Introdução
A motivação para escrever este rápido ensaio sobre a função social dos contratos veio das discussões do curso Função social do contrato e defesa dos Direitos Fundamentais coletivos e difusos decorrentes na turma de mestrado em Direito da UNIMEP.
Procuramos discorrer, brevemente, sobre temas que estamos tratando a algum tempo e que no curso tivemos a oportunidade de revisitar.
Iniciamos com uma nota histórica que procura descrever de forma resumida a nossa formação patriarcal e de como esta formação contribui para uma pensamento ainda muito individualista entre nós.
Depois passamos a responder ou ainda comparando definições de contratos tanto em nosso ordenamento como em códigos alienígenas.
Destarte tentamos descrever o significado de função social e o seu contexto nos contratos e como a questão da função social vem sendo utilizada.
Feito este entendimento passamos a apresentar algumas interpretações e comentários de conhecidos civilistas e doutrinadores acerca do art. 421 do Código Civil de 2002. Estas interpretações e comentários sobre a função social dos contratos reforçam a importância do tema e mostram que as relações contratuais seguem para um novo patamar jurídico. Patamar este que presa pelas relações e liberdade contratuais, mas também tem um foco na questão social.
Por fim, apresentamos algumas opiniões da professora Daisy Gogliano sobre a função social dos contratos. A professora em questão tem ideias bastante restritivas com relação à redação do art. 421 do CC/2002 e do uso prático da função social dos contratos. Procuramos fazer um contra ponto entre as opiniões dos civilistas e doutrinadores aqui apresentados e as da professora Daisy, mostrando que mesmo após 10 anos de vigência do CC/2002 ainda existem fortes opiniões divergentes acerca da função social do contrato e da sua eficácia.
1. Nota Histórica
Nossa sociedade tem sua origem em profundas fundações patriarcais. Este modo social se constituía em das relações familiares entre o senhor de engenho e a metrópole. Raramente havia transações comercias entre as capitanias. Dentro das capitanias, as propriedades se auto sustentavam, não necessitando de contratos com fornecedores de bens ou serviços. A exceção da compra e venda de escravos.
Falar de uma função social do contrato neste período é totalmente inadequado, a menos que estejamos observando a pura evolução da acumulação de capital para uma economia capitalista, ou seja, o contrato assume uma forma puramente econômica sem se preocupar com o bem estar social.
Nesta formação, patriarcal e individualista, o homem de negócio que passa a surgir no Brasil a partir da segunda metade do século XIX vê, em suas relações comerciais, a liberdade de negociar e de auferir lucros não mais com a venda de escravos, mas com produtos e serviços. Observa-se que as relações contratuais, expressão simplesmente da vontade das partes, sem levar em consideração os impactos a terceiros, ou, para usar um termo mais moderno, seu impacto ao meio ambiente.
Todos podem tudo – permitindo a Lei – desde que os pactos sejam honrados. Quem comprou tem o direito de receber e quem vendeu tem o dever de entregar, ou seja, o pacta sunt servanda[1] é essencial para garantir a segurança jurídica da relação contratual, focando puramente a relação individual e não coletiva.
Com esta arraigada mentalidade que se desenvolve as relações capitalistas em nosso país e faz nascer, tardiamente em nosso meio, o Código Civil de 1916 endossando a liberdade contratual.
Entrementes, as relações sociais que não são regidas apenas por contratos (sejam eles mercantis ou civis) mas, por inter-relações sócio-político-econômicas faz com que alguns tipos dessas relações saiam do bojo de que tudo é possível numa relação contratual, bastando para isso que as partes manifestem sua vontade livremente. Como exemplo, temos o contrato de trabalho.
Historicamente, a luta das classes trabalhadoras, pressionaram por uma regulamentação dos contratos de trabalho.[2]
Por fim, após algumas décadas de mandos e desmandos constitucionais em 1988 obtivemos uma constituição que, de forma tardia, mas bem vinda, privilegia os chamados direitos fundamentais[3].
