“Que loucura é essa, tão inimiga dos deuses e dos homens, que destrata a virtude e profana com palavras maldosas as coisas sagradas”?
Sócrates
René Girard, professor emérito da Universidade de Stanford e membro da Academia Francesa, é o criador da denominada “Teoria Mimética” e autor de suas obras fundamentais. O ponto central de sua pesquisa é focado na gênese da violência presente constantemente nas sociedades humanas. Para Girard essa violência tem como uma de suas principais raízes (embora não a única) o processo de imitação que torna todo desejo ou paixão algo que provém do “outro” de forma eminentemente social (GIRARD, 2011, p. 34).
Desejar o que o “outro” deseja, ter o que o “outro” tem, agir como o “outro” age, reagir como o “outro” reage, eis a gênese da violência segundo Girard na medida em que esse mimetismo acarreta conflitos insolúveis que descambam para o uso da força. Em suas palavras:
“Os homens são expostos a um contágio violento que desemboca, frequentemente, em ciclos de vingança, em violências em cadeia evidentemente semelhantes porque todas se imitam. É por isso que digo: o verdadeiro segredo do conflito e da violência é a imitação desejante, o desejo mimético e as rivalidades ferozes que ele engendra” (GIRARD, 2011, p. 40).
Embora esse fenômeno não seja apanágio da contemporaneidade, pode-se constatar uma intensificação ou escalada da violência que “lembra a propagação do fogo ou de uma epidemia” (GIRARD, 2011, p. 32). É interessante notar que essa progressão violenta se dê exatamente num momento em que a chamada “Globalização” procura homogeneizar as culturas, os povos, as pessoas. Exatamente quando um individualismo exacerbado e egocêntrico se mescla com uma massificação, uma identificação ou universalização potencial. Parece que a visibilidade e a possibilidade dessa imitação, dessa pretensão à igualdade com sua consequente proliferação de desejos e paixões miméticas, onde cada um quer ser e ter o que o outro é e tem, cria um campo sempre mais fértil para o ressentimento, a inveja, a disputa de oportunidades e espaços e, consequentemente, a violência. Violência essa que pode inclusive surgir na forma de uma pretensa busca de Justiça, seja laica ou sacralizada. Realmente essa pode ser uma das vias explicativas para a proliferação dos atos de terrorismo religioso ou político, quando povos ou grupos se sentem explorados ou oprimidos e querem se igualar aos eventuais exploradores ou opressores. Na mesma intensidade vêm as reações dos alvos do terrorismo que mimetizam os agressores e atuam de forma violenta, invasiva, destruidora e desrespeitadora dos Direitos Humanos mais fundamentais (v.g. Leis Norte – Americanas de combate ao terrorismo pós 11 de Setembro). Não devem ser olvidados os ataques a escolas e universidades com massacres de diversas pessoas e suicídio do agressor. O que deseja o agressor? Revidar humilhações e violências sofridas, enfim, mimetizar ou imitar seus algozes, inclusive no ato de sua autoeliminação que ele considera desejada pelos mesmo que agora agride. E neste momento, após o mais recente massacre escolar nos Estados Unidos, o líder da chamada “Sociedade do Rifle”, que defende a liberdade da posse de armas de fogo pelos americanos, vem a público para dizer que a solução para a violência escolar é a alocação de seguranças armados nas unidades de ensino! É mesmo a violência que se reproduz num processo imitativo sem limites. Trazendo a questão para a realidade nacional, já temos exemplos de massacres escolares (v.g. Caso Realengo) e mais recentemente a onda de violência homicida que assola do Estado de São Paulo, especialmente em sua Capital. Há nesse episódio um claro viés mimético em que a violência institucional (Policial) se retroalimenta da violência dos grupos criminosos e vice – versa. O criminoso imita o policial exterminador e este, por sua vez, mimetiza o criminoso assassino num ciclo monstruoso sem fim.
