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O conceito de homem no jovem Marx (1843-1846)

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2. A antropologia filosófica do jovem Marx

2.1. Formulando a indagação primordial

A pergunta que nos propusemos a responder, através da presente pesquisa, é a indagação primeira da antropologia filosófica (e por que não dizer da filosofia?[42]): que é o homem? Contudo, formulamos tal questão circunscrevendo-a ao pensamento de um único filósofo: Karl Marx. Não só. A delimitação que operamos, restringe o nosso campo de investigação ao período de 1843 a 1846, ou seja, ao jovem Marx[43] (entre os seus 25 e 28 anos de idade). Haverá um conceito de homem no jovem Marx?

A perquirição sobre o conceito de um objeto determinado equivale à procura de sua essência ou natureza.  Por outras palavras, a investigação acerca do ser de um ente determinado, equivale à procura de sua essência, ainda que se trate de uma essência lógica (porquanto a essência real, na filosofia contemporânea, já desde Kant, seja incognoscível). No entanto, a questão do ser, dentro da antropologia (uma das ontologias[44] regionalizadas), é uma propositura diante do espelho, vez que o homem, consoante Heidegger, é o único ser capaz de propor tal questão (SILVA, 1994). Na antropologia filosófica, sujeito e objeto coincidem. Qual é a essência do ser humano?

E, aqui, como acima referido, temos que restringir um pouco mais a nossa indagação: qual é a essência do ser humano na perspectiva do jovem Marx? Ou ainda antes disso: o jovem Marx concebe o homem como possuindo uma essência? Qual seria esta essência?

Por óbvio que, diante de tudo que já foi antecipado no capítulo I (com a aposta de Marx no materialismo antropológico de Feuerbach), o método dialético marxiano difere, fundamentalmente, do de Hegel, num crescendo – isto pelo fato de que a sua concepção vai se delineando e aprofundando, paulatinamente, ao longo de cada investigação e de cada influência absorvida pelo seu genial pensamento (cujo ápice, para nós, em nossa restrita pesquisa de sua filosofia juvenil, estará n’A Ideologia Alemã, e, para além dela, por certo e mais completamente, n’O Capital, passando pela famosa Introdução de 1857). Marx, exordialmente sob a contundente influência feuerbachiana, não partirá da Ideia para atingir o real, como uma sua externalização; pelo contrário, para Marx, “o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem” (MARX, 1996, p. 140).

Como destaca Abbagnano (1970, p. 46), “O ponto de partida de Marx é a reivindicação do homem existente, na totalidade dos seus aspectos, feita já por Feuerbach”. Em verdade, o objeto marxiano é o homem vivo[45], portanto um homem necessariamente histórico, um homem de sua época: um homem vinculado à sociedade burguesa. Este objeto – a sociedade capitalista ou o homem na sociedade capitalista – possui uma “existência objetiva” (NETTO, 2011, p. 21), que independe do sujeito (pesquisador) para existir – malgrado este fato, não se pode olvidar que “o sujeito está implicado no objeto” (NETTO, 2011, p. 23), consoante já referido alhures. Assim, o sujeito, em sua pesquisa, deve superar a aparência do objeto. Ainda que não possa ir além do fenômeno, deve buscar a essência deste. Mais especificamente:

O objetivo do pesquisador, indo além da aparência fenomênica, imediata e empírica – por onde necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa aparência um nível da realidade e, portanto, algo importante e não descartável –, é apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto. Numa palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto (NETTO, 2011, p. 22).

Acerca da essência do homem, em Marx, importa referir dois estudos relativos ao tema. O primeiro deles é o de Nicola Abbagnano, que assim resume os pontos principais da antropologia marxiana:

1) Não existe uma essência ou natureza humana em geral. 2) O ser do homem é sempre històricamente condicionado pelas relações em que o homem entra com os outros homens e com a natureza, pelas exigências do trabalho produtivo. 3) Estas relações condicionam o indivíduo, a pessoa humana existente; mas os indivíduos por sua vez condicionam-se promovendo a sua transformação ou o seu desenvolvimento. 4. O indivíduo é um ser social. (ABBAGNANO, 1970, p. 53 – destacamos)

Vázquez (2011, p. 406), por sua vez, afirma que: “a) o homem tem uma essência; b) sua essência é o trabalho; c) essa essência só se realiza em sua existência como essência alienada; e d) portanto, a essência do homem está divorciada de sua existência” (destacamos). Não é difícil perceber o antagonismo entre as afirmações recortadas de ambos os autores referidos. Cada um deles, enxerga, sob perspectivas diversas, restritas às passagens transcritas, uma antropologia marxiana distinta. A pergunta que fica é: o homem possui ou não possui uma essência?

Acresçamos a esta indagação, uma outra, fruto de uma subsequente afirmação de Vázquez (2011, p. 406) – “às quatro proposições anteriores deveríamos acrescentar mais uma: e) a essência do homem nunca se deu efetiva, real ou historicamente”: alguma vez, na história, o homem se apropriou de sua essência? Ou, ainda: se a essência do homem nunca se deu efetiva, real ou historicamente, como viveu ou sobreviveu o homem até agora?

Feitos estes prolegômenos, podemos nos aventurar no universo das obras do jovem Marx.

2.2. O jovem Marx e sua funda feuerbachiana contra o gigante Hegel

Os Manuscritos de Kreuznach (como é conhecida a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel) são o registro de uma luta entre dois combatentes desiguais. De um lado, temos o gigante Hegel, arrojado sistematizador da filosofia (considerado o autor do terceiro sistema completo de filosofia, depois de Platão e Aristóteles), grande lógico e conhecedor da economia política de seu tempo; e de outro, um jovem filósofo (25 anos!), ex-editor de jornal em franca luta contra o Estado prussiano, hegeliano de esquerda, sequer iniciado no estudo da economia política. Frederico (2009, p. 51) apresenta uma imagem deste momento:

Os Manuscritos de Kreuznach formam um momento único na história da filosofia, momento em que um pensador ainda imaturo enfrentou, num combate decisivo, a obra de um filósofo consagrado, no seu momento de mais extremado conservadorismo. E não se intimidou com a estatura de seu adversário. Ao contrário, encarou-o com irreverência, seguindo o desenrolar de sua argumentação por meio de citações do texto que se faziam acompanhar de uma refutação indignada e ferina.

Sem o instrumental necessário para tal confronto intelectual, Marx serve-se, em grande parte, do materialismo antropológico de Feuerbach (com o qual este apresenta a sua crítica da religião), como também da filosofia política rousseauniana, para tentar realizar a pretendida crítica da política – política esta consubstanciada no Estado prussiano justificado por Hegel. Ainda assim, em muitos momentos, Marx permanecerá nas teias da filosofia idealista hegeliana, embora com boas perspectivas de superação de tal idealismo estacionário que, ao fundir ser e pensar, real e racional, finito e infinito, acaba por aceitar toda a sorte de injustiças sócio-políticas do momento[46].

É de se destacar que religião e política são os grandes temas debatidos pelos hegelianos de esquerda. Relativamente à crítica da religião, o jovem Marx, na ocasião (1843), já a entendia terminada. É o que afirma nas primeiras linhas da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução (MARX, 2010a, p. 145), texto que analisaremos mais à frente: “Na Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica”. O responsável: Feuerbach[47]. Efetivamente, a filosofia feuerbachiana é impetuosamente contundente e implacável na denúncia da inversão mistificadora e teológica de Hegel. Restava, agora, estendê-la à crítica da política, “entendida como crítica do Estado político” (FREDERICO, 2009, p. 53).

Debruçando-se sobre os Princípios da Filosofia do Direito, o jovem Marx transcreve uma nota elucidativa de Hegel, que, bem analisada, sinteticamente exprime a estrutura da obra:

O desenvolvimento imanente de uma ciência, a dedução de todo seu conteúdo a partir do simples Conceito, mostra a peculiaridade de que um único e mesmo conceito – aqui a vontade –, que, inicialmente porque é o começo, é abstrato, se conserva, mas condensa suas determinações igualmente apenas por si mesmo e, desse modo, ganha um conteúdo concreto. Esse é o momento fundamental da personalidade primeiramente abstrata no direito imediato, momento que se aperfeiçoou mediante diferentes formas de subjetividade e que aqui, no direito absoluto, no Estado, na objetividade da vontade plenamente concreta, é a personalidade do Estado, sua certeza de si mesmo – esta última, que suprassume todas as particularidades em seu Si-mesmo simples, interrompe a ponderação dos argumentos e contra-argumentos entre os quais se deixa oscilar para cá e para lá, resolvendo-os por meio do: Eu quero e dando início a toda ação e realidade. (MARX, 2010a, p. 46)

Ora, trata-se da dialética hegeliana que, a partir do Conceito deduz, de suas próprias entranhas, todo conteúdo concreto que se observa na realidade empírica. Não será nenhuma surpresa se, para fazer caber toda a realidade na Vontade – conceito a priori de sua filosofia do direito –, Hegel tenha que fazer algumas “adaptações” conceituais para poder admitir o concreto percebido, como suprassunção de “todas as particularidades”. O Conceito de Vontade é o start que resultará, in fine, no conteúdo único do “Eu quero” – sendo este proferido pela boca do monarca prussiano (que, por sua vez, dará o “início a toda ação e atividade”[48]). Acerca de tal personificação da razão na abstração do arbítrio da vontade monárquica, afirmada por Hegel, Marx (2010a, p. 47) aduz: “L’état c’est moi”.

Este é o ponto. Como é possível que Hegel, em pleno Século XIX, trinta anos após a queda da Bastilha, insista na justificação da monarquia prussiana? Isto é inaceitável para os hegelianos de esquerda e, consequentemente, para Marx (que analisa a filosofia do direito hegeliana, meio século depois da Revolução Francesa). Destarte, criticando tal mistificação idealista de Hegel e utilizando-se da inversão materialista feuerbachiana, Marx reconduzirá o homem à sua condição de sujeito.

De fato. Tal como na crítica à religião de Feuerbach – para quem “Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem” (FEUERBACH, 2009, p. 44) –, na crítica marxiana da política há a denúncia à inversão hegeliana de sujeito e predicado: “A Substância mística se torna sujeito real e o sujeito real aparece como um outro, como um momento da Substância mística” (MARX, 2010a, p. 44); “O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem” (MARX, 2010a, p. 50); “Em vez de o Estado ser produzido como a mais elevada realidade da pessoa, a mais elevada realidade social do homem, ocorre que um único homem empírico, uma pessoa empírica, é produzido como a mais alta realidade do Estado” (MARX, 2010a, p. 58); “O verdadeiro caminho a ser percorrido está invertido. O mais simples é o mais complexo e o mais complexo o mais simples. O que deveria ser ponto de partida se torna resultado místico e o que deveria ser resultado racional se torna ponto de partida místico” (MARX, 2010a, p. 59-60); “Ele faz da causa o efeito, e do efeito a causa, do determinante o determinado e do determinado o determinante” (MARX, 2010a, p. 115). Tais inversões místicas da realidade, que Marx afirma estarem resumidas no § 262, exprimem “todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em geral” (MARX, 2010a, p.31).