Em 2002 entra em vigor o Novo Código Civil que vem a modernizar vários aspectos do Código de 1916, dentre eles seu artigo 421, a função social do contrato:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Segundo Fernando Rister de Souza Lima essas conquistas políticas ocorreram em pouco tempo e com muita força no Brasil. Ao contrário disso, os direitos civis nos Estados Unidos levaram séculos a serem conquistados, enquanto no Brasil, em duas décadas, o judiciário ficou completamente sobrecarregado de demandas.[4]
Se comparado aos EUA, por exemplo, não atingimos uma maioridade civil que nos permita utilizar o judiciário com mais parcimônia e/ou procurar a conciliação antes mesmo de fazer os trâmites judicias. Mas também entendemos que isso é um efeito benéfico, pois o cidadão está se “sentindo no direito” de exigir do Estado a tutela de suas reivindicações.
Talvez, a falta de uma forte orientação sobre seus direitos crie uma sobrecarga de processos, que em vários casos possam ser despropositados. Entrementes não se pode olvidar que nesta seara também figura a pessoa do advogado que tem por princípio fazer a devida orientação para que uma causa legítima chegue ao judiciário.
2. O que é um Contrato?
Vimos anteriormente que nossas relações social no período colonial eram bastante restritas tendo em vista que o engenho praticamente se auto sustentava sem precisar manter vínculos com outros a não ser a metrópole.
Se tomarmos que os contratos nascem das relações sociais[5], em nosso período colonial eles eram bastante restritos.
Neste sentido o nosso Direito é fortemente influenciado pelo Direito Romano. O problema é que muito do Direito Romano se perdeu com o passar dos séculos e desde a Idade Média vem se tentando fazer sua recuperação através de várias interpretações.[6]
O Código Civil francês não faz uma distinção entre obrigação e contratos simplesmente nominando em sua terceira parte: “Des Contrats ou des Obligations Conventionnelles en Général".
A definição de contrato encontrada no artigo 1.101 do Código Civil francês é:
Art. 1.101 Le contrat est une convention par laquelle une ou plusiers personnes s’obligent, envers une ou plusieurs autres, à donner, à faire ou à ne pas faire quelque chose.[7]
Se antes o contrato advinha da simples relação social, agora, no código francês de 1804, ele passa a ser normatizado e tem a característica de uma convenção, uma pacto, um acordo, uma aliança entre duas ou mais pessoas que tem a obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa entre eles, sem levar em consideração terceiros.
Observamos que o foco desta codificação é o bem material[8] e não as pessoas envolvidas, não o bem estar humano. O que conta é a obrigação de fazer (ou deixar de fazer). É uma relação puramente material. O escravo, por exemplo, considerado uma res tinha toda sua legitimidade contratual, descaracterizando a pessoa humana.[9]
Nosso atual Código Civil não há uma definição formal de contrato como faz o Código Francês[10], ao contrário nossa codificação deixa “espalhado” este conceito. Para construir uma definição de contrato precisamos passar pela parte dos fatos jurídicos (art. 104 e 107) depois ir até a parte do Direito das Obrigações (art. 233 e 247) até chegarmos ao Título V Dos Contratos em Geral, onde encontraremos o art. 421. Esta ordem, claro, não é aleatória.
É de se observar que a junção de todas estas definições e/ou normas norteiam a definição de contrato e, principalmente, tem um caráter puramente material.
Atualmente o contrato deixa de ser meramente uma relação de obrigação material e passa a levar em consideração os efeitos externos (à sociedade) e também os aspectos dos direitos fundamentais. Exatamente isso que vai fazer o artigo 421 do nosso Código Civil quando insere em sua redação a função social.
3.O que é Função Social?
Hodiernamente muito se tem dito acerca das responsabilidades sociais, tanto da sociedade, como da empresa como do indivíduo. Isso é fruto do acesso à informação. Quanto mais acesso à informação, maior a responsabilidade do ente jurídico.
Parece que tudo tem que ter uma razão, uma causa, uma função social, que justifique esta ação. Não se trata mais de saber se é ruim ou bom, se causa dano ou não, é uma questão de se saber se tem uma função social e se esta função social é benéfica para a sociedade em que ela é praticada. Por fim, a função social passa a ser um princípio.[11]
Se esta nossa definição está correta, então a função social é um princípio norteador da atual sociedade. Veja que a função social não elimina as diferenças de classes, e ela nem se propõe a isso, mas ela procura restabelecer o equilíbrio entre os indivíduos e suas relações sociais.[12]
A professora Daisy Gogliano[13] diz que a palavra “social, em sua acepção mais ampla sempre causa um “frenesi”, no sentido de nos remeter a uma certa segurança, bem-estar, proteção ao economicamente débil, naquela lembrança, sempre esquecida, de que “somos-com-outrem”, na expressão heideggeriana e que nos conduz ao abandono do individualismo.
