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O mérito como pressuposto da coisa julgada material

11/01/2013 às 15:05
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O conceito jurídico-positivo de mérito coincide com a relação jurídica material deduzida em juízo. A decisão que sobre ela versar, mesmo que seja para lhe infirmar a existência, julgará o mérito em seu sentido jurídico-positivo, estando, destarte, apta à coisa julgada material, se presentes os demais pressupostos.

1    Do mérito

Divergente. Adjetivo que resume o tratamento do mérito na ciência processual civil. Múltiplas significações lhe são emprestadas. Encontram-se na doutrina nacional e alienígena inúmeras definições.

Em se tratando de matéria fincada em dissensos, devem ser trazidas balizas teóricas e interpretativas firmes. Portanto, para a realização do estudo do mérito, adotar-se-á como premissa fundamental a distinção entre conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos.


2   Dicotomia: conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos

Os conceitos jurídicos podem ser: lógico-jurídicos ou jurídico-positivos.

O emprego mais famoso desta classificação foi realizado por Hans Kelsen. O jurista austríaco tratava a constituição em dois planos. Em um está a norma hipotética, fundamento transcendental de validade de todo o sistema, no outro a constituição positiva, a prevista no ordenamento jurídico. O primeiro plano é o lógico-jurídico; o segundo é o jurídico-positivo (SILVA NETO, 2006, pp. 28/29).

Na doutrina pátria, Borges (1999, pp. 94/95), abordando o tema do lançamento tributário, é quem melhor apresenta o caráter dicotômico dos conceitos. Para ele, jurídico-positivos são conceitos que somente podem ser apreendidos a posteriori, empiricamente, após o conhecimento de um determinado Direito Positivo, aplicáveis, portanto, a um âmbito de validade restrito no espaço e no tempo. Quanto aos conceitos lógico-jurídicos, pelo brilhantismo, melhor a transcrição das palavras do autor:

Contrapõem-se os conceitos lógico-jurídicos. São estes obtidos a priori, com validade constante e permanente, sem vinculação, portanto, com as variações do Direito Positivo. [...]

Os conceitos lógico-jurídicos constituem pressupostos fundamentais para a ciência jurídica. Entre esses pressupostos essenciais estão as noções de direito subjetivo, dever jurídico, objeto, relação jurídica etc. Correspondem, pois, à estrutura essencial de toda norma jurídica. Conseqüentemente, não são exclusivas de determinado ordenamento jurídico, mas comum a todos. Não são dados os conceitos lógico-jurídicos empiricamente, porque são alheios a toda experiência. São necessários a toda realidade positiva, efetivamente existente, historicamente localizada ou apenas possível, precisamente porque funcionam como condicionantes de todo pensamento jurídico.

À luz das lições de Borges e de Kelsen, será proposto, neste trabalho, um conceito de mérito aplicável a qualquer direito positivo que se examina e pertencente à teoria geral do direito processual civil – lógico jurídico – e outro relativo ao ordenamento jurídico pátrio, atento às particularidades legais – jurídico positivo.

Antes de se buscar a conceituação de mérito em ambos os sentidos, é indispensável conhecer os conceitos já elaborados pela doutrina. A análise da evolução conceitual facilitará a compreensão, seja do conceito lógico-jurídico de mérito, seja do jurídico-positivo.

Serão elencadas, assim, de modo conciso, posições nacionais e estrangeiras sobre o conceito de mérito, a fim de demonstrar a variedade de entendimentos existentes e familiarizar o leitor com a temática.


3    Posições conceituais doutrinárias sobre o mérito

Nada obstante pontuais diferenças, aglutinam-se em um mesmo bloco os autores que conceituam o mérito no plano do complexo de questões referentes à demanda, isto é, nas questões de fundo do processo (DINAMARCO, 2001, p. 239). Seguem este posicionamento: Liebman, Carnelutti e Garbagnati.

Liebman[1] afirma que (apud DINAMARCO, 2001, pp. 239/240):

O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência, se deve ser acolhido ou rejeitado.  Todas as questões cuja resolução possa direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o mérito da causa.