Mas, toda essa gênese e reprodução mimética da violência há que ter alguma válvula de controle a impedir que o caos absoluto se instale e que a sociedade em geral venha a ruir. Girard identifica esse controle no mecanismo do “bode expiatório” por meio do qual, ainda por um processo de mimetismo, todos se unem numa mesma reação de violência e exclusão contra determinados “eleitos”. Afirma:
“Todas as sociedades humanas, sem exceção, têm tendência a se transformar sob o efeito de sua violência interna. Quando isso se produz, elas dispõem de um meio de restabelecimento que escapa a elas mesmas e que a antropologia nunca descobriu: a convergência espontânea, mimética de toda a comunidade contra uma única vítima, o ‘bode expiatório’ original em que todos os ódios se descarregam sem se difundir catastroficamente ao redor, sem destruir a comunidade” (GIRARD, 2011, p. 75)
E mais:
“O caos que precede à violência coletiva é uma decomposição real das comunidades humanas, fruto das rivalidades miméticas a que todos os homens são inclinados. Exasperando-se sempre, o mimetismo se torna cada vez mais contagioso e, ao final, recompõe o que decompôs. Ele reunifica as comunidades contra ‘bodes expiatórios’, ou seja, vítimas que passam por responsáveis pelas desordens em virtude unicamente dos contágios miméticos” (GIRARD, 2011, p. 82).
A recorrência girardiana ao mecanismo do “bode expiatório” não é novidade para o mundo da Criminologia. Com efeito, uma identificação da sociedade punitiva com o infrator é apresentada por Reik, Alexander e Staub, baseada ainda no mecanismo de "projeção" freudiano que levou Paul Reiwald a desenvolver sua teoria do criminoso como um "bode expiatório" da sociedade. Alguém sobre quem recai a descarga de culpas inconscientes numa tentativa de purificação (BARATTA, 1999, p. 55).
Efetivamente em Freud desde logo se encontra a definição do tabu como sendo algo desejável, mas proibido. "A base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente" (FREUD, 1999, p. 41). Assim sendo, as ações consideradas desviantes têm um característico de serem atrativas aos integrantes da sociedade em geral (afinal não seria necessário proibir algo que não fosse de modo algum desejado), gerando a conclusão de que a punição dos infratores das regras sociais proibitivas se dá por um mecanismo inconsciente de identificação de desejos reprimidos. Essa é a conclusão do próprio Freud ao asseverar que
"é igualmente claro por que é que a violação de certas proibições tabus constitui um perigo social que deve ser punido ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos. Se substituirmos os desejos inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo é real. Reside no risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade. Se a violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de desejar agir da mesma maneira que o transgressor” (FREUD, 1999, p. 42 – 43).
Girard inclusive não deixa de mencionar o papel exercido em seu pensamento pelo trabalho de Freud (GIRARD, 2011, p. 27) e, consequentemente se deduzem suas ligações com a denominada “Criminologia Psicanalítica” em suas vertentes do “Delinquente por sentimento de culpa” e das “Teorias Psicanalíticas da Sociedade Punitiva”.
No contexto desse referencial teórico é possível constatar que em meio ao paroxismo da escalada da violência nas sociedades contemporâneas emerge a iminência do caos da violência coletiva que pode decompor todo o tecido social. É nesse exato momento que se perfaz a oportunidade ideal para a tentativa de recomposição, mediante a unificação ou equalização do corpo social em torno de um “inimigo” comum eleito, em outras palavras, de um “bode expiatório”. Funciona como se a dispersão caótica de ódios e violências recíprocas geradas e alimentadas pelo processo mimético fosse controlada e canalizada pelo mesmo processo imitativo para um alvo comum, visto agora como fonte de todas as dores, de todas as ofensas, obstáculos, problemas. Esse “inimigo” comum passa a ser o objeto de um ódio generalizado, massificado, imitativo, enfim, compartilhado por quase toda a comunidade que vê em sua destruição ou punição um alívio. Mas, sempre e invariavelmente, é um processo mimético que comanda todo o processo. Antes a violência do outro imitada e se reproduzindo, agora o ódio direcionado para o “inimigo comum”, para o “bode expiatório” imitado ou mimetizado pela sociedade em geral. Poucos são os que conseguem escapar a esse círculo vicioso de imitações instintivas e o fazem correndo o risco de também se tornarem alvos do ódio ou ao menos serem considerados aliados dos “inimigos da vez”.
