaptar-se às transformações sócio-político-econômicas do mundo globalizado, o que exige o aprimoramento do planejamento, inclusive o estratégico,[14] para atender tempestivamente as demandas atuais e futuras sob seu encargo, o que, em conseqüência, leva ao alargamento da discricionariedade do âmbito decisório do gestor público.

Discricionariedade que não se confunde com arbítrio. Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua a discricionariedade como dever e não propriamente um poder, que implicará sempre na melhor escolha, tendo como baliza a finalidade da norma.[15] Em sentido análogo, Juarez de Freitas correlaciona a discricionariedade à boa administração pública. [16]

A eficiência é conceito chave para boa administração, característica essencial para a governança.[17] O conceito de governança representa um conjunto de condições que propiciam o funcionamento eficiente de um sistema político-administrativo, não apenas sob o aspecto econômico-financeiro, mas pelos resultados sociais da atuação do Estado, pela legitimidade do exercício dos poderes públicos.[18]

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A busca pela governança é uma das “megatendências” atuais, um desafio para as lideranças públicas, pois melhorar a governança é um processo complexo e difícil.[19]  Entretanto, mais do que alterações legislativas, a governança pressupõe reformas estruturais na conformação do Estado e sua relação com a sociedade.

A boa governança se reflete na melhoria dos indicadores sociais, acesso eqüitativo dos cidadãos à educação, emprego e demais direitos sociais fundamentais, no fortalecimento das instituições democráticas, em particular do Poder Judiciário, “com ênfase crescente no comportamento ético do governo, na transparência da administração pública e na accountability”.[20]

Maior flexibilidade, discricionariedade, governança, compõem o quadro, fundado na teoria sistêmica, de construção da administração pública gerencial como alternativa à escola burocrática,[21] deslocando o foco das leis e regulamentos para a finalidade e resultados da gestão administrativa, “orientada predominantemente pelos valores da eficiência e da qualidade na prestação de serviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações.”[22]

Ressalve-se que o objetivo de eficiência e qualidade integra qualquer modelo teórico de gestão, inclusive o burocrático do Estado liberal. O que muda no Estado contemporâneo é que a eficiência na prestação dos serviços públicos é um imperativo para a legitimação do próprio Estado.

No modelo de gestão gerencial, o fim estatal de promover o bem estar comum, apóia-se na adoção de técnicas voltadas para a eficiência por resultados, controle de qualidade, satisfação do cliente (cidadão), parcerias com outras instituições públicas e privadas, incremento de receitas públicas etc.

No dizer de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “São princípios elementares dessa filtragem autopoiética aqueles que mais eloqüentemente exprimem as novas exigências cidadãs, destacadamente, os da eficiência, da transparência (ou, melhor dito, da visibilidade) e da participação.” [23]

O gestor tradicional aguarda a liberação dos recursos para realização das ações sob seu encargo. Muito comum é a alegação de que o serviço público não será prestado porque inexistem recursos ou o arcabouço normativo não permite uma determinada ação.

Na administração gerencial buscar-se-á alternativas, novas práticas. Fundação pública dispõe de aparelho de pesquisa de última geração, que permanece parte do tempo ocioso. Por que não disponibilizar, por meio de permissão de uso, sua utilização, a outro ente público, mediante pagamento de taxa de manutenção, ou mesmo à instituição privada mediante contrapartida financeira, incluindo-se em ambos os casos parcela referente ao seguro integral do bem?

É verdade que, à exceção das empresas públicas e sociedades de economia mista, a gestão pública não se orienta pelo critério do proveito econômico, ao contrário, tal aspecto, sequer é considerado, o que não quer dizer que seja indevida a obtenção de receitas pelos entes públicos em geral, lembrando que o acréscimo de receita poderá, a princípio, ser revertido para a própria instituição.

O exemplo leva à seguinte reflexão: inexistindo norma legal expressa autorizando a formalização de tais avenças, esta circunstância conduz inexoravelmente à invalidade dos atos administrativos? A Administração Gerencial postula a abertura para o empreendedorismo e a inovação.[24]

Na interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, sobrepõe-se o interesse público à omissão legislativa específica, com apoio em princípios, cláusulas gerais, critérios de ponderação, flexibilizando a atuação do gestor público, em prol de maior eficiência e eficácia das ações governamentais. Mas, para a afirmação deste novo paradigma é necessário promover uma releitura do princípio da legalidade.


