Resumo: Analisa-se a celebração de acordos na Justiça do Trabalho – nos quais de discrimina o pagamento como "mera liberalidade", "mera indenização" ou "para evitar os riscos de uma condenação" – como uma tentativa de fraude fiscal, visando o não pagamento da contribuição previdenciária.
Palavras-chave: Justiça do trabalho; acordo; contribuição previdenciária; fraude fiscal; Lei 8.212/91; CTN; Constituição Federal.
A Lei nº 8.212/91 (que disciplina o custeio da Previdência Social) prevê como hipótese de incidência de contribuição previdenciária a percepção, pelo trabalhador, de verbas de natureza salarial, ficando excluídas desta espécie de tributação as parcelas de natureza indenizatória.
Com efeito, seu art. 28 dispõe que a remuneração pela prestação de serviço, seja esta com ou sem vínculo empregatício, caracteriza-se como salário-de-contribuição, fato gerador da contribuição previdenciária, verbis:
“Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição:
I - para o empregado e trabalhador avulso: a remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa;
(...)
III - para o contribuinte individual: a remuneração auferida em uma ou mais empresas ou pelo exercício de sua atividade por conta própria, durante o mês, observado o limite máximo a que se refere o § 5o .”.
Para o caso de valores obtidos por meio de reclamações trabalhistas, o mencionado diploma legal estabelece regra específica, determinando que sejam discriminadas as parcelas objeto da condenação ou do acordo, sob pena da contribuição previdenciária incidir sobre o valor total (da liquidação de sentença ou do acordo), verbis:
“Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direitos sujeitos à incidência de contribuição previdenciária, o juiz, sob pena de responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade Social.
§1º. Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas às contribuições sociais, estas incidirão sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado.
(...)” (grifo nosso)
A jurisprudência do TST corrobora a incidência sobre o total do acordo, mesmo na circunstância de ausência de vínculo de emprego, consoante se dessume da OJ 368 da SDBI-1 e dos seguintes precedentes:
Orientações Jurisprudenciais da SDI-1 368. DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS. ACORDO HOMOLOGADO EM JUÍZO. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. PARCELAS INDENIZATÓRIAS. AUSÊNCIA DE DISCRIMINAÇÃO. INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR TOTAL. É devida a incidência das contribuições para a Previdência Social sobre o valor total do acordo homologado em juízo, independentemente do reconhecimento de vínculo de emprego, desde que não haja discriminação das parcelas sujeitas à incidência da contribuição previdenciária, conforme parágrafo único do art. 43 da Lei nº. 8.212, de 24.07.1991, e do art. 195, I, "a", da CF/1988.
RECURSO DE REVISTA. UNIÃO. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE ACORDO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATICIO. PARCELAS INDENIZATÓRIAS. AUSÊNCIA DE DISCRIMINAÇÃO. INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR TOTAL. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 368 DA SBDI-1. PROVIMENTO. É necessária a discriminação das parcelas constantes do acordo homologado em juízo, independentemente do reconhecimento ou não do vínculo empregatício, e insuficiente a mera indicação de sua natureza jurídica, para efeito de contribuição previdenciária, sem a qual esta incidirá sobre o valor total acordado, não sendo possível se estabelecer percentuais globais como critério para a identificação dos montantes relativos às verbas salariais e indenizatórias. É imperioso, segundo a lei, sejam discriminadas as parcelas e os percentuais. Exegese do art. 43, parágrafo único, da Lei nº 8.212/91 combinado com o art. 276, §§ 2º e 3º, do Decreto nº 3.048, de 6/5/99. Exegese da Orientação Jurisprudencial nº 368 da SBDI-1. Recurso de revista conhecido e provido.
( RR - 75700-33.2007.5.02.0332 , Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 28/04/2010, 6ª Turma, Data de Publicação: 07/05/2010)
“RECOLHIMENTO PREVIDENCIÁRIO. AUSÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO E DE DISCRIMINAÇÃO DE RUBRICAS EM ACORDO JUDICIAL.