Efetivamente, nos comentários ao referido parágrafo, Marx esclarece que família e sociedade civil não são produções da Ideia, mas “[...] partes reais do Estado, existências espirituais reais da vontade; elas são modos de existência do Estado; família e sociedade civil se fazem, a si mesmas, Estado. Elas são a força motriz. Segundo Hegel, ao contrário, elas são produzidas pela Ideia real” (MARX, 2010a, p. 30).

Esta inversão que o idealismo hegeliano opera, acaba por produzir uma passiva recepção da realidade empírica para adequá-la à ideia ou ao conceito de Estado (tido este como o monárquico prussiano). Realidade e racionalidade são idênticas, segundo a máxima hegeliana. Tal concepção filosófica consiste numa derivação da própria Lógica hegeliana, que, por sua vez, consubstancia-se numa Teologia cristã[49]. Em verdade, o que Hegel produz com sua inversão mística, é a “ontologização da Ideia, com a consequente desontologização da realidade empírica” (ENDERLE, 2010, p. 19). Assim, a crítica marxiana não trataria diretamente da lógica hegeliana, mas de seus fundamentos, seu estatuto ontológico (ENDERLE, 2010, p. 20): Hegel descola a lógica da realidade empírica, autonomizando-a – a lógica antecede a realidade empírica e o que desta colhe é arbitrário.

Combatendo uma tal perspectiva idealista mistificada e exortando a família e a sociedade civil como a “força motriz” do Estado, Marx aproxima-se da filosofia política rousseauniana, segundo a qual o povo ou a multidão (consoante expressão também utilizada por Rousseau e por Hegel, e que será renovada por Hardt e Negri[50]) é a gênese da vontade geral, que se exercita pela soberania caracterizadora do Estado, convencionalmente constituído (ROUSSEAU, 1997a). O Estado é constituído por um contrato social. Como teria se dado tal contrato social, que marca a passagem do status naturae para o status societatis?

Na segunda parte do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, Rousseau (1997b, p. 87) afirma com eloquência: “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”[51]. Tal suposto ato inaugural, que tantas desgraças teria trazido à humanidade, segundo Rousseau, poderia ter sido coibido por alguém que, investindo contra a cerca, gritasse: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!”[52] (ROUSSEAU, 1997b, p. 87). Da mesma forma, a imagem de tal injustiça primordial é reiterada, em O Contrato Social, num indisfarçado discurso democrático radical e revolucionário: “Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la”[53] (ROUSSEAU, 1997a, p. 53).

A exortação da democracia direta, como expressão da vontade geral, tal como em Rousseau, é também reiterada por Marx: “A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo sua essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como obra própria deste último” (MARX, 2010a, p. 50).

A inspiração rousseauniana é indisfarçável: “Aqui, na filosofia do direito, o nosso objeto é, acima de tudo, a vontade geral” (MARX, 2010a, p. 76). Destarte, com aportes das filosofias de Rousseau e Feuerbach, Marx pode, com segurança, aferir o seguinte: “Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição” (MARX, 2010a, p. 50).

A democracia direta, como expressão da vontade geral, portanto, é a verdade de todas as formas de Estado. Isto porque, na democracia, o princípio formal do Estado (a constituição, o Estado político) e o princípio material (o povo, a vontade geral, o Estado real) estão unificados. Na democracia, a essência da sociedade civil não se encontra alienada no Estado político (sendo este, autônomo e desvinculado de sua causa real). A democracia reconcilia o homem consigo mesmo. A democracia é “a verdadeira unidade do universal e do particular” (MARX, 2010a, p. 50). Enquanto para Hegel, povo (sociedade civil) e Estado são extremos de um silogismo, cuja síntese é encontrada nos estamentos (burocracia, funcionários públicos executivos, poder legislativo), para Marx, eles são extremos reais e, como tal, “não podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos reais” (MARX, 2010a, p. 105).

Nestes Manuscritos de Kreuznach, Marx trabalha com um dualismo sem mediações[54], que se resolve numa vitória aniquiladora da sociedade civil sobre o Estado político. De fato, “A sociedade civil, como Estado real, deve realizar em si mesma sua determinação ‘genérica’, em vez de receber do Estado político uma ‘determinação alegórica’” (ENDERLE, 2010, p. 25). É assim que “na verdadeira democracia o Estado político desaparece” (MARX, 2005a, p. 51).

Contudo, na realidade empírica, embora Marx encontre, na democracia, a solução das contradições entre sociedade civil e Estado político, este antagonismo persistirá como um problema de ordem política (ENDERLE, 2010, p. 26). Qual a gênese deste antagonismo, desta alienação política que esvazia e dessencializa o humano?

2.3. A emancipação humana para além da emancipação política: a questão judaica

Ainda em Kreuznach, em sua lua-de-mel, Marx inicia a redação de uma resenha crítica de dois textos de Bruno Bauer (reunidos num folheto intitulado Die Judenfrage [A questão judaica]), que, acabará por ser concluída em Paris, no mês de dezembro de 1843 e publicado nos Anais Franco-Alemães (em sua edição única de fevereiro de 1844). A discussão travada entre Marx e Bauer refere-se à questão da restrição cívico-política dos judeus alemães e à possibilidade de sua emancipação. Netto (2009a, p. 22) apresenta uma síntese do problema:

Sob a ocupação francesa, os judeus experimentaram na Renânia a igualdade civil. Mas, subsequentemente, o processo restaurador patrocinado pela Santa Aliança restabelece para a Confederação Germânica o conceito de Estado cristão – e, pelo édito de 4 de maio de 1816, aos judeus fica vedado o exercício de funções públicas em toda a Confederação. Nas três décadas seguintes, os judeus batem contra as restrições e constrangimentos decorrentes do édito e, na abertura dos anos de 1840, a questão dos seus direitos cívico-políticos entra na ordem do dia: converte-se numa reivindicação política sustentada pelos liberais.

A tese de Bauer é a de que os judeus não podem reivindicar do Estado prussiano que deixe de exigir uma filiação religiosa cristã para o exercício de direitos, já que os próprios judeus não renunciam, eles mesmos, à sua filiação religiosa judaica. A solução baueriana não é a conversão dos judeus ao cristianismo, mas a renúncia de ambos, judeus e cristãos, à sua religião “em favor de um racionalismo ilustrado e idealista” (NETTO, 2009a, p. 23). Contraditando a tese de seu amigo, cuja base é religiosa, o jovem Marx afirmará que a emancipação política não está condicionada à emancipação religiosa (a exemplo do Estado laico francês [1789] e norte-americano [1776]) e que a emancipação política não garante a emancipação humana.

A questão é deslocada para o campo político. Marx demonstra que o Estado político é tão dualista quanto a religião, em sua oposição à sociedade civil. A emancipação religiosa ou a emancipação política não extingue o dualismo religioso estatal entre a vida individual e a vida genérica (política, civil). Não sem razão, a Declaração de 1789 distingue os direitos do homem (vida individual) e os direitos do cidadão (vida política). Trata-se, em verdade, da expressão deste dualismo religioso, que atomiza os membros da sociedade civil, tornando-os interessados apenas no gozo dos seus direitos civis. De fato, “Toda a emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, a indivíduo egoísta independente; por outro, a cidadão, a pessoa moral” (MARX, 2009a, p. 71).

Malgrado a constatação de que a emancipação política da burguesia, com o advento da Revolução de 1789, é um avanço[55], no sentido de superação do Ancien Régime, não resulta, ainda, numa efetiva emancipação humana. Esta se encontra para além da emancipação política:

Só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais –, se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas forces propres [forças próprias] como forças sociais e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política – [é] só então [que] está consumada a emancipação humana (MARX, 2009a, p. 71-72).

Como se vê, para o jovem Marx, a luta pelos direitos civis, em busca da emancipação política, não resolve o constrangimento humano em sua alienação no Estado político. A emancipação política, consoante Frederico (2009, p. 101), “implica uma conservação de interesses particularistas à margem do interesse coletivo, mantendo a cisão entre o homem e o cidadão”[56]. A efetiva emancipação humana somente é atingida com a absorção do cidadão abstrato pelo homem individual, “na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais”, de modo a tornar-se um “ser genérico”, ou seja, um ser social, um “ser genérico solidário com os seus semelhantes” (FREDERICO, 2009, p. 99).

Tal ensaio marxiano é finalizado com considerações sobre o culto judaico do dinheiro. Enquanto Max Weber encontrará, na ética protestante, o espírito do capitalismo, Marx, seguindo as reflexões de Moses Hess – para quem o dinheiro é “a essência alienada do homem” (FREDERICO, 2009, p. 101)[57] –, o identifica nos fundamentos do judaísmo: “Qual é o fundamento mundano do judaísmo? A precisão prática, o interesse próprio (Eigennutz). Qual é o culto mundano do judeu? O tráfico (Schacher). Qual é o seu deus mundano? O dinheiro” (MARX, 2009a, p. 75).

Este fundamento mundano do judaísmo, universalmente disseminado pelo desenvolvimento histórico, é “um elemento antissocial”, em cujo “extremo atual [...] necessariamente tem que se dissolver” (MARX, 2009a, p. 75).

2.4. O proletariado como sujeito da revolução social emancipadora

Entre dezembro de 1843 e janeiro de 1844, em Paris, Marx retoma os Manuscritos de Kreuznach, escrevendo-lhe uma introdução[58] contundente, num estilo nitidamente panfletário. Neste texto, muitas vezes comparado ao Manifesto do Partido Comunista – muito embora numa linha ainda feuerbachiana, consubstanciando-se num manifesto humanista –, o jovem Marx (nos seus 25 anos) apresenta-se como um grande autor, seguro de si, que se expressa por frases retumbantes[59], ideias claras e linguagem precisa. Algumas loas são espargidas por Frederico (2009, p. 103): “Sem dúvida, é um dos textos mais bem escritos de toda a obra de Marx pela força de suas frases solenes, que produzem um efeito provocante e perturbador, deixando os leitores encantados com a ousadia intelectual do autor”.

As reflexões deste texto seguem a feuerbachiana proposta dos Anais franco-alemães, qual seja a de buscar a concretização da filosofia, com a “aproximação entre a filosofia alemã e o movimento político francês” (FREDERICO, 2009, p. 104). Se nos Manuscritos de Kreuznach, escritos no contexto psicológico e geográfico da “miséria alemã”, a emancipação do homem é atingida na democracia direta, que liberta a sociedade civil considerada em bloco; na Introdução, Marx encaminha-se para o reconhecimento de um novo sujeito revolucionário, destacado do âmbito complexo da sociedade civil: o proletariado. Resultado evidente do impacto que os ares revolucionários de Paris, com seu ativo movimento operário, imprimiram na alma do jovem Marx – e do qual não se desconectará pelo resto de sua vida.