Não cremos que esta visão heideggeriana esteja correta. Em nossa percepção a palavra social remete a discussões acerca do social, porém sem olvidar o indivíduo. É mais uma questão de discussão e razões de tal ato nas relações sociais do que, por exemplo, a proteção ao economicamente débil. Se a relação social como a entende Weber, são equilibradas, ou seja, se regem segundo uma dada orientação, não há o porque de haver a tutela do mais fraco na relação. A questão que ainda se mantem de forma hipócrita entre nós que um contrato é totalmente equilibrado, que ele nasce por força da manifestação de vontade das partes e de que uma parte não impõe sua vontade sobre a outra.[14]
Se existe uma efetiva tendência à tutela do mais desfavorecido isso se dá justamente em prol da função social, ou seja, das relações entre os sujeitos que coabitam na sociedade e que, segundo André Trindade[15], reconhecem no outro a sua função, a sua necessidade. Com isso banimos qualquer tentativa de individualismo, por mais egoística que seja a intenção de uma das partes. E isso não se esgota, pois quando o direito reequilibra esta relação ele pode estar desequilibrando outra, desencadeando assim uma série de ruídos no sistema.[16]
4.Interpretações ao art. 421 do CC/2002
O artigo 421 do Código Civil de 2002, é um dos mais extraordinários e polêmicos avanços do direito nacional.
Extraordinário porque insere, em sua redação, a função social, ou seja, reconhece que o contrato não é algo que é reconhecido como afetando apenas as partes diretamente envolvidas.[17]
Polêmico porque nem todos[18] concordam com a inovação e com a redação dada pelo legislador ao artigo 42, levando a várias interpretações e mesmo a imperfeições que poderiam prejudicar as relações contratuais, em seus diversos entendimentos.
Vejamos alguns comentários de renomados doutrinadores sobre o tema.
James Eduardo Oliveira[19]:
“A função social do contrato é um dos mais qualificados canais de aspersão dos valores e princípios constitucionais no campo das relações negociais privadas. Mas é preciso advertir que a função social apenas qualifica, e não destrói a liberdade de contratar e a autonomia da vontade.”
A observação de James Eduardo Oliveira é muito pertinente. A redação do artigo 421 não ceifa a autonomia de contratar, mas sim, qualifica as relações contratuais no âmbito de sua função social. Outro ponto importante é o art. 421 estar alinhado com os princípios e valores constitucionais, ou seja, há uma valorização dos princípios fundamentais pautados na constituição de 1988.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[20]:
“O CC celebra o princípio da autonomia privada, sob cuja égide o sujeito de direito vivencia o poder de contratar com liberdade, poder esse limitado, porém, à ordem pública e à função social do contrato.”
Não é possível uma segura interpretação do art. 421 sem lembrar do art. 2.035 em seu parágrafo único que reza que a função social do contrato é de ordem pública, o que faz com que seja impossível um preceito que seja contra ao que foi fixado na Lei.
Maria Helena Diniz[21]:
“O art. 421 é um princípio geral de direito, ou seja, uma norma que contém uma cláusula geral. A ‘função social do contrato’ prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui clausula geral, que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito; reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas e não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presente interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.”
A professora Maria Helena Diniz lembra que o art. 421 vem a manter o princípio da conservação dos contratos quando este tende a reequilibrar a obrigação com base em sua função social. Lembra também a questão constitucional que preserva a dignidade da pessoa humana. Neste ponto é fácil lembrar dos contratos de trabalho, que apesar da forte tutela da CLT, ainda encontramos situações de servidão que nada devem ao nosso período escravocrata onde a dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais são totalmente deixados de lado. Neste sentido, verificamos um forte diálogo das fontes[22] entre a Constituição, o Código Civil e a Consolidação das Leis do Trabalho.