Carnelutti, sempre atrelado à noção de lide, marco metodológico de todo seu trabalho, aduz que o “mérito da lide significa [...] o complexo das questões materiais que a lide apresenta” (apud DINAMARCO, 2001, pp. 240)

Garbagnati, por seu turno, define o mérito como “o grupo de questões relativas ao fato constitutivo do direito invocado processualmente pelo autor e à escolha e interpretação das normas jurídicas que lhe serão aplicadas” (apud DINAMARCO, 2001, p. 242).

Outra posição fundamental é a que associa o mérito à demanda inicial proposta em juízo, ao pedido principal do processo (DINAMARCO, 2001, 246/247). Nesta trilha Chiovenda, Luigi Montesano e Elièzer Rosa.

Chiovenda assevera que (apud DINAMARCO, 2001, p. 246):

a sentença de mérito é o provimento do juiz acolhendo ou rejeitando a demanda do autor destinada a obter a declaração da existência de uma vontade de lei que lhe garanta um bem, ou da inexistência de uma vontade de lei que o garanta ao réu.

Luigi Montesano firma que “sentenças de mérito são aquelas que acolhem ou rejeitam a demanda” (apud DINAMARCO, 2001, p. 246).

Elièzer Rosa defende que “por mérito se há de entender o pedido principal”. E continua: “o que se pede em via principal que o juiz decida de modo definitivo para eliminar um tipo de conflito, isto é o mérito” (apud DINAMARCO, 2001, p. 247).

Não menos importante o posicionamento de Redenti, Fazzalari e Friedrich Lent, os quais identificam o mérito em algo exterior ao processo, ou seja, algo da vida comum das pessoas, entendendo, pois, que o mérito é a relação jurídica substancial deduzida e controvertida em juízo quanto a sua existência, inexistência e modo de ser (DINAMARCO, 2001, p. 248).

Alfredo Buzaid perfilha outro caminho. O Autor do anteprojeto do vigente Código de Processo Civil iguala o mérito à lide. Assim registrou na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil:

Haja vista, por exemplo, o vocábulo de “lide”. No Código de Processo Civil ora significa processo (art.96) ora o mérito da causa (arts. 287, 684, IV, e 687, § 2º). O projeto só usa a palavra “lide” para designar o mérito da causa. Lide é, consoante lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.

Há ainda quem compreenda o mérito como pretensão: exigência de subordinação de um interesse alheio. Inspiram-se na doutrina processual alemã que, ao contrário da italiana, não desenvolve seus estudos a partir do conceito de ação, preferindo dar destaque ao instituto da Anspruch: pretensão (DINAMARCO, 2001, p. 267). Assentem os germânicos que a pretensão é o objeto do processo[2], dissentindo somente quanto ao conteúdo desta pretensão, o que deu origem a três correntes: a primeira sustenta que o conteúdo da pretensão é a mera afirmação de um direito material, pois o fato da sentença negar a existência do direito não conduz à conclusão de que o processo não possuiu objeto; a segunda defende que a pretensão compõe-se pelo pedido (Antrag) e pelo estado de coisas (Sacherverhalt), esta última que, na língua latina, outra coisa não é senão a causa de pedir; a terceira aduz que o pedido, e tão somente ele, é a verdadeira pretensão (DINAMARCO, 2001, pp. 267/273). Nessa linha de mérito como pretensão, Dinamarco e Pontes de Miranda.

Dinamarco (2001, pp. 254/255), a partir da etimologia da palavra mérito, da interpretação do que seja pretensão no conceito carneluttiano de lide e claramente inspirado pelos germânicos, aduz que tal pretensão ostenta dupla face, pois exige do juiz o provimento que seja útil e, de outra banda, exige de outrem o bem da vida pretendido[3].

Pontes de Miranda elabora três espécies de pretensão (apud WATANABE, 2005, pp. 119/120): a pretensão à tutela jurídica, conceito pré-processual, eliminável pela desaparição do interesse de agir; a pretensão processual, pretensão a que se entregue a prestação prometida; e a pretensão de direito material, alegação jurídica do autor, pretensão de direito que faz a demanda. O mérito, então, estaria no pedido, ou melhor, no objeto do pedido, em que se veicula a pretensão de direito material (apud WATANABE, 2005, pp. 119/120).