Feuerbach, que se batia contra o misticismo do idealismo hegeliano, apresentou uma direção a seguir: a de produzir uma síntese entre a filosofia alemã e o materialismo francês: “lá, onde o princípio escolástico e sanguíneo do sensualismo e do materialismo francês se une à fleuma escolástica da metafísica alemã, é lá somente que está a vida e a eternidade” (FEUERBACH apud FREDERICO, 2010, p. 20). Buscando a síntese entre cabeça e coração, atividade e passividade, Feuerbach vaticina: “O filósofo deve ter sangue galo-germânico (...) basta fazer da mãe uma francesa e do pai um alemão. A inspiração do coração (princípio feminino, sentido do sensível, sede do materialismo) é francesa; a inspiração da cabeça (princípio masculino, sede do idealismo) é alemã. O coração faz revoluções, a cabeça, reformas; a cabeça põe as coisas em posição, o coração as põe em movimento” (FEUERBACH apud FREDERICO, 2010, p. 20-21).

Marx segue esta senda aberta pelo pensamento de Feuerbach, que critica a especulação filosófica do idealismo hegeliano como via única à emancipação humana (esta também é uma perspectiva do pensamento do amigo Bruno Bauer, contra o qual Marx dirigirá, em parceria com Engels, A Sagrada Família), para afirmar a necessidade de efetivação da filosofia[60] (encontra-se aqui, já esboçada, a XI das Teses sobre Feuerbach, as quais analisaremos mais à frente). Este projeto feuerbachiano de união entre a filosofia alemã e o materialismo francês, como afirma Frederico (2010, p. 23), “ganha uma versão explosiva em Marx”. Isto pelo fato de estendê-la – para além da crítica da religião – à crítica da política, ao mundo profano: “[...] é tarefa da filosofia, que está a serviço da história, desmascarar a autoalienação em suas formas profanas. A crítica do céu transforma-se assim em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política” (MARX, 2010b, p. 31-32).

Nesse novo terreno, que demanda uma ação efetiva e modificadora das duras condições sociais dos princípios do modo de produção do capital, para além da mera especulação filosófica, o jovem Marx, sob inspiração de Cieszkówski e Hess, utiliza, pela primeira vez, a palavra práxis. Para o Marx da Introdução, “práxis é sinônimo de ação política revolucionária”, muito embora, ainda numa perspectiva idealista, tal ação seja “movida por uma ideia que lhe é exterior e que tudo conduz” (FREDERICO, 2009, p. 110).

É de se notar que a proposta de superação da alienação do homem, no âmbito do Estado político, a ser realizada por uma revolução, cujo sujeito desencadeador é o proletariado, encontra-se ainda numa perspectiva dualista (cabeça/coração[61]; filosofia/proletariado), sem mediações. Exclui-se, aqui, a negação da negação, pondo-se nas mãos do proletariado[62] – a classe social que materializa a alienação (“nada sou, e deveria ser tudo”) – o encargo da necessária revolução radical e violenta. O radicalismo reside na seguinte compreensão: “Ser radical significa agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano” (MARX, 2010b, p. 44). A violência necessária resulta do fato de que “a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas”, bem como que “o poder material tem de ser derrubado pelo poder material” (MARX, 2010b, p. 44).

O proletariado que encarna a “perda total do ser humano”, deve ser o sujeito a reclamar, ainda que violentamente (porquanto, materialmente), a “recuperação completa do ser humano”, com a “dissolução da ordem mundial vigente”, ou seja, com a “negação da propriedade privada” (MARX, 2010b, p. 54-55). Esta, pois, a solução marxiana (na Introdução) para a emancipação humana: a união revolucionária entre filosofia e proletariado. Afinal, a “filosofia não pode se concretizar sem a abolição do proletariado, o proletariado não pode abolir-se sem a concretização da filosofia” (MARX, 2010b, p. 56).

2.5. A extinção do Estado político numa sociedade socialista

Após o fechamento dos Anais Franco-Alemães, o jovem Marx prosseguirá com suas investigações acerca da emancipação do homem, agora sob a perspectiva de uma revolução proletária contra a propriedade privada e o Estado político burguês. As suas contribuições são, agora, direcionadas ao periódico berlinense Vorwärts! (Avante!).

Nos dias 7 e 10 de agosto de 1844, Marx publica um artigo, em duas partes, intitulado Glosas Críticas ao Artigo ‘O Rei da Prússia e a Reforma Social’. De Um Prussiano. No referido texto, o jovem Marx apresenta uma crítica ao expressamente referido artigo de Arnold Ruge, que este publicara, na mesma mídia, ocultando-se atrás de um pseudônimo (Um Prussiano). Ora, Ruge era saxão e Marx prussiano. Buscando evitar quaisquer dúvidas acerca de sua possível autoria, Marx reage prontamente, tecendo suas considerações sobre a opinião do “prussiano” Ruge.

O texto de Ruge – O Rei da Prússia e a Reforma Social –, também publicado no Vorwärts!, trazia críticas a um comentário feito pelo jornal francês La Réforme, sobre a reação do rei ante o levante dos trabalhadores da tecelagem, na província alemã da Silésia. Nesta revolta, promovida “contra as péssimas condições de trabalho e os baixos salários”, os operários destruíram “máquinas, livros comerciais e títulos de propriedade” (TONET, 2010, p. 7). O jornal francês, considerando a ampliação dos serviços de assistência social promovida pelo monarca prussiano, após o levante, entendeu ser o início de “reformas sociais significativas” (FREDERICO, 2009, p. 113). Ruge critica este entendimento. Ivo Tonet, acerca do artigo do “prussiano”, informa:

Em síntese, o autor afirmava que a sociedade alemã, dado o seu caráter não político, isto é, atrasado relativamente ao desenvolvimento burguês, é incapaz de compreender a dimensão universal desse fato singular. Na ótica do prussiano, o intelecto político tem um caráter de universalidade e é precisamente a sua falta que faz com que os alemães considerem a revolta dos tecelões como um simples fato local qualquer e que o rei o trate como um mero problema administrativo. Por esse motivo – a falta de intelecto político –, diz Ruge, os trabalhadores alemães também são incapazes de ter uma visão mais ampla do processo social em curso e de suas implicações. (TONET, 2010, p. 8).

O jovem Marx, além do escopo de espancar dúvidas acerca da autoria do artigo publicado no Vorwärts!, aproveita o ensejo para prosseguir em suas investigações sobre o Estado, a sociedade civil (fragmentada em classes) e a possibilidade de emancipação humana. A contundente[63] defesa marxiana da rebelião dos tecelões da Silésia, em oposição à opinião de Ruge, resultou no rompimento de relações pessoais entre ambos[64].

À falta de um intelecto político, afirmada por Ruge, que resultaria numa ausência de compreensão da universalidade da revolta silesiana pelo povo alemão, Marx contrapõe a supremacia da luta social, cujo cerne é a luta de classes, ante a luta política, voltada para a disputa do poder estatal entre partidos políticos. Tal tese marxiana decorre da convicção – antecipadora do materialismo histórico –, de que “há uma relação essencial de dependência ontológica do Estado para com a sociedade civil” (TONET, 2010, p. 20). Afirma Marx que o Estado, como “ordenamento da sociedade”, repousa sobre “a contradição entre vida pública e privada, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares” (MARX, 2010c, p. 59-60). Destarte,

Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. (MARX, 2010c, p. 62)

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Tal incapacidade de compreensão dos males sociais pelo intelecto político é uma consequência da concepção marxiana de que “nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio de sua vida, na essência de sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida” (MARX, 2010c, p. 61). Assim, para Marx (2010c, p. 62), “Não é preciso argumentar mais contra a insensata esperança do ‘prussiano’, segundo o qual o ‘intelecto político’ é chamado a descobrir as raízes da miséria social na Alemanha”. Isto porque, “Seria loucura não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e Napoleão juntos tiveram; seria loucura exigir dele um modo de ver do qual o inteligente ‘prussiano’ está pelo menos tão longe quanto seu rei” (MARX, 2010c, p. 62-63).

Esta compreensão marxiana da incapacidade do intelecto político em reconhecer as mazelas sociais é atualíssima e expressa uma verdade insofismável. Para além dela, Marx apresenta três outras teses no texto: (i) “o Estado é, essencialmente, uma expressão e um instrumento de reprodução dos interesses das classes dominantes, portanto, um instrumento de opressão de classe” (TONET, 2010, p. 22); (ii) “o Estado é impotente para alterar a sociedade civil” (TONET, 2010, p. 22); (iii) a extinção do Estado é ontologicamente necessária (TONET, 2010, p. 31). Todas estas teses são desdobramentos da tese central da dependência ontológica do Estado em relação à sociedade civil.

Contra a proposta de Ruge, de operar-se uma “revolução social com alma política”, Marx prega, ao invés, “uma revolução política com uma alma social”[65], ou seja, uma revolução política que transforme a sociedade desde a sua raiz ontológica, que é a sociedade civil (TONET, 2010, p. 30). Se a própria existência do Estado está apoiada sobre a sociedade civil e a sua constituição é o reflexo das contradições da sociedade civil, não é possível promover a emancipação humana, através de reformas sociais sob a tutela estatal, mas somente através de uma revolução que extinga o próprio Estado e, com ele, a base contraditória em que repousa:

A revolução em geral – a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações – é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político. (MARX, 2010c, p. 78)

Segundo esta descoberta do jovem Marx, uma eventual proposta de “Estado proletário” resulta numa contradição em seus próprios termos. Nesse sentido, Ivo Tonet afirma: “Não pode existir ‘Estado proletário’. Essa foi uma ficção criada pelo estalinismo para esconder a verdadeira natureza do Estado soviético. Falar em ‘Estado operário’ é pensar do ponto de vista da política” (TONET, 2010, p. 33). Com esta reflexão é possível constatar a distância que há entre a experiência do comunismo soviético e o socialismo marxiano.

Diante de tais desenvolvimentos da filosofia do jovem Marx, é de se indagar: qual a base deste antagonismo existente na sociedade civil, que se reflete na razão política do Estado e que, em função disto, demanda a extinção do próprio Estado?

2.6. O trabalho como mediação e sua dimensão ontológica fundamental: diagnóstico e proposta de transcendência da alienação

1844 é o ano da grande inflexão no pensamento marxiano, ou, para utilizar da expressão de István Mészáros, aqui, nos Manuscritos de Paris, estamos diante de “um sistema in statu nascendi”[66] (MÉSZÁROS apud FREDERICO, 2009, p. 169). Após as investigações efetuadas em 1843, do contato com os movimentos socialistas utópicos, com a luta do operariado[67] e com a Economia Política (inclusive através do aludido Esboço para uma crítica da economia política, de Engels), Marx, que se afastara de Hegel, politizando a crítica feuerbachiana da filosofia idealista hegeliana (teologia), reaproxima-se do mesmo, através de sua grande obra juvenil, a Fenomenologia do Espírito, para render homenagens à sua dialética, embora interpretada sob um novo viés (materialista). Concebe, então, a atividade – descoberta realizada pela Economia Política, da qual Hegel também se apropriara –, como a mediação entre o homem e a natureza, antes negada sob a ótica do dualismo feuerbachiano, porém analisada no âmbito peculiar do ainda não delineado modo de produção do capital.