3. A releitura do princípio da legalidade e alguns aspectos críticos acerca da proposta de celebração de parcerias sem ônus para a Administração. A análise de um caso concreto

A lei é a baliza da atuação do agente público. O princípio da legalidade permanece como o eixo central do direito administrativo, plenamente aplicável. Não obstante, no cenário de complexidade do Estado moderno, em face de suas múltiplas atribuições, a lei em sentido formal é insuficiente para a disciplina das relações intersubjetivas. Novas formas de juridicidade conferem outros fundamentos de validade aos atos jurídicos.

Neste diapasão, Gustavo Binemboym destaca que a crise da lei é um fenômeno universal, contribuindo para “dessacralizar o mito rousseauniano da lei como expressão da vontade geral, fundamento único do poder legítimo e veículo principal de expressão das normas disciplinadoras das atividades do Poder Público e dos particulares.”[25]

A erosão do filtro da lei em sentido formal vem sendo denominada deslegalização.[26] No direito público, delegações de competência atribuem poder normativo a entes e órgãos governamentais, que expedem normas infra-legais de caráter geral, a exemplo das Resoluções do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, que disciplinam temas como o licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras.

A Constituição Federal de 1988 determina que as licitações públicas se submetam a regramento próprio, tendo sido expedida a Lei n.º 8.666/93, norma geral nacional sobre o tema.

No âmbito da União, suas Autarquias e Fundações, tratando-se da contratação de serviços de natureza continuada, como limpeza e vigilância, a Instrução Normativa n.º 01/08, da Secretaria de Logística do Ministério do Planejamento prevê a criação de conta vinculada ao contrato para depósito da provisão de parcelas remuneratórias trabalhistas como férias e gratificação natalina. Observe-se que a conta, em nome da licitante contratada, só poderá ser movimentada mediante autorização da administração contratante.

São apenas dois exemplos de normas infra-legais criando direitos e obrigações. Como assentado por Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “Em verdade, a deslegalização apenas demonstra que a lei não possui condições de prever todas as situações que podem ocorrer na vida em sociedade, sendo necessária a abertura para a atuação pontual e célere da Administração.” [27]

Embora a questão suscite controversos questionamentos, é fato que a Administração Pública, há muito, deixou de atuar jungida apenas à lei em sentido estrito, restando superada a concepção clássica do princípio da legalidade:

En la actualidade, ya no vale como antes la distinción entre la posición de los particulares y la de la Administración frente a la ley. Hoy sería problemático proponer de nuevo con carácter general la doble regla que constituía el sentido del princípio de legalidad: libertad del particular em línea de princípio, poder limitado del Estado en línea de princípio. Esta regla está ya erosionada en ambas direcciones, en relación con particulares y con la Administración. [28]

Cabível a observação de que a discussão em torno da legalidade do ato não prescinde da presença de seus elementos constitutivos, sempre adstritos ao interesse público: competência, objeto, finalidade, forma e motivação, sendo o último de especial relevo.

Sob tal perspectiva, o ato administrativo será válido se fundamentado não só na lei, mas no ordenamento jurídico como um todo, aplicando-se critérios mais elásticos de interpretação e integração, com base na dimensão principiológica pós-positivista e na constitucionalização do direito, inclusive do direito administrativo.

O Estado permanece submetido à lei, entretanto a lei é um dos elos do ordenamento. Mais do que jungido à lei, o Estado submete-se à ordem jurídica.[29] “A visão do ordenamento jurídico em sua totalidade (juridicidade) funcionará como instrumento habilitador e limitador da atividade administrativa, além de servir como parâmetro de validade dessa atuação.” [30]

No ordenamento, a constituição ocupa o ápice do sistema. Não somente seus enunciados normativos, mas a ordem de valores e princípios que pontua, espraiando efeitos para a aplicação das normas de hierarquia inferior. O Direito Administrativo brasileiro tem minuciosa disciplina específica no texto da própria Constituição Federal de 1988, de forma que o ato administrativo antes de voltar-se para a lei fundamenta-se na constituição, “o cerne da vinculação administrativa à juridicidade”. [31]

Em especial o artigo 37 da constituição pátria discrimina os princípios da Administração Pública, estando em idêntico patamar a legalidade, economicidade, moralidade, eficiência, publicidade e impessoalidade. Na arguta constatação de Juarez de Freitas, “Trata-se de falha grave, em gestão pública, querer transmudar o agente em res irracional da legalidade, fazendo-o, por apreço, à passividade, negligenciar comandos principiológicos indescartáveis.” [32]