Não é nada difícil perceber o conteúdo mimético ínsito à Teoria do Direito Penal do Inimigo, pois quando se afirma que “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa” (JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 36), é natural a conclusão de que o restante da sociedade atuará no sentido de alijar tal indivíduo de todas as garantias básicas de um cidadão. Ora, então o denominado “inimigo” age de forma a negar a pertinência da ordem jurídica e, num movimento mimético, imitativo, os demais componentes da sociedade passam a agir como ele, ou seja, desprezando a ordem jurídica vigente e não aplicando ao tal “inimigo” os princípios, normas e regras atinentes a qualquer pessoa humana. Isso é, em última instância, rebaixar-se ao nível do infrator, igualar-se a ele, imitá-lo. É reintroduzir o mal no seio da sociedade, deixando de lado a oportunidade de negar-se ao mimetismo do mal, mediante a escolha do caminho do bem. Trata-se de desprezar a virtude em prol do vício, esquecendo da antiga lição de Sêneca para quem “onde houver um ser humano, aí haverá possibilidade de se fazer o bem” (SÊNECA, 2012, p. 128). Para o cruel a crueldade, para o injusto a injustiça, para o assassino a morte, nada mais do que o mesmo mimetismo encontrável na Lei de Talião (Olho por olho, dente por dente), sempre a mesma imitação e sempre da imitação a geração de violência num círculo vicioso e infindável.
Esse fenômeno do mimetismo que hoje pode ser visto como uma das bases de sustentação para o surgimento de um Direito Penal do Inimigo, como se vê, não é privilégio contemporâneo. Podem-se encontrar suas origens, segundo Girard, já nas mais primitivas sociedades, no mito e na tragédia grega. Naquela época a vítima do massacre ocasionado pela violência mimética que elege o seu “bode expiatório” ou seu “inimigo”, é considerada sempre como “culpada”, sendo a sociedade “inocente”. Édipo, por exemplo, é culpado de incesto e parricídio e por isso não é visto ou apresentado como vítima. É no Cristianismo que se vai operar uma mudança paradigmática, onde a vítima da reação mimética será apresentada como um inocente. Agora a vítima aparece “isolada e impotente” perante a comunidade que a persegue. As Escrituras Judaico – Cristãs põe a descoberto “a verdade que os mitos dissimulam”, qual seja, que na relação de forças e violências o ponto frágil é o perseguido e não a comunidade perseguidora. O Evangelho propõe uma ruptura com o mimetismo da violência, com sua repetição constante, propõe uma quebra do ciclo imitativo que reproduz e reintroduz sempre a mesma violência na sociedade (GIRARD, 2011, p. 82 – 83).
Certamente não são muitos que se dão conta do quanto essa ruptura encontrável nos Evangelhos pode ser o germe de uma compreensão jurídica em que os indivíduos merecem a proteção contra o Estado através de Direitos e Garantias Individuais, de um Processo Penal justo e marcado por regras e princípios que impedem o arbítrio, a violência, enfim a sobreposição da força ao Direito. Mesmo que o criminoso atue com base na força e não no Direito há uma clara noção de que à sociedade não é dado agir mimeticamente ao criminoso, não pode um policial matar sumariamente um infrator em plena rua, ainda que seja um homicida. O mundo jurídico tem sido infenso a esse mimetismo repetidor e reintrodutor da violência. E muito dessa postura se deve ao conceito de “pessoa” erigido ao longo dos séculos e tão espezinhado por teorias como a do Direito Penal do Inimigo.
Observe-se ainda que “o valor absoluto do indivíduo é um dado da revelação judaico – cristã, em que aparece a parceria divino – humana, na qual Deus chama livremente o homem a participar de sua vida”. É daí que surge o protagonismo do homem na ordem da criação, elevando-se sobre todas as coisas e sendo concomitantemente com elas solidário (RAMPAZZO, 2009, p. 13). A partir desse marco não pode mais o homem ser reificado, nas palavras de Buber, “o homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas” (BUBER, 1977, p. 9).