Esta obra, somente publicada em 1932[68], na qual o jovem Marx transcreve extensos trechos de estudos de Economia Política, de diversos autores, com os quais acabara de ter contato, foi escrita entre os meses de março e setembro de 1844[69]. É de se notar que, durante este período de sete meses de intensos estudos, o jovem Marx ainda encontrou tempo para polemizar com Ruge, escrevendo e publicando as já analisadas Glosas Críticas, no início de agosto de 1844. Antes disso, porém, entre maio e junho de 1844, consoante nos dá conta Ranieri (2001, p. 29, nota 5), Marx “desenvolve um comentário crítico sobre os Elementos de economia política, de James Mill”.

Nesta altura da vida e do desenvolvimento teórico de Marx, já é possível identificar o contato com as aludidas três fontes de seu pensamento: a filosofia alemã (em especial Hegel e Feuerbach), o socialismo utópico (de alguma forma também presente nas revoltas operárias) e a economia clássica inglesa. No entroncamento destas fontes, o que o jovem Marx descobre? Qual é o cerne de suas investigações nos Manuscritos Parisienses?

Segundo Mészáros (2006, p. 24), “o núcleo dos Manuscritos de Paris, que estrutura a totalidade do trabalho, é o conceito de ‘transcendência da auto-alienação do trabalho’”. Mais: “O sistema marxista in statu nascendi é simultaneamente um tipo de ‘balanço’, e também a formulação de um monumental programa de investigações futuras”. Ecoando a análise de Mészáros[70], Ranieri (2001, p. 10-11) afirma: “É bastante provável que o conteúdo do sistema de Marx [...] tenha sido iniciado nesses Manuscritos, uma vez que ali fundou-se o lugar da negação e também da supressão do auto-estranhamento do trabalho como o projeto de realização da suprassunção (Aufhebung) do atual estado de coisas (a miserabilidade da condição humana)”.

Frederico (2009, p. 169) enfatiza que a teoria marxiana, constante dos Manuscritos de 1844, “fundamenta-se na ontologia: os futuros estudos de Economia Política serão realizados com base em uma postura que rejeita tanto o antropologismo empirista de Feuerbach quanto o logicismo abstrato de Hegel”. De fato, é no embricamento entre homem e natureza, observado nas contradições da sociedade civil, diagnosticadas em seus estudos precedentes, que o jovem Marx encontrará os germes visíveis desta nova ontologia – agora destacadas, em seus pormenores, pelas novas aquisições teóricas (embora, ainda incipientes) da Economia Política. Trata-se do desvelamento da atividade mediadora, entendida como trabalho humano estranhado, cujos meandros serão analisados para a identificação das alternativas de transcendência emancipadora do humano.

A atividade é o conceito central do Hegel da Fenomenologia do Espírito. O jovem Marx parte deste ponto. Mas o que será atividade para Hegel? Questão difícil. Como afirma Frederico (2009, p. 177), “defrontar-se com Hegel é pôr-se diante de um abismo”. Isto porque “nunca fica totalmente claro para o leitor se as categorias hegelianas emanam do puro pensamento ou se elas descolam da própria realidade” (FREDERICO, 2009, mesma página). Como afirma Frederico (2009, mesma página), a dubiedade decorrente da interpretação do pensamento hegeliano é contumaz: “Há momentos em que Hegel é claramente idealista, fazendo derivar do pensamento toda a realidade. Noutros, entretanto, as categorias motrizes do pensamento parecem reflexos fiéis daquilo que já está dado na própria realidade material. Essa tensão é permanente na dialética idealista objetiva de Hegel e se manifesta com toda força quando o tema em questão é o trabalho”.

Celso Frederico, referindo-se a texto de Leandro Konder, narra uma interessante passagem da vida de Hegel que expressa essa peculiaridade de sua filosofia:

O poeta Heine, que foi aluno de Hegel na Universidade de Berlim, assegurava que o velho filósofo forçava a obscuridade das exposições que fazia em suas aulas, porque temia as consequências de suas ideias revolucionárias, caso elas fossem compreendidas. Heine conta que uma vez interpelou o professor, após uma das aulas, irritado com aquilo que considerava “conservador” na equivalência hegeliana do real e do racional. Segundo ele, Hegel lhe observou, então, com um sorriso: “E se o sr. lesse a frase assim: o que é real deve ser racional...?” (FREDERICO, 2009, p. 22, nota 3)

Esta dubiedade do pensamento hegeliano, portanto, é a origem da dicotomização de seu legado intelectual, já referida alhures, que opôs jovens e velhos hegelianos nas trincheiras da filosofia alemã pós-1831[71]. Segundo Marx, posicionado à esquerda do pensamento hegeliano, malgrado toda a abstração da filosofia hegeliana, o importante é a sua compreensão do homem como autoprodutor:

A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu resultado final – a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e gerador – é que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como um processo, a objetivação (Vergegenständlichung) como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização (Entäusserung) e supra-sunção (Aufhebung) dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como o resultado de seu próprio trabalho. (MARX, 2004, p. 123)

Por outro lado, apesar de sua compreensão do homem como autoprodutor, Hegel concebe-o pela ótica da Economia Política inglesa. Melhor esclarecendo, Hegel concebe o trabalho sob o modo de produção do capital, sob a ótica burguesa, sob uma forma particular – ou seja, “ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu [lado] negativo” (MARX, 2004, p. 124) –, como possuindo uma dimensão ontológica universal. Ainda mais claramente, Hegel aponta apenas a sua dimensão particular de exteriorização e objetivação como universal. Isto pelo fato de que “O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual” (MARX, 2004, mesma página). Esta, portanto, em apertada síntese, é a concepção de atividade e alienação em Hegel: o trabalho (atividade) como exteriorização (Entäusserung = alienação), objetivação.

Feuerbach apud Ranieri (2001, p. 39) denunciou a mistificação da filosofia especulativa, cujo encadeamento lógico decorria do processo de abstração, como expressão do puro pensamento: “Abstrair significa pôr a essência da natureza fora da natureza, a essência do homem fora do homem, a essência do pensar fora do ato do pensar”. Trata-se da denúncia à inversão idealista. “A filosofia hegeliana estranhou (entfremdet) o homem de si mesmo ao apoiar o conjunto do [seu] sistema sobre estes atos da abstração” (FEUERBACH apud RANIERI, p. 39). Enquanto Hegel põe como determinante do concreto-sensível o espírito universal-abstrato, “Feuerbach proclama como determinante do elemento abstrato aquele concreto-sensível, fazendo deste abstrato o verdadeiro indeterminado” (RANIERI, 2001, p. 43).

A oposição entre indivíduo e gênero, apontada por Feuerbach, na qual “os predicados do homem não são buscados na realidade, mas atribuídos à sabedoria de um ente criador” (RANIERI, 2001, mesma página) – esta, portanto, é a concepção feuerbachiana de alienação – é reiterada por Marx. No entanto, se para Feuerbach a mera consciência desta oposição é suficiente para “recuperar a unidade entre o indivíduo e seu gênero” (RANIERI, 2001, mesma página); para Marx, não (como se verá mais à frente).

A alienação (Entäusserung), em Marx, exsurge em múltiplas nuances, nem sempre muito claras, mas que abarcam melhor o fenômeno em sua completude. Trata-se de um conceito-chave de grande complexidade[72]. Mészáros (2006, p. 19-20), assim o explicita: “O conceito de alienação de Marx tem quatro aspectos principais, que são os seguintes: a) o homem está alienado da natureza; b) está alienado de si mesmo (de sua atividade); c) de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana); d) o homem está alienado do homem (dos outros homens)”.

Ante os limites da presente monografia, não avançaremos na análise das minúcias dos termos alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), cumprindo apenas referir à existência de estudos específicos sobre o tema (em especial, MÉSZÁROS, 2006; KONDER, 2009; e RANIERI, 2001). Em Marx, para a compreensão da alienação, importa a leitura dos Manuscritos de 1844, em especial do capítulo “Trabalho estranhado e propriedade privada” (MARX, 2004, p. 79-90), que será a origem dos esforços posteriores para o delineamento dos conceitos aludidos.

A esta altura, é de se destacar e frisar que, ao conceber “a elevação da esfera da produção ao estatuto ontológico básico e estruturador da sociabilidade humana, Marx distancia-se simultaneamente de Hegel e Feuerbach” (FREDERICO, 2009, p. 178). Distancia-se de Hegel, porquanto tem como ponto de partida o homem vivo, e não a Ideia – inclusive, pela aceitação da inversão materialista operada por Feuerbach; deste (Feuerbach), por sua vez, distancia-se pelo fato de que admite, com Hegel, a atividade (trabalho) como mediação autoprodutora do humano e o movimento dialético que possibilita a história; e, de ambos, por conceber uma hipótese de superação da alienação não admitida por qualquer deles.

A prioridade ontológica dada ao trabalho humano alça-o à condição de “primeira e mais importante forma de objetivação do ser social” (FREDERICO, 2009, p. 179), embora não única. Através de tal concepção de trabalho, “o homem e a natureza não são mais vistos como coisas separadas: a natureza não age sobre o homem ‘de fora’ e nem o homem ‘de fora’ modifica a natureza” (FREDERICO, 2009, mesma página)[73]. O jovem Marx rejeita, assim, respectivamente, tanto o mecanicismo (o homem determinado pela natureza), quanto o finalismo (o homem livremente determinando fins à natureza)[74]. O trabalho, assim considerado (com prioridade ontológica), é o embrião da concepção materialista de Marx.

Nos Manuscritos de Paris, encontramos um jovem filósofo propugnando uma nova postura teórica, engajada, buscando os alicerces da realidade e do pensamento, embora ainda preso às concepções filosóficas que busca ultrapassar. Entretanto, encontrando-se no vórtice das referidas três fontes que o influenciaram, o jovem Marx pôde conceber o trabalho humano em suas duas dimensões: aquela que é a “determinação ontológica fundamental” e aquela que “no mundo da propriedade privada e da divisão do trabalho, torna-se o fundamento de toda alienação” (FREDERICO, 2009, p. 184).

Ao colocar o trabalho humano como uma “mediação de primeira ordem”, ou seja, concebendo-o com primazia ontológica, o jovem Marx abre uma nova perspectiva de emancipação humana, conduzida para o interior do mundo do trabalho. Diferencia o trabalho, assim, das “mediações de segunda ordem”, como a propriedade privada, a troca, a divisão do trabalho. Nesta esteira, a Aufhebung (suprassunção) proposta por Marx, possibilita a suprassunção das “mediações de segunda ordem”, mas jamais do próprio trabalho (FREDERICO, 2009, p. 186-187). Este, por sua vez, haverá de ser recomposto em uma nova montagem social que garanta a realização do humano.

Diversamente de Feuerbach, que aponta o homem como ser passivo, Marx conceberá o homem diversamente, superando esta postura (lembre-se que na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, o sujeito revolucionário [proletariado] aparece como coração e passividade, no encontro com a cabeça e a atividade [filosofia alemã]) – e agora com o desvelamento do trabalho como suporte ontológico primordial –, como um ser ativo e apaixonado (consoante novo sentido que Marx concede à paixão):

O homem enquanto ser objetivo sensível é, por conseguinte, um padecedor, e, porque é um ser que sente o seu tormento, um ser apaixonado. A paixão (Leidenschaft, Passion) é a força humana essencial que caminha energicamente em direção ao seu objeto.