Por fim, a peculiar posição de Didier Jr. e Cunha (2009, p. 364), para quem o mérito “[...] é sinônimo de objeto litigioso (composto pelo pedido e pela causa de pedir)”. Sucede que não restringem o mérito ao pedido inicial. Para eles, o mérito é a qualquer postulação – principal ou incidental (DIDIER JR.; CUNHA, 2009, pp. 368/369).

Em linhas gerais, aqui estão alguns dos conceitos de mérito já elaborados pela doutrina. Neste trabalho, a definição de mérito aplicável à coisa julgada material só será obtida após a análise de seus sentidos lógico-jurídico e jurídico-positivo.


4    Mérito lógico-jurídico

Analisadas atenciosamente os diversos posicionamentos da doutrina, percebe-se uma gradual aproximação do conceito de mérito a aspectos estritamente processuais. Das questões de fundo, da lide, da relação jurídica material controvertida, passou-se ao pedido, à pretensão.

A doutrina processual é acostumada a trabalhar com conceitos universais. Muito do desenvolvimento da ciência processual deve-se à elaboração conceitual generalizante. Tomem-se como exemplos as noções de ação, processo etc.

No exame do conceito mérito, ocorreu o mesmo. Buscou-se uma definição que pertencesse à teoria geral do processo. Alguns doutrinadores chegaram perto ao dizer que o mérito é a pretensão processual: exigência de subordinação de um interesse alheio veiculada no pedido. Mas não é este ainda o correto conceito lógico-jurídico.

Ao que tudo indica, quem o alcançou com maior exatidão foi Didier Jr. (2008, p. 294), sendo indispensável, portanto, aprofundar-se nas lições do autor resumidas em ponto anterior.

O jurista baiano entende que dois são os juízos que o magistrado pode fazer em um procedimento: juízo de admissibilidade e juízo de mérito[4].

O juízo de admissibilidade opera sobre o plano de validade do ato jurídico complexo procedimento, sobretudo sobre o ato que lhe dá início, o ato postulatório, o qual, considerado inválido, nulificará o procedimento em sua origem (DIDIER JR.; CUNHA, 2009, pp. 42/43). Assim o é porque o ato postulatório dá ensejo ao contraditório, que se desenvolve através de um conjunto de atos, o procedimento, de tal sorte que o exame da validade da postulação é o exame de validade do próprio procedimento (DIDIER JR.; CUNHA, 2009, p. 43). Admissibilidade, portanto, são questões relativas aos requisitos de admissibilidade de um dado procedimento.

Pelo juízo de admissibilidade afere-se se é possível o exame do conteúdo da postulação, de modo que, elaborado um juízo de admissibilidade positivo, pode-se ir para o juízo de mérito: é o caráter preliminar da admissibilidade em relação ao mérito (DIDIER, CUNHA, 2009, pp. 42/43).

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No juízo de mérito, examina-se a procedência ou não daquilo que se postula (DIDIER; CUNHA, 2009, p. 42). Nas palavras de Barbosa Moreira (apud DIDIER; CUNHA, 2009, p. 43) “se apura a existência ou inexistência de fundamento para o que se postula, tirando-se daí as conseqüências cabíveis, isto é, acolhendo-se ou rejeitando-se a postulação”. Segundo Didier Jr. (2008, p. 295) “chama-se de juízo de mérito a decisão sobre a questão de mérito principal, em que se examinam as outras questões de mérito (fundamentos)”. Nesse sentido, a postulação e os fundamentos necessários para o seu deferimento constituem o mérito[5].

Tal dualismo de juízos aplica-se a qualquer procedimento – principal ou incidental, de primeiro grau ou recursal, de conhecimento ou executivo etc – ou ato postulatório – petição inicial, contestação, recurso, pedido de produção de prova, reconvenção, conflito de competência, impugnação ao valor da causa etc (DIDIER; CUNHA, 2009, p. 42).

Sucede que o conceito de mérito baseado na dualidade de juízos sobre a postulação/procedimento gera um inusitado resultado. Conquanto uma mesma questão não possa ser de admissibilidade e de mérito em relação a um mesmo procedimento, é possível que seja de admissibilidade em relação a um dado procedimento, e de mérito em relação a outro, a exemplo da competência absoluta, que é questão de admissibilidade da petição inicial, mas pode ser questão de mérito em um recurso (DIDIER JR., 2008, pp. 295/296).