Muito além da estrita obediência à lei em sentido formal, “O que deve ser pensado é a legalidade como princípio da constitucionalidade, princípio da juridicidade, de agir conforme a Constituição, para produzir resultados desejados pelo ordenamento jurídico.” [33]

Luis Roberto Barroso dissertando acerca do direito pós–moderno adverte: “As fórmulas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas. O paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.”[34]

Em face do caso concreto, o ato administrativo que realiza o interesse público, reveste-se de proporcionalidade e razoabilidade, e é a melhor escolha no âmbito da discricionariedade, não somente poderá, deverá ser praticado pelo gestor no exercício de suas competências regulares, como pontuado por José Roberto Pimenta Oliveira:

A exigência de uma conduta administrativa adequada, exigível e proporcional às finalidades públicas perseguidas com sua realização, inerente à aplicação do princípio da razoabilidade, fornece também o quadro normativo apto a revelar o grau de eficiência e de eficácia exigíveis dos administradores públicos. [35]

No exercício de atividade consultiva em Procuradoria pública foi proposto o seguinte questionamento: é possível firmar ajuste com instituição privada pelo qual ela doará mensalmente insumos ao ente público, e em contrapartida este cederá espaço interno, para que a empresa faça divulgação da ação? Apesar de o ajuste não ter previsão expressa, opinou-se pela possibilidade de sua realização, condicionada à  adoção de algumas providências e recomendações.[36]

Registre-se de antemão que a citada divulgação ocorreria no âmbito interno da repartição, por meio da afixação de cartazes, banners. Pelos termos da consulta não se tinha em vista um contrato administrativo típico, no qual há a contrapartida financeira comutativa entre as partes, ou um convênio, no qual os convenentes se associam sem fins lucrativos para a consecução de objetivos comuns relacionados à suas competências institucionais. [37]

A proposta foi denominada contrato de parceria sem ônus para a Administração.  A ausência de dispositivo normativo específico sobre a matéria não impediria o ajuste, desde que o contrato se amoldasse às linhas mestras do arcabouço normativo, em especial a Constituição Federal de 1988 e a Lei n.º 8.666/93. O ente público usufruiria de benefício sem dispor de nenhuma contrapartida direta. Contudo, alguns aspectos mereceram especial atenção.

O fato de determinada empresa se propor a firmar a parceria com o ente público não excluiria, de per si, a possibilidade de outras instituições terem interesse semelhante. Ou seja, da intenção da proponente não se poderia passar à formalização do ajuste, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia.  

Em especial porque, ainda que inexistente o interesse econômico direto pelo parceiro privado, é factível enquadrar a proposta como uma ação de responsabilidade social, o que indiretamente, pode resultar em proveito econômico.

A manutenção de uma praça, programas de lazer para os empregados, o reflorestamento de área degradada, são exemplos de ações nas quais a empresa age por responsabilidade social, e não pelo cumprimento de um dever decorrente de uma norma de caráter cogente.

Não obstante, a simples menção a tais práticas pode agregar valor à empresa, à sua marca, despertando empatia nos consumidores, acréscimo nas vendas e conseqüentemente, lucro. A responsabilidade social, sob esta ótica, é também uma estratégia de publicidade. Dessa maneira, se a ação social será objeto de divulgação, tem potencial conteúdo econômico, distinguindo-se assim da doação sem encargo com divulgação institucional pelo próprio ente público.

Assim, a Administração Pública deveria promover um certame, mediante chamamento público, para que quaisquer interessados pudessem apresentar idênticas propostas de parceria sem ônus para o ente público. O edital estabeleceria as condições de elegibilidade das propostas, critérios de julgamento, prazo do ajuste, parâmetros de divulgação etc.

Na ausência de dispositivo normativo específico quanto à forma, foi sugerido a publicação do extrato do certame no diário oficial e em jornal de grande circulação, com prazo de trinta dias para apresentação de propostas, adotando-se a modalidade concorrência – artigo 21 da Lei n.º 8.666/93, por analogia.