Quando o Regional consignou a competência material da Justiça do Trabalho, em razão de ato homologador da conciliação firmada no processo, ainda que desta tenha resultado o não-conhecimento do vínculo empregatício inicialmente pretendido, e entendeu pelo não-recolhimento previdenciário sobre o valor total do acordo, sob o fundamento de que não se caracterizou o fato gerador previsto em lei, bem assim de ser desnecessária a discriminação das rubricas em razão da transação ser indivisível, visualiza-se a violação literal aos arts. 195, I, 'a', da Constituição Federal de 1988 e 43, parágrafo único, da Lei nº 8212/91, os quais estabelecem: 'A Seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da Lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício"; e "Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas à contribuição previdenciária, esta incidirá sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado (red. L. nº 8620/93)'. Com efeito, segundo se depreende da literalidade da norma do art. 195, I, "a", da Constituição Federal de 1988, a incidência da contribuição social tem como fato gerador os rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, "mesmo que sem vínculo empregatício", bem assim que a não-discriminação dos títulos nos acordos homologados pelo juízo condiciona a sua incidência sobre o "valor total do pactuado". Recurso conhecido e provido.”
(TST - RR - 54714-2002-900-02-00 - QUARTA TURMA - DJ: 06-06-2003 – Relator Ministro ANTÔNIO JOSÉ DE BARROS LEVENHAGEN; grifo nosso).
Na verdade, somente a discriminação da parcela permite analisar se a mesma está prevista no § 9º do artigo 29 da mesma lei, o qual enumera taxativamente as parcelas que não integram o salário-de-contribuição, e que por esta razão atendem ao enquadramento isencional disposto no art. 111, inciso II do Código Tributário Nacional.
A princípio, não há nenhum impedimento para a celebração de acordo entre reclamante e reclamado no qual se declare que o mesmo se refere ao pagamento de uma ou mais parcelas de natureza indenizatória (constantes do §9º do art. 29 da Lei nº 8.212/91), desde que dentro dos limites dos pedidos formulados na inicial.
Entretanto, é cada vez mais comum o ajuizamento de reclamações trabalhistas nos quais o reclamante alega em sua inicial que prestou serviço ao reclamado, lhes sendo devidas parcelas de natureza salarial, para posteriormente celebrarem acordo no qual declaram genericamente que o pagamento decorre de “mera indenização”, “mera liberalidade” ou “para evitar o risco de uma condenação”, na tentativa de que tal discriminação lhes sirva como excludente de incidência tributária.
Em primeiro lugar, deve ser destacado que a Lei nº 8.212/91 e o CTN não conferem isenção da contribuição previdenciária às parcelas criativamente intituladas pelas partes, como no caso mencionado.
Ademais, o fato gerador da contribuição previdenciária resta caracterizado pela prestação do serviço – declarada pelo autor em sua inicial – e pelo pagamento contraprestacional efetuado no acordo, seja qual for a nomenclatura utilizada para sua denominação. Neste contexto, a verificação da situação definida em lei como necessária e suficiente à ocorrência do fato gerador fez surgir a obrigação tributária, nos termos do art. 114 do CTN.
Acrescente-se que se mostra contraditória a postura do reclamado de que o reclamante não lhe prestou nenhum serviço, mas que por “mera liberalidade” irá lhe efetuar um pagamento. Na verdade, se há um pagamento, este somente pode ser considerado contraprestacional, e é seguindo tal inteligência que se observa o verdadeiro escopo escondido na avença: evitar o recolhimento da contribuição previdenciária da qual tem conhecimento ser devida.
Neste diapasão, qualquer acordo desta natureza constitui negócio jurídico praticado com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Nos termos do parágrafo único do art. 116 e art. 118, inciso I, ambos do CTN, a avença deve ser prontamente desconsiderada ou, pelo menos, considerada ineficaz para afastar a incidência tributária.
Uma vez identificando que o acordo celebrado entre as partes não revela a verdade e visa promover a evasão tributária, cumpre ao Juiz do Trabalho repudiar tal intenção e deixar de homologá-lo e não permitir que a vontade das partes afaste a aplicação da legislação tributária, conforme determina o Código de Processo Civil, in verbis:
“Art. 129. Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes.”.
Diante do exposto, resta demonstrado que a eventual homologação de acordo entre as partes que, não reconhecendo qualquer tipo de prestação de serviço, objetiva tão-somente evitar os riscos de uma condenação, bem como determinar que não há contribuição previdenciária a ser recolhida, vulnera, além dos dispositivos legais acima aludidos, o artigo 195, I, “a”, e II, da Constituição Federal.