Mas o homem não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, ser existente para si mesmo (für sich selbst seiendes Wesen), por isso, ser genérico, que, enquanto tal, tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber. Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modo adequado. (MARX, 2004, p. 128)

O jovem Marx, portanto, concebe o homem com a capacidade de suprassumir a sua alienação e emancipar-se. Como este ser que é atividade e passividade poderá suprassumir a sua condição de estranhamento, reassumindo a sua essência alienada pelas contradições resultantes do modo de produção do capital? Como superar a propriedade privada enquanto estranhamento-de-si humano? Qual é o modelo de organização social passível de superar o modo de produção do capital que torna o homem estranhado de si mesmo?

Quem responde é o próprio Marx dos Manuscritos Econômico-Filosóficos:

O comunismo na condição de supra-sunção (Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, e por isso enquanto apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem. Por isso, trata-se do retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano. Este comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e como homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstbestätigung), entre liberdade e necessidade (Notwndigkeit), entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução. (MARX, 2004, p. 105)

Como se vê, é no comunismo, concebido como suprassunção positiva da propriedade privada, que o jovem Marx entende solucionada a contradição entre existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação, entre liberdade e necessidade, entre o homem individual e o homem genérico, entre trabalho e capital, entre o homem e a natureza. É no comunismo que o trabalho estranhado é suprassumido e o homem recupera a sua essência. Há, aqui, indiscutivelmente, uma dimensão utópica, porquanto o comunismo concebido por Marx tenha ficado inconcluso[75].

De fato, a concepção de comunismo marxiano nunca será satisfatoriamente aprofundada. Entretanto, o jovem Marx, a partir destes Manuscritos de 1844, no qual opera uma simbiose crítica entre o materialismo feuerbachiano e a dialética hegeliana, já possui um programa de investigação a cumprir, uma concepção de homem, um método próprio e um terreno concreto sobre o qual agir politicamente com escopo de atingir a realização da filosofia e a emancipação humana. Antes de promover a superação[76] das bases intelectuais das quais parte, o jovem Marx precisa ajustar contas com o pensamento dos Livres de Berlim[77].

2.7. O humanismo real contra o idealismo especulativo da “Crítica crítica”

Dando continuidade ao combate empreendido contra a filosofia idealista e o escopo de sua superação, através do materialismo antropológico feuerbachiano – embora já com todos os elementos possíveis para a sua superação –, o jovem Marx prosseguirá com sua crítica, agora com o auxílio de um colaborador de todo o resto de sua vida: Friedrich Engels. Após o segundo encontro com Engels, nos últimos meses de 1844, alhures[78] aludido e que durara 10 dias, estes dois grandes intelectuais estabelecem um projeto de crítica à perspectiva filosófica do antigo amigo Bruno Bauer que, reunido com seus “consortes”[79] – irmãos (Edgar e Egbert) e companheiros (Reichardt, Jules Faucher, Jungnitz, Szeliga e Rodolfo, príncipe de Geroldstein) –, editará a revista mensal Gazeta Literária Geral[80] (Allgemeine Literatur-Zeitung), entre dezembro de 1843 e outubro de 1844. Trata-se da obra A Sagrada Família (publicada no final de fevereiro de 1845[81]). Como esclarece Netto (2009a, p. 18), embora “sem se identificar completamente com os Livres, Bauer vai deslizar progressivamente para um criticismo abstrato, formulado num radicalismo verbal que apenas dissimulava o crescente isolamento do autor em face do movimento social real”.

Já no prólogo da obra, é possível constatar o posicionamento dos autores perante o entendimento baueriano de que a mera crítica abstrata seria passível de garantir a emancipação humana (tão perseguida por Marx). Esta crítica de Bauer e seus “consortes” – que Marx e Engels, ironicamente, denominam de “Crítica crítica”[82] –, resulta numa versão do idealismo especulativo, que os próprios hegelianos de esquerda, dos quais Bruno Bauer fazia parte, não conseguiram de desenredar. Assim, inicia o referido prólogo:

O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo –, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evangelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental. (MARX; ENGELS, 2003, p. 15)

Na referência ao “humanismo real”, exsurge clara a influência e defesa aberta da filosofia feuerbachiana[83] – defesa esta que já havia sido feita nos Manuscritos de Paris[84] – assim como a proposta de sua superação. Na verdade, Ludwig Feuerbach é ainda exaltado, em razão da avenida aberta para a crítica do idealismo hegeliano. A apologia de Feuerbach é, assim, produzida por Engels:

Mas quem descobriu, então, o mistério do “sistema”? Feuerbach. Quem descobriu a dialética dos conceitos, a guerra dos deuses, a única que os filósofos conheciam? Feuerbach. Quem pôs, não certamente o “significado do homem” – como se o homem pudesse ter outro significado, além do de ser homem! –, mas “o homem” no lugar da velha quinquilharia, inclusive no lugar da “autoconsciência infinita”? Feuerbach, e apenas Feuerbach.[85] (MARX; ENGELS, 2003, p. 111)

A crítica desenvolvida por Marx e Engels centra-se nos oito primeiros[86] cadernos publicados da Gazeta Literária Geral, “porque é ali que a Crítica baueriana, e com ela o despropósito da especulação alemã como um todo, alcançam o ápice” (MARX; ENGELS, 2003, p. 15). Malgrado os autores terem afirmado no prólogo que a “exposição naturalmente é condicionada por seu objeto” (MARX; ENGELS, 2003, p. 15), qual seja a filosofia “Crítica crítica”, restringiremos a nossa análise aos pontos principais do desenvolvimento do pensamento do jovem Marx, diante de sua crítica e de sua tentativa de superação do idealismo hegeliano.

Não é possível olvidar a necessária referência às qualidades literárias de Marx e Engels (ainda que o segundo tenha escrito apenas cerca de vinte páginas da obra), que dão um tom grandiloquente às ácidas e irônicas estocadas que ambos desferem aos colaboradores da Gazeta Literária Geral. A obra traz muitas páginas com análises desconcertantes, que atingem o objetivo de dissolver completamente as estruturas argumentativas dos textos da Crítica crítica.

Bruno Bauer e seus consortes, não concordando com os posicionamentos teóricos de Marx, “acabaram acusando-o de transformar o proletariado em uma classe de deuses, atribuindo-lhe um papel messiânico” (KONDER, 1999, p. 44-45). Defendendo-se desta acusação, Marx escreve: “O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia sobre si mesma ao engendrar o proletariado” (MARX; ENGELS, 2003, p. 48). E complementa aduzindo:

Se os escritores socialistas atribuem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de nenhuma maneira, conforme a Crítica crítica pretexta dizer que acontece, ou seja, pelo fato de eles terem os proletários na condição de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa entre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absolutamente imperiosa – expressão prática da necessidade –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. (MARX; ENGELS, 2003, p. 49)

Marx resume, aqui, todo o desenvolvimento imediatamente anterior de seu pensamento, bem como a proposta de realização da filosofia, com a suprassunção da condição de estranhamento do humano e da possibilidade de sua emancipação, com a reapropriação de sua essência alienada, via revolução proletária. Em uma página anterior, Marx demonstra que, além de proletariado e riqueza serem antitéticos e de ambos estarem absorvidos pela condição de estranhamento, tal circunstância histórica deposita nos ombros do proletariado a possibilidade e o encargo de suprassunção de tal contradição:

A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma auto-alienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa auto-alienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Ela é, para fazer uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a revolta contra essa abjeção, uma revolta que se vê impulsionada necessariamente pela contradição entre sua natureza humana e sua situação de vida, que é a negação franca e aberta, resoluta e ampla dessa mesma natureza.

Dentro dessa antítese o proprietário privado é, portanto, o partido conservador, e o proletário o partido destruidor. Daquele parte a ação que visa a manter a antítese, desse a ação de seu aniquilamento. (MARX; ENGELS, 2003, p. 48)

Para que tal aniquilamento[87] ocorra, não bastam ideias. Afinal, “Idéias não podem executar absolutamente nada. Para a execução das ideias são necessários homens que ponham em ação uma força prática” (MARX; ENGELS, 2003, p. 137). Nesse sentido, Marx adverte, citando a divisa do semanário Révolutions de Paris, redigido por Elisée Loustalot, em 1789 – “Os grandes só nos parecem grandes,/porque nós estamos de joelhos./Levantemo-nos!” – que “para levantar-se não basta levantar-se em pensamento, deixando que sobre a cabeça real e sensível permaneça flutuando o jugo real e sensível, que nós não logramos fazer desaparecer por encanto através das ideias” (MARX; ENGELS, 2003, p. 100). Esta perspectiva de uma emancipação pelo pensamento é a perspectiva baueriana[88] de emancipação, que, por sua vez, repristina, de maneira caricata e imperfeita, a filosofia idealista hegeliana:

O mistério dessa ousadia baueriana é a “Fenomenologia” hegeliana. Como Hegel substitui, nessa obra, o homem pela autoconsciência, a realidade humana mais diversa aparece apenas como uma forma determinada, como uma determinabilidade da autoconsciência. [...] Na “Fenomenologia” de Hegel são deixados em pé os fundamentos materiais, sensíveis, objetivos das diferentes formas estranhadas da autoconsciência humana, e toda a obra destrutiva tem como resultado a mais conservadora filosofia, uma vez que acredita ter superado o mundo objetivo, o mundo sensivelmente real, tão logo ela o transformou em uma mera determinabilidade da autoconsciência, podendo, então, dissolver também o adversário tornado etéreo no “éter do pensamento puro”. [...] Hegel faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da autoconsciência a autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto, vive também em um mundo real, objetivo, e se acha condicionado por ele. Ele vira o mundo de ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver também na cabeça todos os limites, e isto os faz, naturalmente, manter-se de pé para a má sensoriedade, para o homem real. Além do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia a limitação da autoconsciência geral, toda a sensoriedade, a realidade e a individualidade do homem e de seu mundo. A “Fenomenologia” inteira quer provar que a autoconsciência é a única realidade e toda a realidade. (MARX; ENGELS, 2003, p. 215)

Aqui importa referir três pontos destacados por Collin (2008, p. 69): (i) o conservantismo da filosofia hegeliana; (ii) o hegelianismo como aniquilação do real sensível; e (iii) “o caráter extralógico do real sensível, a irredutibilidade da diversidade concreta à unidade pensada”. Se nos Manuscritos de Paris, a dialética hegeliana é retomada e exaltada; aqui, n’A Sagrada Família, é a expressão da “mais conservadora filosofia”. Isto porque o método dialético hegeliano “consiste em reconduzir a diversidade do sensível à Idéia, em reduzir o homem concreto à Consciência de si” (COLLIN, 2008, mesma página). O real sensível é dissolvido no inteligível, exatamente porque, na filosofia hegeliana, real e racional coincidem. Contra tal perspectiva, o jovem Marx grita a irredutibilidade do real ao pensamento.