Sílvio de Salvo Venosa[23]:
“O fato de este Código Civil mencionar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato nesse artigo sob epígrafe e a açular os contratantes a portar-se com probidade e boa-fé (art. 422) abre toda uma nova perspectiva no universo contratual, embora os princípios já fossem plenamente conhecidos no passado. Trata-se de aplicação moderna da nova dialética do Direito.”
O professor Venosa coloca a questão do art. 421 como um novo marco das relações contratuais, apesar dos parâmetros estabelecidos por uma função social, segundo o professor, já existisse, é justamente manter uma relação contratual equilibrada, com probidade e boa-fé. Para ele, o artigo 421 traça novas fronteiras à dialética do Direito. Agora as discussões são outras, as decisões são de outra natureza. Fazendo uso da terminologia de Luhmann, o sistema jurídico recebe novos inputs e precisa aperfeiçoar a sua comunicação.
Jones Figueirêdo Alves[24]:
“A concepção social do contrato apresenta-se, modernamente, como um dos pilares da teoria contratual. Defronta-se com o vetusto princípio pacta sunt servanda, exaltado, expressamente, pelos Códigos Civis francês (art. 1.134)[25] e italiano (art. 1.372)[26], para, atenuando a autonomia da vontade, promover a realização de uma justiça comutativa. A moldura limitante do contrato tem o escopo de acautelar as desigualdades substanciais entre os contraentes, como adverte José Lourenço, valendo como exemplo os contratos de adesão. O negócio jurídico haverá de ser fixado em seu conteúdo, segundo a vontade das partes. Esta, todavia, apresenta-se autorregrada em razão e nos limites da função social, princípio determinante e fundamental que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 1º da CF), deve prescrever a ordem econômica e jurídica. ”
O pacta sunt servanda, não está extinto[27]. Contratos foram feitos para serem honrados. O que muda é a correlação de forças para o cumprimento contratual. Aqui Jones Figueirêdo Alves, resgata o Code Civile e o Codice Civile para exemplificar que o nosso Código Civil inova atrelando a questão da função social aos contratos. Lembra também que a questão não se pauta na relação contratual, todos continuam a fazer negócios com que quiser (autonomia da vontade) mas o conteúdo do negócio jurídico deve ser observado.
Nelson Rosenvald[28]:
“A função social não coíbe a liberdade de contratar, como induz a dicção da norma, mas legitima a liberdade contratual. A liberdade de contratar é plena, pois não existem restrições ao ato de se relacionar. Porém, o ordenamento jurídico deve submeter a composição do conteúdo do contrato a um controle de merecimento, tendo em vista as finalidades eleitas pelos valores que estruturam a ordem constitucional.”
Da mesma forma, o professor Rosenvald ilustra que a liberdade de contratar está garantida, o que deve ser observado na relação contratual é seu conteúdo e para tanto faz uso do termo “controle de merecimento”. Este controle de merecimento é o que baliza o negócio jurídico em direção à sua função social. Finda-se o individualismo? Pensamos que não. A individualidade está preservada, bastando, para isso, que o negócio jurídico seja permeado nos limites da Lei. Posso fazer um contrato de trabalho onde eu abro mão do salário? Sim, posso. Mas ele é um contrato válido perante a lei[29]? Não remunerar em um contrato formal de trabalho tem merecimento?
Para os doutrinadores que apresentamos, a função social do contrato e sua redação no art. 421 é um avanço em nosso meio social e ruma para um Estado de Direito.
Segundo TIMM[30], um estudo feito por Armando Castelar Pinheiro mostra que 70% dos juízes entrevistados prefere fazer “justiça social” a aplicar pura e simplesmente a “black letter law” e os termos do contrato.
No sistema de busca do STJ podemos encontrar, entre 2003 e agosto de 2012, 58 acórdãos que são decididos com base na função social dos contratos.[31]
Já em 20/11/2003, ou seja, menos de um ano de vigência do novo Código Civil a Ministra Nancy Andrighi julga o recurso especial REsp 476649 / SP citando explicitamente em seu parecer a função social do contrato.
Inferimos disso, que existe uma forte tendência do judiciário a fazer uso, em seus julgamentos, da questão da função social na relação contratual.
Há também os que observam que a redação do art. 421 é despropositada e que este dispositivo fere a liberdade contratual e fere a livre circulação de riqueza. Neste rol citamos a professora Daisy Gogliano e passamos a expor o seu ponto de vista.