A consequencia prática é a seguinte: qualquer questão pode vir a constituir o mérito; e sendo de mérito, poderá formar coisa julgada material. Nesta senda, Didier Jr. (2008, p. 296) proclama:

Essa observação é importante, pois, sendo questão de mérito de um procedimento principal uma condição da ação ou um pressuposto processual, a sua análise estará apta a ficar imune com a coisa julgada material. O mérito de um procedimento pode ser composto por questões exclusivamente processuais.

Se a postulação e os fundamentos necessários para o seu deferimento constituem o mérito, toda decisão dada no curso do processo em resposta a um requerimento fará coisa julgada, mesmo se relativa a questões estritamente processuais ou de menor relevância.

Tal conclusão não se coaduna com o tratamento dado pelo legislador infraconstitucional à coisa julgada. A legislação é recheada de preocupações com os limites da coisa julgada, uma vez que imutabilizar o desisum produz efeitos graves – efeito positivo e negativo, abertura da via rescisória, eficácia preclusiva etc. Exatamente por isso lhe são impostos limites temporais, objetivos e subjetivos. A res judicata deve ter contornos e limites bem definidos.

Imunizar questões de direito processual faz pouco sentido. Ora, o direito processual é instrumento do direito material. Engessar o meio através da coisa julgada material é retardar a consecução do fim. Imagine-se o incoveniente de se permitir às partes ajuizar uma ação rescisória a cada vez que um recurso relativo a questões estritamente processuais fosse negado. O embate nunca chegaria ao fim. Restaria frustrado o fim da coisa julgada: estabilizar as relações jurídicas.

Na perspectiva da teoria geral do processo, os conceitos lógico-jurídicos de admissibilidade e mérito ora apresentados são impecáveis, vez que explicam com perfeição as etapas lógicas do julgamento. Contudo, não satisfazem os anseios do direito posto.

Há de sempre se tomar cuidado quando se utiliza conceitos lógico-jurídicos. Como se pretendem universais, não se atêm às particularidades do ordenamento jurídico. Aplicá-los sem reservas pode levar a severas distorções. Valiosos, porém, pela alta capacidade de abstração e na medida em que estruturam o pensamento.

Ante o exposto, observa-se que o conceito de mérito que repercute nos demais institutos processuais – coisa julgada, ação rescisória e outros – deve ser buscado no direito positivo nacional. Cuida-se, portanto, de um conceito jurídico-positivo.


5    Mérito jurídico-positivo

Analisadas as principais posições sobre mérito, nota-se que a maioria delas, até mesmo algumas que pugnam por um conceito estritamente processual, possui um traço em comum.

Expressões como questões materiais (Carnelutti), questões relativas ao fato constitutivo do direito (Garbagnati), demanda do autor destinada a obter a declaração da existência de uma vontade de lei que lhe garanta ou negue um bem (Chiovenda); eliminação de conflito (Elièzer Rosa), relação jurídica substancial deduzida e controvertida em juízo quanto a sua existência, inexistência e modo de ser (Redenti, Fazzalari e Friedrich Lent), conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro – lide (AlfredoBuzaid), pretensão de direito material (Pontes de Miranda) e pretensão de dupla face, ou seja, exigência do provimento jurisdicional e do bem da vida pretendido (Dinamarco) remontam à idéia de relação jurídica material.

Alvim (2007, p. 187) já alertava que, para a doutrina tradicional, o mérito é a relação jurídica material/substantiva deduzida em juízo – relação ex locato, relação jurídica creditícia – de modo que toda vez que o juiz se pronunciasse sobre esta relação jurídica estaria se manifestando sobre o mérito da causa[6]. É preciso, todavia, determinar com acuidade o que seja uma relação jurídica material. Para tanto, é preciso distinguir o direito processual do direito material.

Para Cintra, Grinover e Dinamarco (1998, p. 40), o direito processual é um complexo de normas que regem o exercício conjugado da Jurisdição, da ação e da defesa, enquanto o direito material consiste no conjunto de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo, comercial, tributário, trabalhista, ambiental etc). Ambos os direitos mantêm estreita relação: o direito processual é um instrumento do direito material; seus institutos básicos são concebidos e justificam-se pela necessidade de garantir a autoridade do ordenamento jurídico (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1998, p. 40).

