Indiscutivelmente, o ser humano passa por uma crise. Não sem precedentes, pois sua história sempre foi marcada por violência e conflitos. Porém, também inquestionavelmente, o ser humano avança como espécie, ao menos no que tange ao que é material: constrói uma civilização cada vez mais desenvolvida, complexa e tecnológica. O que é assustador, neste processo, é que o desenvolvimento psíquico, de convivência civilizada, não acompanha esta crescente complexização material e estrutural. Pode-se dizer que grande parte da população avança inclusive intelectualmente, porém não se adquirem recursos mais competentes de relacionamento, de convivência, de combate às mazelas, e por aí segue uma lista imensa.
Pelo contrário, justamente ao lado dos avanços, assiste-se à degradação do homem, da moral, da ética, dos valores. Assiste-se a pessoas cada vez mais pobres e outras cada vez mais ricas, sem que aparentemente haja real preocupação ou consideração. Vide que ao passo que pessoas não têm o que comer, outras compram quadros de mais de 300 milhões, e ainda outras fazem uso do dinheiro público ao bel prazer, numa clara dissociação, até mesmo numa atitude perversa.
Realmente, pode-se pensar que vivemos numa época perversa. Se já a vivemos anteriormente, se sempre fomos, não é questão de discussão neste trabalho, embora seja interessante levantar a discussão eterna: seria o ser humano, constitucionalmente, fadado ao egoísmo, à destruição e à autodestruição? Seria ele geneticamente determinado, e a luta contra isto está fadada ao fracasso?
Independentemente destas e de tantas outras perguntas irrespondidas, talvez irrespondíveis e tanto pesquisadas, note-se que, ao longo dos séculos, o ser humano especializou-se em tentar viver em sociedade, tendo em vista que, como muito propagado, é um ser político e social. E, para isso, precisa organizar este caos que traz consigo. Aí entram a autoridade, os pais, as instituições, a religião, o Estado, a educação e, no final desta cadeia, quando nada mais funciona, temos o Direito Penal, que aí está para punir aquele cidadão em relação ao qual nenhuma medida anterior funcionou. Em uma análise rasa e apressada sobre um sujeito que comete um crime, poderíamos avaliar que falharam os pais, falharam as instituições de apoio, falhou a educação, falhou o Estado – falhou, quem sabe, sua genética, segundo algumas correntes – e cabe, portanto, ao Direito Penal, tratar de puni-lo.
Este texto visa, efetivamente, a analisar estas contingências que envolvem o ser humano que desvia das normas que permitiriam sua convivência em sociedade, e a estreita inter-relação com o Direito Penal. Note-se que são muitos esses indivíduos que vivem à margem das regras sociais, e este número cresce a cada dia, levando a questionar se o normal ao ser humano, realmente, é seguir regras, ou, pelo contrário, é transgredi-las.
Não é necessário frisar o quanto o tema é atual. Torna-se evidente a cada dia que, se anteriormente o foi a depressão, o mal deste século é a agressividade, seja ela levada a termo em forma de violência física, com ou sem morte, seja a agressividade contra o outro em forma de desconsideração, de tomar o que é do outro, do desrespeito, de não levar em conta a existência e os sentimentos, a não ser os próprios. Mas é um não levar em conta com nuanças sádicas, de desprezo, de intolerância, o que leva a pensar, efetivamente, que somos uma espécie em vias de destruição.
E será que o Direito Penal é responsável por corrigir isso? Obviamente que de modo algum. Este estudo pretende desmistificar este conceito, arraigado no Direito e na seara leiga, que se embrenha nas salas de aula e dificulta uma discussão aprofundada e enriquecedora da matéria.
Muito se discute sobre a destruição ambiental, cujas consequências seriam a destruição do ser humano. Entretanto, antes disso, é imprescindível que se atente para a destruição do ser humano pelo ser humano, que é grave e, possivelmente, muito mais breve. Ela ocorre todos os dias. As instituições estão sendo corroídas, as pessoas, contaminadas. Uma reflexão crítica e cuidadosa deve ser empreendida, agora, o quanto antes.
Se não é o Direito Penal o responsável por corrigir este caos, seria o Estado, por meio de programas de educação? É importante notar que a educação formal inicia pelos seis, sete anos. Será que, nesta idade, a criança já não formou alguns dos seus valores de vida, seu caráter, seu modo de ver o mundo? Esta e outras questões são abordadas ao longo deste estudo, que pretende tecer um apanhado psicanalítico, utilizando autores específicos, a fim de tentar entender o sujeito criminoso, para assim pensar o contexto criminal, hoje, e o Direito Penal contemporâneo.