Como decorrência de tal perspectiva filosófica marxiana, é imperioso analisarmos mais um ponto central em sua filosofia: o seu nominalismo materialista. Desde a sua tese de doutorado, Marx desenvolvia o seu pensamento na encruzilhada entre o ser e o pensamento. “Aqueles que consideram a natureza como o elemento primordial são materialistas, diz ainda Engels. E como bom discípulo de Feuerbach, Marx considera a natureza como o elemento primordial” (COLLIN, 2008, p. 64). Inversamente, a filosofia idealista “procede a partir dos universais, a ideia, o espírito, o homem, o homem abstrato, animal racional, animal político ou tudo o que se quiser ainda” (COLLIN, 2008, p. 63). A relação entre materialismo e nominalismo é explicitada pelo próprio Marx, que refuta a historia do materialismo francês apresentada pela “Crítica crítica”: “o nominalismo é um dos elementos principais dos materialistas ingleses, da mesma maneira que é, em geral, a primeira expressão do materialismo” (MARX; ENGELS, 2003, p. 146). A análise marxiana é detalhada, razão pela qual aludiremos aos seus pontos principais. Antes disso, duas palavras.

A primeira é que “o materialismo decorre do nominalismo” (COLLIN, 2008, p. 66). A segunda é uma mera referência à clássica definição leibniziana do que sejam os nominalistas[89]: “são nominalistas todos os que acreditam que, além das substâncias singulares, só existem os nomes puros e, portanto, eliminam a realidade das coisas abstratas e universais” (ABBAGNANO, 2007, p. 836, verbete “NOMINALISMO”). A definição torna clara a primeira afirmação.

“O verdadeiro patriarca do materialismo inglês e de toda a ciência experimental moderna é Bacon” (MARX; ENGELS, 2003, p. 147). As frequentes autoridades citadas por Bacon são “Anaxágoras, com suas homeomerias, e Demócrito, com seus átomos” (MARX; ENGELS, 2003, mesma página). Por sua vez, “Hobbes é o sistematizador do materialismo baconiano” (MARX; ENGELS, 2003, mesma página), e “Locke, em seu ensaio sobre as origens do entendimento humano, fundamenta o princípio de Bacon e de Hobbes” (MARX; ENGELS, 2003, p. 148). O discípulo francês de Locke, Condillac, “publicou uma refutação dos sistemas de Descartes, Spinoza, Leibniz e Malebranche” (MARX; ENGELS, 2003, mesma página). Duas tendências coabitam no materialismo francês, segundo Marx: uma com sua gênese em Descartes; outra, em Locke. “A segunda constitui, preferencialmente, um elemento da cultura francesa e desemboca de forma direta no socialismo” (MARX; ENGELS, 2003, p. 144). A outra, por sua vez, “representada pelo materialismo mecânico, acaba se perdendo naquilo que poderíamos chamar de ciências naturais. Ambas se entrecruzam no curso do desenvolvimento” (MARX; ENGELS, 2003, mesma página). Destarte, “Assim como o materialismo cartesiano acaba na verdadeira ciência da natureza, a outra tendência do materialismo francês desemboca diretamente no socialismo e no comunismo” (MARX; ENGELS, 2003, p. 149).

A diferença existente entre os materialismos francês e inglês decorre da diferença entre as respectivas nacionalidades. No entanto, um influenciou o outro: “Os franceses dotaram o materialismo inglês de espírito, de carne e de sangue, de eloquência. Eles emprestaram o temperamento e a graça que ainda não tinha. Civilizaram-no” (MARX; ENGELS, 2003, p. 148). Esta concepção de história da filosofia “é muito reveladora das posições filosóficas de Marx nesse exato momento em que se torna verdadeiramente materialista, nesse momento em que, cessando de trabalhar no interior da filosofia hegeliana ou neo-hegeliana, elabora suas próprias posições” (COLLIN, 2008, p. 68). O jovem Marx, nesta altura, “defende um empirismo nominalista que se opõe praticamente ponto por ponto à tradição da qual saiu” (COLLIN, 2008, mesma página).

Na esteira destas reflexões, Marx aprofundará a sua concepção materialista, primeiramente nas notas quase taquigráficas das Teses sobre Feuerbach e, em seguida, agora novamente com Engels, n’A Ideologia Alemã. É nesta nova etapa de seu pensamento filosófico que Marx superará Hegel e Feuerbach.

2.8. Superando Hegel e Feuerbach: o materialismo histórico

No início de 1845, consoante afirmado no capítulo I desta monografia, o nosso revolucionário filósofo foi expulso de Paris, passando a residir em Bruxelas. Para tanto, “Marx teve de assinar um documento em que se comprometia com o governo belga a não publicar lá quaisquer artigos sobre a atualidade política, nacional ou internacional” (KONDER, 1999, p. 49). Desconhecemos, contudo, os termos da possível cláusula penal contida em tal ajuste, mas sabemos que Marx, “descumprindo a promessa que fizera ao governo belga, ocupou-se – e muito – da atualidade política” (KONDER, 1999, p. 63).

De fato, é em Bruxelas que o jovem Marx, entre os seus 26 e 29 anos – idade com a qual foi preso e também expulso de lá (KONDER, 1999, p. 67-68) –, escreve as Teses sobre Feuerbach, A Ideologia Alemã (a quatro mãos com Engels), A Miséria da Filosofia (em polêmica com Proudhon) e o Manifesto do Partido Comunista (também com Engels). Aqui, analisaremos apenas as duas primeiras obras.

As Teses foram publicadas por Engels, não sem algumas intervenções, em 1888, como anexo à obra deste, Ludwig Feuerbach e o desfecho da filosofia clássica alemã (MARX; ENGELS, 2007c, p. 609, nota 115). Tanto as anotações marxianas, quanto a publicação de Engels, traziam o título “Ad Feuerbach”. O Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou, que publicou o texto em 1932, foi o responsável pelo novo título Teses sobre Feuerbach – pelo qual ficou conhecido[90]. Já A Ideologia Alemã, escrita entre 1845 e 1846[91], somente foi publicada em 1932, posto que os autores, à época da escrita, “não encontraram editor interessado em publicar a obra e deixaram-na entregue à ‘crítica roedora das ratazanas’” (KONDER, 1999, p. 57), como afirmou Marx ironicamente. Em verdade, ele “não se aborreceu com o fato do livro não ter sido publicado na ocasião” (KONDER, 1999, mesma página). Afinal, tratava-se de “um livro pesado, extenso, de leitura difícil, e o principal objetivo com que fora escrito era o de proporcionar aos autores uma oportunidade para esclarecerem a si mesmos os traços fundamentais da nova concepção filosófica que estavam elaborando” (KONDER, 1999, mesma página). De fato, após as novas aquisições teóricas adquiridas com as Teses e com A Ideologia Alemã, “Marx sentiu necessidade de passar logo à atividade prática e procurou entrosar-se com o movimento operário europeu, intensificando seus contatos com os dirigentes comunistas de Londres e de Paris” (KONDER, 1999, mesma página).

A partir daí, encontraremos Marx como um comunista convicto: fez prevalecer os seus posicionamentos acerca dos destinos das atividades da Liga dos Justos (que, inclusive, passou a chamar-se Liga dos Comunistas), para além dos de seu fundador (Weitling[92]); foi encarregado, juntamente com Engels, em 1847, da redação de um Manifesto Comunista[93] (que se tornou o mais célebre dos escritos da dupla); e foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, juntamente com Engels e Bakunin (que ficaria conhecida como a Primeira Internacional, como forma de diferenciá-la da Segunda Internacional [a Internacional Socialista, de 1889, que congregava nomes como os alemães Kautsky e Rosa Luxemburgo, e os russos Lenin, Plekhanov e Trotsky] e da Terceira Internacional [a Internacional Comunista ou Comintern, abreviação de Kommunistische Internacionale, em alemão], fundada em 1919, por Lênin, após a Revolução Russa de 1917).

Os dois textos permitiram a Marx, juntamente com Engels, a superação do idealismo alemão, via materialismo, diferenciando-se de Hegel, por seu método, sem, contudo, abandonar a própria dialética. Outrossim, tais estudos possibilitaram a elaboração de um novo materialismo – o materialismo histórico –, como forma de superação do materialismo feuerbachiano (“que a princípio parecia um antídoto à dialética idealista hegeliana, mas se demonstrou genérico e abstrato quando testado na realidade objetiva da história humana” (SANT’ANNA, 2007, p. 16)). E, além de dissolver as perspectivas teóricas de Bruno Bauer e Max Stirner, permitiram o oferecimento de uma nova vertente socialista – o socialismo científico –, em substituição ao socialismo utópico, em suas diversas vertentes (v.g., as defendidas por Weitling, Proudhon, Bakunin, Louis Blanc etc.).

Nas teses I e V (Ad Feuerbach), Marx desnuda a estéril passividade da opção feuerbachiana pela intuição-sensível: Feuerbach não apreende a “atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva”, “não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, da atividade ‘prático-crítica’” (MARX, 2007b, p. 99, tese I); “não vê a sensibilidade como atividade prática humana e sensível” (MARX, 2007b, p. 101, tese V). Assim, Feuerbach “não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, da atividade ‘prático-crítica’” (MARX; 2007b, p. 99, tese I).

O trabalho como práxis, como “mediação de primeira ordem”, tem primazia ontológica e, em razão disso, “são precisamente os homens que transformam as circunstâncias”, através de uma “práxis revolucionária” (MARX; 2007b, p. 100, tese III). Nesse sentido, “o próprio educador precisa ser educado” (MARX, 2007b, mesma página, mesma tese). O pós-doutor em políticas públicas e formação humana (UERJ), Justino de Sousa Junior, “caso houvesse de fato necessidade de se estabelecer um princípio pedagógico fundamental em Marx”, afirma que “esse princípio estaria vinculado à categoria da práxis político-educativa” (2010, p. 50). Isto porque “a categoria da práxis contempla mais amplamente a diversidade das atividades humanas” (SOUSA JUNIOR, 2010, mesma página, nota 49). De fato, é a própria práxis[94], nascida do trabalho, que, ante as crassas contradições inerentes ao sistema sócio-metabólico do capital, engendra e estimula a eclosão da suprassunção emancipadora do estranhamento.

Não se trata de uma atividade desalienadora mental, em nível meramente subjetivo, encarcerada no pensamento, mas de “uma atividade material, transformadora e adequada a fins” (VÁZQUEZ, 2010, p. 239). Efetivamente, como ensina Marx (2007b, p. 100, tese II): “É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do pensamento. A discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento – isolado da práxis – é puramente escolástica”. Destarte, não se modifica o mundo com um cogito solipsista. Ademais, não basta afirmar a identidade entre pensamento e realidade, como em Hegel – o que resulta em imobilismo e aceitação passiva da realidade. Urge, isto sim, promover efetivamente a emancipação humana, através de uma atividade revolucionária, real e concreta. Por outras palavras, não basta interpretar o mundo de diversas maneiras, como o fizeram os filósofos, é necessário transformá-lo (tese XI – cf. MARX, 2007b, p. 103).