Estabelecida a distinção, pode-se afirmar com facilidade que a relação jurídica material é aquela surgida pela incidência de uma norma que discipline as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida nas relações intersubjetivas travadas na sociedade – norma de direito material. 

Dito o que se considera por mérito jurídico-positivo, é necessário, agora, justificar tal posição pela análise do direito posto, sobretudo naquilo prescrito pelo Código de Processo Civil.

A primeira vinculação existente no Código de Processo Civil entre mérito e relação jurídica material deduzida está na adoção pelo aludido diploma legal da teoria da ação de Liebman.

Surgida do intenso debate entre concretistas e abstrativistas acerca da autonomia ou não do direito de ação em relação ao direito material, assevera a teoria do mestre italiano que a garantia constitucional do direito de agir em juízo não se confunde com a ação, a qual se não preenchidas suas condições – legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido – não terá existido, originando a chamada carência de ação (MARINONI, 2007, p. 173).

Liebman define a ação como direito subjetivo instrumental correlato com a sujeição e instrumentalmente conexo a uma pretensão material, dando por exercida a função jurisdicional somente quando o juiz pronuncie uma sentença sobre o mérito – pretensão material deduzida em juízo – favorável ou desfavorável (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1998, p. 251). Coloca-se, ao por as condições da ação como ponto de contato entre a ação e a situação de direito material, portanto, na metade do caminho daqueles que entendem que a ação depende do efetivo reconhecimento do direito material – concretista – e daqueles que sustentam que a ação é um direito de agir abstrato – abstrativistas.

Ainda que não fosse a teoria de Liebman a adotada pelo Código de Processo Civil, seria forçoso concluir pela íntima relação entre a relação jurídica substancial e mérito. O cerne de todas as teorias da ação é justamente a maior ou menor aproximação da ação com o direito material. Isso demonstra que a relação jurídica substancial é o cerne do processo, isto é, seu mérito em sentido jurídico-positivo.

Não é por outra razão que a ação concretamente exercida (demanda), entendida como o conteúdo da postulação, é o nome processual que recebe a relação jurídica substancial quando posta à apreciação do Judiciário, razão pela qual há uma perfeita simetria, correspondência entre os elementos da demanda – partes, causa de pedir e pedido – e os elementos da relação jurídica substancial – sujeitos, fato jurídico e objeto (DIDIER JR., 2008, p. 169). É justamente na ação concretamente exercida (demanda) que se encontra o ponto de contato do direito processual com o direito material.

Vale dizer que a própria natureza da coisa julgada permite inferir o entrelaçamento entre mérito e relação jurídica substancial. Isso porque quando realiza a tarefa de subsunção do fato à norma abstrata prevista no ordenamento jurídico, o juiz declara a disciplina que o direito material confere à situação específica (MARINONI; ARENHART, 2008, p. 644). A disciplina dada pelo direito material à situação concreta nada mais é que a relação jurídica substancial. Não se olvide que as categorias de direito processual, onde se inclui a coisa julgada, são mais ou menos informadas pelo direito material; não se pode perder de vista que o direito processual civil volta-se ao direito material (BUENO, 2007, pp. 49/50).

A segunda prova de que o direito processual civil vincula mérito à relação jurídica substancial deduzida em juízo está nos diversos artigos do Código de Processo Civil que colocam a relação jurídica como cerne do julgamento. Nada obstante os dispositivos utilizem a expressão “relação jurídica”, sem a utilização do adjetivo “material”, a referência que fazem é realmente à relação jurídica material. Cuida-se de expressão elíptica.

Por óbvio, não tratam os preceitos da relação jurídica processual – relação triangular entre autor, réu e julgador – que está exaustivamente regulada no próprio Código, em seus 1.220 artigos. Quando o Código fala em relação jurídica, está tratando de algo que vem de fora do processo. Esse elemento externo, processualizado pela demanda, é a relação jurídica material.

Pois bem, confiram-se os artigos, os quais são mais bem compreendidos na medida em que se lê relação jurídica como relação jurídica material.

O artigo 4º do Código de Processo Civil decreta que “o interesse do autor pode limitar-se à declaração da existência ou da inexistência de relação jurídica; da autenticidade ou falsidade de documento.” Quer dizer que quando o autor não quiser outros efeitos advindos da relação jurídica material, a exemplo da condenação, pode apenas encerrar a crise de certeza com a declaração sobra a existência ou inexistência da relação jurídica material.