2. Teoria Psicanalítica e o ambiente
A contingência de um indivíduo constituir-se psiquicamente saudável, ou não, é explicada por várias teorias, segundo diferentes perspectivas.
Ora o indivíduo é considerado resultado de seu material genético, e dentro disso, os comportamentos desviantes e criminosos são considerados como resultado de transmissão genética e de alterações biológicas; ora é considerada decorrência de sua relação com o ambiente, portanto, com um outro humano, que lhe favorece ou prejudica o desenvolvimento; e, ainda, há correntes que consideram o desenvolvimento e o comportamento humanos relacionados diretamente a uma interdependência entre genética e ambiente, entre hereditariedade e interação com outros indivíduos da espécie.
Neste estudo, no que se refere a teorias que intentam explicar o indivíduo, privilegiar-se-ão as bases teóricas que norteiam a vertente da Psicanálise representada por Freud[1] e por pós-freudianos que contribuíram extensamente ao assunto, tais como S. Bleichmar, J. Laplanche, assim como constructos de J. Bowlby.
Neste contexto, entende-se que o ser humano nasce com montagens adaptativas, biológicas, porém é apenas no contato com o outro que ele se torna humano, mediante a constituição de um psiquismo. Ao longo de um desenvolvimento esperado, ocorrerá, no contato com este outro, a fundação de um inconsciente e a formação de um aparelho psíquico que irá se complexizar. Tratam-se de conceitos extensivamente trabalhados e retrabalhados ao longo das obras e da produção teórica de Silvia Bleichmar e Laplanche.
Laplanche (Novos fundamentos para a psicanálise, 1992) aborda a relação mãe-filho, a relação de um adulto com uma criança, e destaca essa como uma relação originária, que irá constituir o sujeito psíquico. Nesta relação, entra a criança, um ser que apresenta montagens somatopsíquicas e excessivamente aberto ao mundo e desadaptado, em confronto com um adulto, portador de um inconsciente, e que acabará, na melhor das hipóteses, por contribuir para fundar o inconsciente e o aparelho psíquico deste ser. As especificidades de tal constituição irão determinar como cada indivíduo se comportará diante do mundo, mais tarde, inclusive como ele se comportará diante da lei e das normas civilizatórias como um todo.
Ainda sob viés psicanalítico, o desenvolvimento humano normal preconiza o estabelecimento de uma relação de apego entre a criança e outro ser humano (BOWLBY, 1988, 1989, 1990). Para Bowlby (1988), a referência a uma criança apegada diz respeito a uma forte disposição dela a buscar proximidade e contato com uma figura específica, principalmente quando está assustada, cansada ou doente. Ele enfatiza que essa busca pela proximidade em relação a um indivíduo claramente identificado e considerado mais apto para lidar com o mundo é bastante óbvia quando a pessoa está assustada, fatigada ou doente e tenta-se diminuir seu sofrimento com o conforto e o zelo (1989). Para o sociólogo Giddens (1996), a confiança básica estabelecida pela criança com um adulto é que lhe confere maiores ou menores condições posteriores de lidar com a angústia inerente ao viver. Neste sentido, entende-se que a vinculação com outro ser humano é base e constitutiva no ciclo evolutivo.
O ser humano, de fato, está inserido em uma sociedade e em uma cultura, que possuem padrões de funcionamento e normas de convivência. Para ser possível a vida em sociedade, portanto, é imprescindível que cada ser humano internalize tais normas de conduta e passe a ser um membro produtivo, eficiente e cumpridor de regras neste sistema.