Novas figuras contratuais na Administração Pública não são estranhas à doutrina, ante a constatação de que os Contratos Administrativos “cada vez mais vão saindo do eixo comum da Lei dos Contratos Administrativos e ganham uma vida nova, uma formatação diferenciada”.[38]

No caso sob análise, a observância aos princípios constitucionais da igualdade, publicidade, regras licitatórias da melhor proposta, critérios de julgamento,  além da adoção de um modelo-tipo por analogia, dariam suporte de validade à parceria pretendida, consentânea ao interesse público:

Muitas vezes, o administrador vai agir, até mesmo, diante da omissão do legislador, quando a atividade administrativa é reclamada pela sociedade ao Estado e o legislador nem sempre tem o tempo, a oportunidade, o conhecimento ou o manejo político necessários para lidar com a situação. Nesse passo, em sendo indispensável a ação para a concretização de valores e princípios socialmente reconhecidos, aí se fará presente a legitimidade (sempre sindicável) da ação administrativa. É nesse contexto que vão sendo modificados alguns alicerces do Direito Administrativo. [39]

De pronto, serão formuladas críticas de que a maior discricionariedade poderá resvalar em arbítrio e condutas indevidas pelos agentes públicos. Em primeiro lugar, registre-se que a flexibilização do paradigma da legalidade é medida excepcional, praeter legem e não contra legem, precedida de adequada motivação, “ao oposto da ancoragem ilusória no formalismo abstrato ou na liberdade irrestrita do decisionismo irracional”. [40]

Ademais, prescrições de natureza legal nunca impediram desvios de conduta dos agentes públicos. Ao contrário, em ilícitos praticados em desfavor do erário é comum observar que os atos administrativos revestem-se, na sua apresentação, de todos os requisitos formais exigíveis.

O infrator se vale de um modelo-tipo, previsto em lei, para alcançar um fim ilícito, com aparência de legalidade. A invalidação do ato terá guarida no ordenamento, mas não com base na conformidade ou não conformidade do ato às regras de direito, mas por desvio de finalidade. [41]

A ampliação da discricionariedade no Direito Administrativo faz com que a escolha pública esteja sobre processo de evolução, submetida ao crivo dos órgãos de controle e da própria sociedade. [42]

Com a extensão do âmbito de responsabilização,[43] um dos importantes instrumentos de fiscalização da Administração Pública é o controle prévio de legalidade exercido pelos advogados públicos.[44]

Incumbirá ainda ao Judiciário, quando provocado, aferir a legalidade e, cada vez mais, a legitimidade dos atos administrativos.[45] Subsiste o gestor, e não o juiz, como responsável pela análise do mérito administrativo.  Entretanto, “a juridicidade gera necessariamente restrições mais sensíveis à atuação do administrador e acarreta a ampliação do controle judicial dos atos administrativos.” [46]

Se buscarmos na legitimidade - enquanto validade do ato jurídico sob o fundamento ético e filosófico, a primeira fundamentação da atuação estatal,[47] há de se convir que a melhor governança do Estado, o objetivo de maior eficiência, concretizam, antes de tudo, um direito do cidadão:

[...] trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. [48]

A releitura da legalidade administrativa dar-se-á vinculada ao Direito, com fundamento na juridicidade da conduta, em consonância com a realidade contemporânea.[49] O que não significa que a administração gerencial pugne pela suplantação e renúncia a todos os princípios da escola burocrática, como assinalado por Daniela Mello Coelho:   

Não se pode afirmar que a administração publica gerencial pretende negar todos os princípios do modelo burocrático, pois apresentam-se inseparáveis de sua concepção a impessoalidade, o profissionalismo, a legalidade e a moralidade. No entanto, a administração gerencial fornece formas flexíveis de gestão, elastece o campo decisório do administrador na execução de tarefas relacionadas aos aspectos materiais, financeiros e humanos e utiliza-se do controle a posteriori, deslocando-se a ênfase dos meios para os fins. [50]

As propostas de parcerias sem ônus para a Administração já são relativamente comuns, em especial nas Instituições de Ensino, a exemplo da oferta de uso gratuito de novos softwares e equipamentos, pedidos de exposição de produtos aos servidores e corpo discente etc.

Entre a legalidade e a juridicidade, um maior espaço de liberdade para a formulação de novos instrumentos, como a parceria sem ônus para a Administração, integra o referencial teórico da gestão pública gerencial, constituindo-se em uma das facetas do direito administrativo moderno.

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Sobre o autor
Osvaldo Almeida Neto

Mestre em Direito pela UFBA. Professor da UNIJORGE/BA. Procurador Federal. Chefe da Procuradoria do IFBaiano.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA NETO, Osvaldo. Contrato de parceria sem ônus para a Administração: uma releitura do princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3457, 18 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23250. Acesso em: 24 abr. 2024.

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