O preceito petrifica o entendimento de que o âmago de qualquer processo é uma relação jurídica material. Ressalva-se a questão da falsidade ou autenticidade de documento, que muito embora não constitua relação jurídica material, permite o sistema sua declaração e, por conseguinte, a aptidão para a coisa julgada, a fim de evitar a utilização de prova sabida falsa em outro processo.

O artigo 47 ordena que “há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes [...]”.

O artigo 54 reza que se considera “[...] litisconsorte da parte principal o assistente, toda vez que a sentença houver de influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido”.

O artigo 265, inciso IV, alínea a, estabelece a suspensão do processo “quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente”. Observe-se: aqui se tem o caso de uma relação jurídica que é questão preliminar ou prejudicial de outra relação jurídica material, a qual o dispositivo chama expressamente de mérito. Com o mesmo raciocínio o artigo 5º: se, no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.

O parágrafo único do artigo 460 impõe que “a sentença deve ser certa, ainda quando decida relação jurídica condicional”.

O artigo 471, inciso I, diz que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito [...]”.

O artigo 499, § 1º, da referida lei determina que “cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial” para que possa impugnar decisão judicial através de recurso

O artigo 572 estatui que “quando o juiz decidir relação jurídica sujeita a condição ou termo, o credor não poderá executar a sentença sem provar que se realizou a condição ou que ocorreu o termo”.

Há ainda uma aproximação de mérito com relação jurídica substancial em alguns dispositivos do Código de Processo Civil que utilizam expressamente a locução mérito. Um deles é o artigo 269, inciso IV, quando assevera que “haverá resolução de mérito quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição” é um deles

Fez o legislador questão de incluir o preceito para claramente por fim à discussão acerca da natureza processual ou material da prescrição e decadência. Obviamente, optou pelo caráter de direito material dos institutos ao colocá-los como questões que levam ao julgamento do mérito, o que faz todo sentido, já que a prescrição retira a eficácia da pretensão e a decadência extingue o direito potestativo (DIDIER JR., 2008, pp. 544/545). Caso fosse afirmada a natureza processual, os institutos levariam à carência de ação ou à ausência de algum pressuposto processual.

Se prescrição e decadência, ademais, são questões de direito material que influem na relação jurídica material e levam à extinção do processo com resolução do mérito, logo, por um raciocínio indutivo, conclui-se que as demais questões, para resolverem o mérito, devem ser também materiais. Reitera a legislação, assim, que o mérito limita-se às relações jurídicas materiais.

A doutrina, na mesma direção, faz severas críticas ao artigo 297, inciso IX, que estabelece a extinção do processo sem resolução do mérito quando ocorrer confusão entre o autor e réu. Didier Jr. (2008, p. 537) proclama:

A confusão é fato que extingue a obrigação. Assim, a rigor, não é só o processo que se extingue, mas a própria relação jurídica substancial nele deduzida. É caso, pois, de extinção do processo com resolução de mérito, à semelhança do que ocorre com aquela fundada no pagamento ou na transação, que também são modalidades de extinção da obrigação.

Outro exemplo é o artigo 301, o qual atribui ao réu o ônus de alegar inexistência ou nulidade da citação, incompetência absoluta, inépcia da petição inicial, perempção, litispendência, coisa julgada, conexão, incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização, convenção de arbitragem, carência de ação, falta de caução ou de outra prestação, que a lei exige como preliminar, antes de discutir o mérito. Cuida-se de defesas relativas a questões processuais ou às condições da ação. Resta ao mérito, pois, as questões tangentes à relação jurídica material deduzida.