Durante um desenvolvimento considerado funcional, sob um posto de vista que privilegia a interação entre humanos, o indivíduo é “ensinado” a conviver nesta sociedade. Na relação com um outro humano “castrado”[2], que tem internalizada a lei dentro de si, o sujeito se desenvolve com a noção de que é um indivíduo barrado, sujeito às leis civilizatórias. Tais premissas, dentro de si, são inquestionáveis, embora daí possam advir conflitos e sofrimento psíquico. Nas palavras de Freud:
E aqui, num ponto inesperado, emergimos do subterrâneo psíquico para a plena luz do dia (...) Tornou-se hábito dizer que nossa civilização foi construída à custa das tendências sexuais que, sendo inibidas pela sociedade, são, com efeito, em parte recalcadas, mas, em parte, tornaram-se utilizáveis em outros fins. Também temos admitido que, a despeito de todo o nosso orgulho por nossas conquistas culturais, não nos é fácil satisfazer os requisitos dessa civilização e sentir-nos à vontade nela, porque as restrições pulsionais impostas a nós constituem uma pesada carga psíquica (...) Freud em Angústia e Vida Pulsional (1932)
Deste modo, embora, para a Psicanálise, cada sujeito nasça com o caos dentro de si, – e para algumas searas específicas da Psicanálise o sujeito apenas torne-se humano a partir da interação com outro humano –, há que se recalcar este caos, há que, por assim dizer, “colocar rédeas” neste pulsional desordenado que é o inconsciente, para que assim as tendências humanas desprezíveis, e que são inerentes à espécie, sejam ordenadas e, deste modo, inaugure-se a possibilidade da civilização.
Em situações em que a interação com esse outro que deveria humanizar não ocorre de maneira favorável, quando este outro tem falhas na assimilação das normas da cultura, quando este outro possui falhas no recalcamento das pulsões destruidoras, é neste contexto que se abre possibilidade para que um sujeito se desenvolva de modo considerado desviante. Aquilo que, para alguns, em um desenvolvimento psíquico esperado, teve que ser renunciado em nome de uma maior complexização psíquica, para outros é possibilidade real.
Para fins de exemplificar o acima exposto: por mais que deseje muito um carro, o indivíduo funcional apresenta condições de adaptar-se à realidade e, caso essa realidade não lhe permita tê-lo, ele terá condições psíquicas de postergar este desejo e dirigir seus esforços para conquistar tal objetivo por meios socialmente aceitáveis. Já o sujeito que não tem esta lei internalizada dentro de si, simplesmente permanece funcionando sob o princípio do prazer – conceito freudiano[3] – e este desejo pelo carro não é mediado pela realidade. Ele quer, ele terá, não importando de que meios ele se utilizará para obter. O outro se torna um meio para consecução de objetivos, o outro é alienado. O que importa é o próprio desejo.
Todos os dias o homem depara-se, também, com a falha, pois esta é inerente à espécie e exigência ao amadurecimento e desenvolvimento sadios. O sujeito cujo desenvolvimento deu-se dentro do esperado, acata a norma e a lei, conforme entende WARD (2005): “Ao crescer, renunciamos a parte do narcisismo. Abrimos mão de certos objetos, crenças e formas de gratificação. A megalomania e as fantasias infantis de auto-suficiência se desfazem. Somos obrigados a perceber que existem outras pessoas no mundo e que nem todas são como eu”. (p. 21).
Sob esta perspectiva teórica, o comportamento criminoso e/ou patológico pode ser compreendido como decorrência de uma falha no desenvolvimento esperado, quando, por inúmeras razões, ao aparelho psíquico não foi possível complexizar-se de modo a introjetar as normas civilizatórias. A lei da sociedade, nestes casos, não importa, o que importa é a lei do desejo do indivíduo.
Uma questão que poderia surgir, a partir do que foi delineado até aqui, diz respeito às razões por que o ser humano, a partir da subserviência às normas parentais, submeter-se-ia, na vida adulta, às normas da cultura. Este deslizamento realmente ocorre, e é defendido por vários autores. Bowlby (1990) assinala que o comportamento de apego não desaparece com a infância, mas persiste durante a vida inteira:
Durante a adolescência e a vida adulta, uma certa proporção do comportamento de apego é comumente dirigido não só para pessoas fora da família, mas também para outros grupos e instituições (...) Uma escola ou colégio, um grupo de trabalho, um grupo religioso ou político podem passar a constituir para muitas pessoas uma “figura” de apego subordinada e para algumas pessoas até a “figura” de apego principal. (p. 222).
Igualmente, nas palavras de Fromm, 1960, citado por Bauman (2001):
Quando cada indivíduo deve ir em frente e tentar sua sorte, quando ele tem que nadar ou afundar – a busca compulsiva da certeza se instala, começa a desesperada busca por soluções capazes de eliminar a consciência da dúvida – o que quer que prometa assumir a responsabilidade pela certeza é bem-vindo. (p. 28).