Possivelmente esse enfoque mitológico e teológico dado à temática na esteira de Girard possa ser mal visto pela pseudointelectualidade antirreligiosa, reducionista e centificista que tem imperado na atualidade. Pode ser apontado como um desvio para a irracionalidade, para a crença em prejuízo da cientificidade. No entanto, é mais do urgente superar esse paradigma que não passa da crendice insustentável na existência de um único caminho para o saber humano. [1] Isso porque, na verdade, o ser humano é marcado sempre pela tendência a crer. Como destaca Guillebaud, a suposta superação do religioso, a laicização das sociedades contemporâneas não “esvaziou o mar das crenças”. A tendência humana para o crer prossegue com seus dogmatismos, com sua fé muitas vezes cega e com seus fanatismos. Pululam o cientificismo, a cientologia e outras seitas e superstições. Nas palavras do autor:
“Se como se proclama em toda parte, a pós – modernidade está no fim, a explicação do fenômeno pode ser dada em poucas palavras. Pensávamos ter esvaziado o mar e descobrimos, com surpresa, que ele se encheu de novo. Pensávamos ter abolido a crença e vemo-nos desarmados diante da superstição. Pensávamos ter expulsado os deuses, e eis que voltam a viver entre nós...os ídolos” (GUILLEBAUD, 2007, p. 129).
É preciso ter o equilíbrio necessário para saber valorizar a contribuição que cada saber (científico, religioso, mitológico, histórico, filosófico, sociológico etc.) pode prestar à discussão racional de qualquer questão.
No tema ora estudado a distinção entre a posição da vítima no mito, como culpada por excelência, e na religião Judaico – Cristã, na qualidade de perseguida e submetida à força arbitrária, é de enorme relevância.
Acontece que no mundo laicizado a redução da influência e do próprio conhecimento religioso, especificamente aquele ligado ao Cristianismo exatamente neste aspecto fulcral, vem a fazer com que ressurja com imponência a conformação do mito, de modo que a vítima contra a qual se volta a violência mimética é vista sempre como “culpada”. O mito ressurge das cinzas como a Fenix (aliás, também figura mitológica), a visão trágica dos gregos volta a se impor como uma crença, ainda que inconsciente, já que o espaço deixado pela religião há que ser preenchido por alguma coisa. Então, corre-se o risco de esvaírem-se garantias baseadas num conceito inalienável de pessoa que se construiu ao longo de séculos. Parece natural eleger um “bode expiatório” ou um “inimigo” e dele retirar todos os direitos, inclusive a condição de pessoa, simplesmente olvidando a lição cristã de não se submeter ao mimetismo da violência e se deixando levar pela força hipnótica da imitação (ele é meu inimigo, eu sou inimigo dele, guerra é guerra).
Note-se que não se pretende fazer aqui um trabalho de “conversão religiosa”, nem mesmo de “proselitismo religioso”, mas apenas apontar um caminho de sabedoria que aponta para a rejeição da violência mimética que permite a formulação de teorias como a do Direito Penal do Inimigo, capazes de apresentar uma tese absurda de despersonalização do ser humano e, ao final, de nivelamento por baixo de toda a sociedade que em seu afã imitativo tem a pretensão de agir da mesma forma que os criminosos que condena, simplesmente desprezando a ordem jurídica constitucional e legal vigente, assim como os mais relevantes princípios norteadores do mundo do Direito, dentre os quais aquele fundante, qual seja, o Princípio da Dignidade Humana.
REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. 2ª. ed. Trad.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. 2ª. ed. São Paulo: Moraes, 1977.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. Trad. Carlos Nougé. São Paulo: É Realizações, 2011.
GUILLEBAUD, Jean – Claude. A força da convicção – Em que podemos crer? Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A nova aliança: a metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1986.
RAMPAZZO, Lino. A contribuição da teologia patrística na formulação do conceito de pessoa – Base para o reconhecimento jurídico. In: RAMPAZZO, Lino, SILVA, Paulo César da (org.). Pessoa, Justiça Social e Bioética. Campinas: Alínea, 2009.
SÊNECA. Da tranquilidade da alma precedido de Da vida retirada e seguido de Da Felicidade. Trad. Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas. Porto Alegre: L&PM, 2012.
Nota
[1] Cf. PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A nova aliança: a metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1986, “passim”.