Por fim, é digna de nota a problemática da lide. Segundo Alfredo Buzaid informa na Exposição de motivos do Código de Processo Civil, o emprego do termo lide no diploma legal designa o mérito. Como sinônimo de mérito, deve ser a lide entendida como a relação jurídica material deduzida em juízo. Com efeito, a lide, em seu conceito Carnelutiano, tem sofrido severas críticas. Dinamarco (2001, p. 254) aponta a prescindibilidade da lide como marco metodológico processual:

Como conceito sociológico, a lide presta-se com muita utilidade a justificar didaticamente a necessidade do processo e do exercício da jurisdição, quando se trata de matéria disponível (especialmente, direito das obrigações), sendo possível a satisfação da pretensão pela pessoa a quem dirigida e, portanto, sendo relevante a sua resistência. Fora disso, o conceito mostra-se inadequado e, mesmo com as adaptações que vão sendo tentadas, não serve para figurar assim ao centro da ciência do processo.


6  CONCLUSÃO

Feita toda essa digressão, parece que assiste razão à doutrina tradicional. Com efeito, analisado o direito positivo, conclui-se que o conceito jurídico-positivo de mérito coincide com a relação jurídica material deduzida em juízo. A decisão que sobre ela versar, mesmo que seja para lhe infirmar a existência, julgará o mérito em seu sentido jurídico-positivo, estando, destarte, apta à coisa julgada material, se presentes os demais pressupostos.


REFERÊNCIAS

ALVIM, J. E. Carreira. Teoria Geral do Processo. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

BORGES, José Souto Maior. Lançamento Tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Exposição de Motivos do Código de Processo Civil. Brasília, 02 de agosto de 1972.

BUENO, Cassio Scarpinela. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v.2, tomo 1.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10 ed. Salvador: Podivm, 2008, v.1.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 7 ed. Salvador: Podivm, 2009, v.3.

DINAMARCO, Candido Rangel; RULLI NETO, Antônio. Fundamentos do processo civil moderno. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni. Processo de Conhecimento. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v.1.

MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v.2.

SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2006.

WATANABE, Kazuo. Da Cognição do Processo Civil. 3 ed. São Paulo: Perfil, 2005.


Notas

[1] Liebman, posteriormente, alterou seu entendimento. Passou a identificar o mérito no pedido. (DINAMARCO, 2001, p. 245).

[2] Tratam os alemães da pretensão como objeto do processo, e não como mérito. Ao menos nos estudos de Dinamarco (2001, pp. 267/273), não há registro de pretensão como mérito para os alemães, até porque parece ser o mérito instituto estranho ao direito germânico. A noção de objeto do processo/ pretensão como mérito é importação nacional de idéias alienígenas. É importante ter essa premissa firmada.

[3] Dinamarco (2001, pp. 261/263) vislumbra que todo recurso tem seu mérito, até mesmo aqueles que versem somente de questões processuais, pois nele se dirige uma pretensão ao tribunal. Incide o processualista em contradição. Se a pretensão/mérito sempre terá uma face que trada da exigência do bem da vida desejado, recurso que trata estritamente sobre material processual não teria pretensão, dado que seu resultado não entregaria nenhum bem da vida ao recorrente, mas apenas uma utilidade processual. Tal observação será feita em tópico adiante, mas vale o registro desde já.

[4]  O autor exclui o juízo sobre as condições da ação. Estas, para ele, integrariam o juízo de mérito (DIDIER JR., 2008, p. 294).

[5] O mérito lógico-jurídico é tanto o fundamento necessário para o deferimento da postulação quanto o fundamento relativo ao procedimento instaurado de ofício pelo magistrado. Apesar de ser exceção, não se pode ignorar que há procedimentos instaurados sem a iniciativa das partes. Nem por isso, são esses procedimentos iniciados ex officio desprovidos de mérito.

[6] Alvim (2007, p.187) entende que “este conceito tradicional de mérito é por demais estreito para satisfazer às exigências técnicas do processo.” Haveria processos em que nenhuma relação jurídica material é deduzida – a exemplo da ação rescisória, que teria somente natureza desconstitutiva da coisa julgada – pelo que a doutrina se aprofundou na pesquisa de um conceito melhor ajustado à dogmática processual e aplicável a todos os casos, no âmbito civil, penal e trabalhista. Perceba-se que tal conceito mais adequado é o lógico-jurídico, pertencente à teoria geral do processo, já exposto no presente trabalho.

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Sobre o autor
Iuri de Castro Gomes

Assessor Jurídico da Procuradoria da República na Bahia (MPF). Especialista em Direito do Estado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Iuri Castro. O mérito como pressuposto da coisa julgada material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23432. Acesso em: 22 nov. 2024.

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