Também para Freud[4], a busca na adultez por outras figuras de autoridade a quem se apegar tem suas origens ainda na infância, e está ligada à fragilidade e vulnerabilidade inerentes ao humano.
Deste modo, o acato à autoridade, na infância relativo aos pais/professores e adultos importantes, na vida adulta desliza para outras figuras de autoridade. O Estado pode funcionar como esta metáfora parental. O indivíduo funcional segue as normas da cultura, sintetizadas na figura do Estado, ou da religião, assim como nos seus primórdios seguia as normas da família.
Mesmo o indivíduo considerado socialmente ajustado, entretanto, não prescinde dos denominados controles sociais. As regras impostas pela sociedade, assim como seu sistema de recompensa e punição, intentam obter o comportamento humano desejado e, assim, em tese, garantir a ordem social e a possibilidade de existência humana.
Convém reafirmar, neste ponto, que o sistema penal, por si só, não poderia ser considerado o único responsável pela segurança em sociedade e não é, de modo, algum, garantia de bem-estar social. O ser humano constitui-se em um seio familiar, e este se encontra em uma determinada cultura.
Em função disso, o comportamento desviante não pode ser considerado resultado simples e direto do sistema penal, e sim decorrência dos meandros de nossa civilização atual e de como o indivíduo nasce e se desenvolve neste meio. E, mais que isso, em razão da qualidade de humano, tendo em vista que é inerente à espécie o estreito limiar existente entre o equilibrado e saudável e o patológico e selvagem.
Além disso, considerando a teoria acima exposta, pode-se entender que um indivíduo sadio teve, além de suas necessidades básicas satisfeitas, um ambiente familiar ponderado e razoavelmente equilibrado, pôde contar com figuras adultas confiáveis e amorosas e, essencial, também foi frustrado.
A frustração, sublinha-se, é primordial ao desenvolvimento. O indivíduo nasce funcionando segundo o princípio do prazer, teorizou Freud, conforme exposto acima, porém basta observar uma criança que isso é evidente. O que se quer, se que instantaneamente, não há capacidade de postergação. Há, porém, que construir, ao longo do desenvolvimento, meios para lidar com isso, porque a frustração é realidade diária para todos nós. Ou seja, há que se saber lidar com a frustração.
Ocorre que há uma cultura cada vez mais premente de dar. Dar a quem não tem. Não oferecer recursos para que a pessoa desenvolva-se e busque meios para adquirir; não, ela recebe. Desde pequena, ela sabe que aquilo é seu, de direito. Em um psíquico em constituição, isto é perigoso, porque a mensagem registrada é: eu mereço, a sociedade tem que me dar. E se a sociedade não me dá o que eu almejo de direito, eu cresço, e eu continuo me sentindo em pleno direito. Daí para o roubo, é um passo.
Traduzindo: as políticas do Estado, além da família, têm, sim, muita influência sobre a constituição psíquica de sua população. E, da forma como estão sendo conduzidas, infantilizando cada vez mais a população, seja proibindo-a de escolher seus programas de TV, seja oferecendo recursos sem exigir nada em troca, sejam as autoridades com seus exemplos inescrupulosos, seja a ineficiência das punições, seja a tolerância com o descumprimento das normas, e uma gama de outros exemplos esdrúxulos, estaremos contribuindo para constituir outros milhões de perversos, os mesmos cujos crimes estaremos tentando combater no futuro e que estarão, eles próprios, educando outros milhões de perversos, e condenando nossa civilização à destruição, antes mesmo que o caos por decorrências ambientais se instale.
Notas
[1] Freud, ao longo de sua obra, passou a conceber cada vez menor importância à função do outro humano na constituição psíquica, atendo-se a questões de ordem filogenética.
[2] Aqui, o termo castração ganha a significação lacaniana, encontrada em Ward (2005) como o representante da Lei enquanto instituição que funda a proibição ao incesto, na idade adulta estendida a outras formas de normas e regras sociais e que têm por base o sentido de que o ser humano é regido por limites que o ascedem à convivência na civilização, constituindo-se como interditado.
[3] Para Freud, o ser humano busca incessantemente, desde o nascimento, a extinção do desprazer e é movido por buscar a felicidade plena, aquela que o afasta de qualquer tipo de sofrimento (FREUD, 1937-1939/1996).
[4] Sobre o tema encontram-se escritos do autor nas seguintes obras: 1913-1914/1996, 1927-1931/1996, 1937-1939/1996.