Na tese IV, Marx reitera a denúncia já feita nos Manuscritos de Paris: ao “reduzir o mundo religioso à sua base profana” – operação realizada por Feuerbach –, “o principal ainda está por fazer” (MARX, 2007b, p. 101). A que “principal” Marx se refere? À crítica da “família terrestre” (sendo esta o “segredo da família celeste” – posta por Feuerbach como a essência alienada do homem) e à sua subsequente revolução prática (MARX, 2007b, mesma página, mesma tese). Não há essência humana individual, isolada, como no caminho regressivo empreendido por Feuerbach (a partir da alienação religiosa); a essência humana “é o conjunto das relações sociais” (MARX, 2007b, p. 101-102, tese VI). O próprio “espírito religioso” é “um produto social” (MARX, 2007b, p. 102, tese VII).

O segredo da sociedade se encontra na compreensão da “práxis humana”, vez que “toda vida social é essencialmente prática” (MARX, 2007b, p. 102, tese VIII). Se o materialismo contemplativo, como em Feuerbach, pode, no máximo, alcançar a “contemplação dos indivíduos isolados e da sociedade civil” (MARX, 2007b, mesma página, tese IX), o novo materialismo propugnado por Marx, pretende produzir a emancipação humana – vez que parte da compreensão da própria “sociedade humana” (MARX, 2007b, p. 103, tese X).

Na sequência, Marx e Engels prosseguem dinamitando o idealismo alemão: não só Feuerbach e Bruno Bauer, mas também Max Stirner. Já no prefácio de A Ideologia Alemã, os autores exortam: “Rebelemo-nos contra o domínio das ideias” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 35). Esta rebelião, o próprio Marx empreendeu, iniciando-a a partir de sua tese de doutorado, em 1839, e culminando n’A Ideologia Alemã. Nesta obra de juventude, já é possível constatar e afirmar que as propostas revolucionárias de Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner são “quimeras ingênuas e pueris” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página). Marx e Engels resumem as concepções filosóficas de tais filósofos, respectivamente, assim: “Eduquemos a humanidade para substituir suas fantasias por pensamentos condizentes à essência do homem, diz alguém; para comportar-se criticamente diante delas, diz outro; para expulsá-las do cérebro, diz um terceiro – e a realidade desmoronará” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página). Tais “balidos só fazem repetir, em linguagem filosófica, as representações dos burgueses alemães, e que as fanfarronadas desses comentaristas filosóficos só fazem refletir a irrisória pobreza da realidade alemã” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página), concluem.

Todas as propostas de explicação da realidade social, a partir do pensamento, estão fadadas ao fracasso. Isto porque “As ideias não explicam a diversidade do real mas, ao contrário, devem ser explicadas, é necessário conceber como elas são produzidas a partir das sociedades humanas existentes” (COLLIN, 2008, p. 70). De fato, para Marx e Engels (2007a, p. 44): “O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos”. Assim, a história humana se inicia quando os homens “começam a se distinguir dos animais” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página). Isto se dá quando os próprios homens “começam a produzir seus meios de existência, e esse salto é condicionado por sua constituição corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página).

Neste ponto, é possível apreender o cerne da concepção antropológica marxiana: o homem em sua tríplice dimensão (prática, social e histórica)[95]. Prática, porquanto, o homem é um ser que produz (produtor) e, ao produzir, produz-se a si mesmo (autoprodutor); social, pelo fato de que o homem além de produzir os objetos de sua necessidade, somente o faz em conjunto com os outros homens; histórico, posto que o homem está condicionado pelos meios produtivos e pelas relações de produção do tempo histórico em que vive[96]. Nas palavras de Marx e Engels (2007a, p. 44-45):  “Da maneira como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, por conseguinte, depende das condições materiais de sua produção".

Fazendo eco à primeira tese sobre Feuerbach, “Marx afirma, quase explicitamente, a prioridade lógica e ontológica do indivíduo sobre a espécie, do particular sobre o geral” (COLLIN, 2008, p. 71). Aqui fica evidente a presença da concepção nominalista de Marx, que “o leva a fazer do indivíduo vivo o ponto de partida e o princípio de toda análise social e de toda filosofia” (COLLIN, 2008, mesma página).

Os pressupostos dos quais partem Marx e Engels, segundo eles mesmos afirmam, não são arbitrários nem dogmáticos. Tais pressupostos “são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas que eles já encontraram elaboradas quanto aquelas que são o resultado de sua própria ação” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 44). E por serem “verificáveis empiricamente”, não são passíveis de abstração, salvo na imaginação (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página). Assim, a história humana para Marx está umbilicalmente ligada à produção e reprodução dos meios de existência dos homens num tempo e num espaço determinados. “O que os indivíduos são, por conseguinte, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 45).

E, como afirma Collin (2008, p. 74), “A sociedade e o Estado não são mais sujeitos e sim produtos da ação dos indivíduos, gêneros que ‘resultam’ da atividade de homens, de ‘indivíduos vivos’”. Esta é a insistência marxiana do “carácter ‘empírico’ do pressuposto em que se baseia”, referida por Abbagnano (1970, p. 53-54), e que o próprio Marx[97] ressalta n’A Ideologia Alemã:

Aqui estão, por conseguinte, os fatos: indivíduos determinados, que, como produtores, atuam de uma maneira também determinada, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que, em cada caso, a observação empírica ponha em relevo – de modo empírico e sem qualquer especulação ou mistificação – o nexo existente entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivíduos determinados, porém esses indivíduos não como podem parecer à imaginação própria ou dos outros, mas tal e qual realmente são, isto é, tal como atuam e produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinadas limitações, pressupostos e condições materiais, independentemente de sua vontade. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 50-51)

Destarte, Abbagnano (1970, p. 54) equivoca-se ao apontar, como tese fundamental da teoria da história de Marx, que “o único sujeito da história é a sociedade na sua estrutura econômica”. Primeiro, porque, como afirmado acima, a sociedade não é sujeito, mas produto da ação dos indivíduos vivos, conforme afirmação de Denis Collin; ou, como afirmam Marx e Engels, acima, “a estrutura social” (ou seja, a sociedade) nasce “continuamente do processo vital de indivíduos determinados”[98]. Segundo, porque os indivíduos vivos, os homens, não se caracterizam – exclusivamente – pelas suas relações de produção, pelas suas relações econômicas. Konder (2009, p. 43), tratando da alienação, indiretamente esclarece o reducionismo de tal afirmação:

Marx estava seguro de ter encontrado na alienação econômica a raiz do fenômeno global da alienação. Ele sabia que, antes de poder fazer política, ciência, religião, etc., os homens precisam comer, beber, vestir e ter um teto para morar. Sabia que, antes do trabalho intelectual típico, o homem tem de realizar o trabalho material de que depende a sua subsistência.

Jamais lhe ocorreu, porém, reduzir o fenômeno da alienação, nas suas múltiplas formas, aspectos e dimensões, à alienação econômica, tal como jamais lhe ocorreu reduzir todo o trabalho humano ao trabalho diretamente empenhado na produção econômica.

A pluridimensionalidade é fundamental na alienação, tal como o fenômeno é visto pelos marxistas.

Semelhante afirmação é feita pelo próprio Marx, n’A Ideologia Alemã:

[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato esse é um ato histórico, uma exigência fundamental de toda a história, que tanto hoje como há milênios deve ser cumprido cotidianamente e a toda hora, para manter os homens com vida. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 53)

Aqui fica evidente que a produção dos meios vitais – portanto, o aspecto econômico-produtivo dos indivíduos vivos – é o “primeiro pressuposto de toda a existência humana” e o “primeiro fato histórico”, mas jamais o único. Destarte, imputar a Marx a afirmação de que o homem reduz-se à estrutura econômica da sociedade ou que o único sujeito da história é a sociedade em sua estrutura econômica, resulta numa adulteração de seu pensamento[99]. Não é demais relembrar, como visto no item anterior, que o materialismo marxiano decorre de seu nominalismo; e, assim, para o nominalismo, a sociedade ou a história não passam de um nome, de um sujeito metafísico – posição à qual Marx adere.

Não se deve partir da ideia, do nome, para, então, chegar ao homem – como acontece na filosofia especulativa; ao contrário, deve-se partir do próprio homem. Esta é a perspectiva marxiana (a citação, embora longa, merece ser transcrita):

Ao contrário do que sucede na filosofia alemã, que desce do céu para terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, dito de outro modo, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação e representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se, sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir de seu processo na vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital. E mesmo as formulações nebulosas do cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material que se pode constatar empiricamente e que se encontram sobre bases materiais. Desse modo, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que elas correspondem, perdem toda a aparência e autonomia. Não têm história nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir da sua realidade, também o seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 51-52)

As críticas marxianas, aqui, são desferidas contra a filosofia hegeliana que parte da Ideia, do pensamento e da consciência para chegar ao homem. Mesmo Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner continuam presos à perspectiva idealista, porquanto as suas propostas de emancipação humana partem sempre do pensamento, da crítica, da consciência. Tais perspectivas apenas reproduzem a ideologia burguesa da qual tais filósofos não conseguiram se desgarrar. Marx prossegue esclarecendo a sua concepção materialista da história:

Não se trata, como na concepção idealista da história, de buscar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer sempre no solo real da história; não de explicar a práxis a partir da ideia, mas de explicitar as formações ideológicas a partir da práxis material; chega-se, em consequência disso, ao resultado de que todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser resolvidos por força da crítica espiritual [intelectual], pela redução à “consciência de si” ou pela transformação em “fantasmas”, “obsessões”, “visões”, etc. – mas só podem ser dissolvidos pela derrubada prática das relações reais das quais brotam essas tapeações idealistas; não é a crítica, mas a revolução, a força motriz da história, assim como da religião, da filosofia e de qualquer outro tipo de teoria. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 65-66)

A práxis revolucionária é, aqui, retomada como forma de suprassunção do estranhamento ínsito ao homem no modo de produção do capital. Não basta apenas tomar consciência do estranhamento, é preciso alterar as circunstâncias para suprimi-lo. Por outras palavras, não basta afirmar que “os homens têm necessidade uns dos outros” – afirmação vulgar –, pois “para o verdadeiro comunista o importante é derrubar essa ordem existente” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 70).

A condição de estranhamento opõe capitalista e proletariado. Tal contradição consubstancia a chamada luta de classes – fenômeno que Marx e Engels, longe de terem inventado ou descoberto, apenas formularam os “princípios gerais de interpretação” dos fatos em que ele se apresenta (KONDER, 2009, p. 51). Tal luta de classes repousa sobre a divisão do trabalho. A explicação de Marx e Engels (2007a, p. 59-60) envolve, também, a sua comparação com a hipótese comunista:

[...] desde o momento em que o trabalho começa a ser dividido, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e aí permanecerá caso não queira perder seus meios de sobrevivência – já na sociedade comunista, onde o indivíduo não tem uma única atividade, mas pode aprimorar-se no ramo que o satisfaça, a produção geral é regulada pela que me dá a possibilidade de hoje fazer determinada coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar depois do jantar, segundo meu desejo, sem jamais me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.

A perspectiva de uma sociedade comunista não é uma utopia ou uma imagem idílica de uma organização imaginada. Resulta, antes, da compreensão da “íntima conexão da personalidade humana com o ambiente social” (ABBAGNANO, 1970, p. 59). E, de fato, se as relações sociais forem desalienadas e o homem, como ser social, estiver produzindo através de meios produtivos que não forem de outrem, terá liberdade de ser homem e viver em consonância com a sua própria essência. A organização social burguesa, por sua vez, decorre das próprias ideias da classe dominante (consciência burguesa):

As ideias [Gedanken] da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo sua força espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual. As ideias dominantes são, pois, nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são essas relações materiais dominantes compreendidas sob a forma de ideias; são, portanto, a manifestação das relações que forma uma classe em classe dominante; são dessa forma, as ideias de sua dominação. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 78)

Para além da necessidade de suprassunção de tal sociedade de classes, para produzir a emancipação humana numa sociedade comunista, importa aclarar um ponto central da filosofia marxiana, doravante mal compreendido e, efetivamente, desfigurado pelos comentadores de Marx: a hipótese revolucionária da apropriação das forças produtivas e da supressão da propriedade. Não se trata, aqui, de supressão de toda propriedade, como aquelas pessoais e necessárias às satisfações básicas de todo humano, mas da propriedade dos meios de produção. Para melhor entender o pensamento marxiano, importa reproduzir um esquema elaborado por Guareschi (2001, p. 47) – muito embora a totalidade deste esquema somente esteja claro em fins da década de 1850 (em especial, com o prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1857):

O proletariado não deve apropriar-se de qualquer propriedade, mas apenas dos meios produtivos (ou capital), ou seja, das terras e instrumentos de trabalho para a produção de seus meios de subsistência. Marx sintetiza as forças produtivas como sendo “propriedade privada e trabalho”, ou, por outras palavras, “trabalho acumulado ou propriedade privada e trabalho real” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 102). Com a evolução da divisão do trabalho, o estranhamento se torna cada vez mais insuportável: “À medida que a divisão do trabalho se desenvolve e a acumulação aumenta, mais se torna aguda a fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página). Exsurge, daí, dois fatos que expressam a dissolução reificante do humano ante a antropofagia da propriedade privada no modo de produção do capital:

O primeiro é que as forças produtivas aparecem como totalmente independentes e separadas dos indivíduos, como um mundo apartado ao lado deles. O que se fundamenta no fato de que os indivíduos, dos quais as forças produtivas se compõem, existem como indivíduos separados e em oposição mútua, ao passo que, por outro lado, essas forças só são forças reais no intercâmbio desses mesmos indivíduos. Por um lado, então, temos uma totalidade de forças produtivas que adquiriram como que uma forma objetiva e que, para os próprios indivíduos, não são mais suas próprias forças, mas as da propriedade privada e, por isso mesmo, são apenas as forças dos indivíduos enquanto proprietários privados. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 102-103).

Este é o quadro mais assustador do estranhamento: a propriedade privada ganha vida própria à custa da necrofilia do humano. A totalidade das forças produtivas (trabalho e capital) não pertence mais ao humano estranhado, mas à própria propriedade privada. “O trabalho, única conexão que os indivíduos ainda mantêm com as forças produtivas e com sua própria existência, perdeu para eles toda a aparência de atividade de si mesmos e só conserva sua vida atrofiando-a” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 103). A única alternativa passa a ser a revolução proletária: “Chegamos atualmente, pois, até o ponto em que os indivíduos precisam apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não só para alcançar a atividade enquanto manifestação de si, mas simplesmente para assegurar a sua existência” (MARX; ENGELS, 2007a, mesma página).

Voltando à consideração da concepção marxiana da hipótese comunista, é de se consignar que “A apropriação dessas forças não é nada mais que o desenvolvimento das capacidades individuais que correspondem aos instrumentos materiais de produção” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 104). Assim, “Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos associados, a propriedade é suprimida” (MARX; ENGELS, 2007a, p. 105). Como, entretanto, será possível a efetivação de tal apropriação? Marx responde:

Faz-se necessária uma transformação ampla dos homens para a criação em massa dessa consciência comunista e também para o êxito da causa em si. Essa transformação só será possível por meio de um movimento prático, uma revolução; essa revolução é necessária, entretanto, não só por ser a única maneira de derrubar a classe dominante, mas também porque somente uma revolução possibilitará à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do sistema antigo e se tornar capaz de instaurar a sociedade sobre novos fundamentos. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 106)

Feita a revolução com a apropriação das forças produtivas, será possível instaurar o comunismo. Embora somente mais tarde, e.g., na Crítica ao Programa de Gotha[100], Marx apresentará com algum detalhe o que entendia por comunismo, já n’A Ideologia Alemã acaba por fazer alguma referência:

O comunismo distingue-se de todos os demais movimentos que existiram antes dele, porque subverte todas as bases das relações de produção e de trocas anteriores, e porque aborda, pela primeira vez, de forma consciente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que nos antecederam, tirando de tais pressupostos o seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos reunidos. (MARX; ENGELS, 2007a, p. 107)

Não é inoportuno consignar que, ainda em vida, Marx pôde vislumbrar um lampejo de sociedade comunista, ainda que na efemeridade de 72 dias: a Comuna de Paris. E em face de sua deflagração, em 1871, Marx atuou ativamente como secretário da Associação Internacional dos Trabalhadores, e defendeu “a primeira revolução dos trabalhadores no mundo moderno e forma de emancipação social” (RAGO FILHO, 2011, p. 10) nos jornais da época: “Que é a Comuna, essa esfinge tão atordoante para o espírito burguês?” (RAGO FILHO, 2011, mesma página).

Como imagem da sociedade comunista, para além dos limites do recorte desta monografia, cumpre registrar apenas que a Comuna de Paris, sanguinariamente massacrada, não superou a luta de classes (assim como qualquer outra revolução depois dela), mas deixou um legado indelével: a certeza de que uma sociedade comunista não repousa, inane, no imaginário do proletariado, mas apresenta-se como uma efetiva e realizável possibilidade de suprassunção do estranhamento, de reapropriação da essência humana e de verdadeira conquista da emancipação social.

Na altura de 1845-1846, com A Ideologia Alemã, o caminho para a realização da filosofia, propugnado desde a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, já está definido. Hegel e Feuerbach, com importância relativizada, são deixados para trás[101] pelo jovem Marx: “Em 1845-1846, Hegel e Feuerbach passam a ter importância relativizada na elaboração do novo patamar do vigoroso pensamento marxiano que então se inicia. Encerra-se o ciclo da filosofia clássica alemã: a filosofia enquanto filosofia começa a ser ultrapassada por um pensamento disposto a efetivar-se nos combates da vida social” (FREDERICO, 2009, p. 208).

Será possível, agora, respondermos às indagações preambulares, acerca da essência do homem na concepção do jovem Marx?

2.9. A essência do homem na concepção do jovem Marx

Neste tópico nos restringiremos à apresentação das conclusões atingidas, após a análise das obras marxianas de juventude, compreendidas entre 1843 e 1846, ou melhor, da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel até A Ideologia Alemã. No item 2.1, formulamos algumas indagações. Agora cumpre respondê-las.

De fato, há um conceito de homem no jovem Marx que, aos poucos, vai se delineando e se aclarando. Trata-se de um desenvolvimento em processo. Dos Manuscritos de Paris à A Ideologia Alemã, o conceito se torna mais palpável. Quase acabado.

O que é o homem em sua essência ou natureza? Ou antes, há uma essência humana?

Embora não haja uma essência ou natureza humana em geral, fixa, imutável, tal como é afirmado por Abbagnano (1970, p. 53), dado que “o ser do homem é sempre històricamente condicionado pelas relações em que o homem entra com outros homens e com a natureza, pelas exigências do trabalho produtivo” (ABBAGNANO, 1970, mesma página), ela existe. Trata-se do trabalho, como afirmado por Vázquez (2011, p. 406) e como reconhecido por Marx, desde os Manuscritos de Paris. 

No entanto, “essa essência só se realiza em sua existência como essência alienada” (VÁZQUEZ, 2011, p. 406). Por conseguinte, “a essência do homem está divorciada de sua existência” (VÁZQUEZ, 2011, mesma página), vez que, no contexto do modo de produção do capital, a essência humana encontra-se alienada. De fato, “a essência do homem nunca se deu efetiva, real ou historicamente” (VÁZQUEZ, 2011, mesma página). A Comuna de Paris (1871), bem como as Revoluções Russa, Chinesa, Cubana, Sandinista etc. – estas últimas eclodidas no Século XX –, foram tentativas incompletas de reapropriação da essência humana. Nenhuma delas conseguiu efetivamente implantar uma sociedade comunista.

O homem é um ser social. Além de produzir e reproduzir a sua existência, além de autoproduzir-se, o homem o faz social e historicamente. O homem encontra-se umbilicalmente ligado à natureza, seu corpo inorgânico. Não há homem sem outros homens e sem a natureza. A consciência do homem é o reflexo das relações de produção, da sua atividade produtiva, social e historicamente determinada. O conjunto das relações produtivas materiais do homem consubstancia uma estrutura econômica, base sobre a qual se erige uma superestrutura jurídica, política, pedagógica, enfim, ideológica. Portanto, não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao invés disto, é o ser social, produtor, autoprodutor e histórico – ou seja, o homem vivo, um indivíduo determinado, que antes de tudo precisa comer, beber, vestir-se e morar –, com suas relações de produção, que determina a sua própria consciência.

O fato de o homem encontrar-se estranhado, no atual modo de produção, não implica na impossibilidade de recuperação de sua essência alienada. O homem não é mera passividade, pois é um ser ativo e apaixonado. Na atividade, na práxis revolucionária, encontra-se a prioridade ontológica do ser social que constitui o homem. Nas palavras de Lessa e Tonet (2011, p. 119), a tese central do pensamento marxiano é: “somos os artífices de nossa própria história”. Tese esta, entendemos nós, superior à perspectiva antropológica – mas não menos bela! – de um Giovanni Pico Della Mirandola, porquanto fulcrada no materialismo histórico.

A hipótese comunista, que apregoa a apropriação proletária da totalidade das forças produtivas, é a resposta insofismável do fim para o qual o homem deve organizar-se, para prática e ativamente realizar a inevitável revolução social. É numa sociedade sem classes que o homem superará a condição miserável e incômoda de estranhamento que o reifica – condição esta que sob as estruturas societais do modo de produção capitalista, somente tende a se agudizar. É na sociedade comunista que o homem haverá de emancipar-se e viver na integralidade das suas capacidades e na inteireza de seu ser social. Este há de ser o verdadeiro “reino da liberdade”!

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Sobre o autor
Rony Emerson Ayres Aguirra Zanini

Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho. Especialista em Direito Público. Bacharel em Filosofia. Advogado Trabalhista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANINI, Rony Emerson Ayres Aguirra. O conceito de homem no jovem Marx (1843-1846). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3518, 17 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23737. Acesso em: 22 dez. 2024.

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