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Tributos finalísticos: relação jurídico-tributária e legitimação constitucional

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28/02/2013 às 14:06
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Nos tributos finalísticos, depois da extinção da obrigação tributária principal, e mesmo depois da alocação orçamentária dos recursos arrecadados, a relação jurídica estabelecida entre sujeito ativo e passivo se mantém até a fase de execução das despesas.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar os vínculos jurídicos que defluem da relação jurídico-tributária  estabelecida entre contribuinte e Fisco, especialmente no que tange aqueles tributos dotados de finalidade constitucional expressa, demonstrando, desse modo, que a extinção da relação jurídica não só não se dá no momento da extinção da obrigação tributária principal, como que com essa não se confunde.

Palavras-chave: Tributos finalísticos. Obrigação tributária. Relação jurídica tributária. Legitimação. Destinação.


1. Introdução.

Com o fito de financiar a atuação do Estado nos campos social e econômico, a Constituição de 1988 permite a criação de tributos específicos para este mister, que não se legitimam em razão da existência de um gasto público genérico, mas sim de gastos específicos, de modo que somente se e enquanto esses gastos existirem, tais tributos irão se legitimar.

Nesse quadro, encontramos algumas espécies tributárias cuja instituição prevê o respeito às finalidades erigidas pela Constituição, existindo, portanto, uma necessária vinculação entre meios e fins, entre a o produto da arrecadação e o efetivo destino do dinheiro arrecadado.

No presente estudo, buscaremos demonstrar que não é somente a destinação abstrata, contemplada no plano legal, que vincula e interessa aos sujeitos da relação tributária, senão também a destinação concreta, empiricamente constatável. Somente assim os gastos decorrentes dessas específicas exações serão validamente realizados.


2. Os tributos finalísticos.

A tributação, sob o manto da Constituição de 1988 não se resume a sua função fiscal, constituindo mais do que um mero instrumento para a arrecadação de recursos tendentes ao financiamento e à manutenção das atividades próprias de um Estado liberal, norteado pela teoria do laissez-faire laisse-passer.[1] Assumindo a função de financiar uma atuação direta do Estado nos campos social e econômico, permite a Carta Magna a criação de tributos específicos para este mister, que não se impõem em razão da existência de um gasto público genérico, mas sim de gastos específicos, de modo que somente e enquanto esses gastos existirem, tais tributos irão se legitimar. Nestes casos, o consequente da norma tributária ganha importância para efeitos de identificação das espécies tributárias, pois deverá explicitar em seu comando o destino do produto da arrecadação tributária. Assim, nos tributos finalísticos, a identificação da espécie tributária deverá se ater a análise tanto da hipótese quanto do mandamento. A guisa de exemplo, no caso das taxas, tendo em vista que o gasto público condiciona o surgimento do fato gerador, sua inferência se dará pela análise da hipótese, sendo imperativa a descrição de uma atuação estatal nesta. Quanto às contribuições especiais e aos empréstimos compulsórios, em razão da hipótese normativa descrever qualquer fato ou situação do contribuinte, tal como ocorre nos impostos, será pelo destino da arrecadação explicitado no mandamento que identificaremos sua natureza distinta.

Diante dos fins expressamente previstos pela norma constitucional quando da outorga das competências tributárias, pode-se inferir a existência de tributos não finalísticos e de tributos finalísticos, cujo produto de sua arrecadação é afetado a algum fim constitucionalmente desejado. Mesmo assim, não seria errado dizer, contudo, que todas as espécies tributárias previstas na Constituição são detentoras de alguma finalidade que as legitima.

As taxas, como sabemos, são tributos destinados a remunerar o Poder Público pela  prestação, efetiva ou potencial, de serviços ao contribuinte, ou pela fiscalização das atividades desenvolvidas por esse contribuinte. Assim, inexistindo atuação estatal, inexiste o fato gerador da taxa. Fica fácil, portanto, conceber a finalidade dessa exação. Ela existe para recompensar financeiramente o Poder Público por um gasto decorrente de um serviço prestado ou posto à disposição.

O caso das contribuições de melhoria não é tão diferente. Entendemos que elas são exigidas do contribuinte com o fito de custear, em concorrência com o Poder Público, o custo de uma determinada obra da qual decorra, para esse mesmo contribuinte, alguma valorização imobiliária. Também não é difícil ver a finalidade dessa exação. Serve para arcar com parte do custo de uma obra que acabou beneficiando algumas pessoas em particular.

A finalidade do empréstimo compulsório também não é difícil de ser encontrada. Esse tributo excepcional e transitório pode ser criado para atender a algumas situações de fato que condicionam sua própria instituição. Assim, havendo guerra ou sua iminência, alguma calamidade pública ou investimento público que seja urgente ou de relevante interesse da nação, a exação poderá ser instituída para respaldar essas situações de crise.

As contribuições especiais também são dotadas de finalidade. De acordo com a Constituição, essas poderão ser instituídas tanto para financiar direitos sociais ao cidadão, quanto para custear despesas com a direção ou indução de alguma atividade econômica, quanto para fornecer recursos a órgãos que representem categorias profissionais ou econômicas.

Veja-se, portanto, que todas essas espécies tributárias detêm finalidades. Logo, todas elas seriam finalísticas. Embora a indução não esteja errada, ela não exprime a sutil diferença existente entre as duas primeiras e as duas últimas figuras tributárias tratadas acima.

É que, enquanto as duas primeiras se justificam em função de algum tipo de atuação estatal prévia, estando essa atuação prevista no arquétipo constitucional de incidência desses tributos, as duas últimas se justificam e somente existem em razão das finalidades a que se propõem a financiar. A finalidade, para os empréstimos compulsórios e contribuições especiais, além de condicionar o exercício da competência impositiva, é o elemento que permite os diferenciar como espécies autônomas. Nos outros dois tributos é diferente. Os fatos que ensejam suas instituições e cobrança são o bastante para identificá-los e diferenciá-los. A finalidade, nessas figuras, não é mero elemento conjectural, mas também não é por sua análise que serão distinguidas das demais. Já no caso dos empréstimos compulsórios e das contribuições especiais, salvo em algumas ocasiões, a materialidade da norma não dará qualquer indício da espécie tributária, devendo o intérprete voltar seus olhos para a finalidade se quiser saber algo sobre o tributo que  está analisando.

De outro lado, é da essência da contribuição a afetação das receitas a um determinado órgão,  ou fundo, ou gasto para atender às finalidades previamente determinadas. Sendo ela instituída para atender a finalidades já traçadas, não faria sentido que o produto de sua arrecadação tivesse destinação diversa do que aquela prevista na Constituição.

E inegável que os tributos que mencionamos aqui, com exceção dos impostos, podem ser identificados como possuidores de finalidade. A bem da verdade, até esses possuem uma inegável finalidade intrínseca que, contudo, desconsideraremos para fins de classificação e distinção das espécies tributárias.

Entretanto, para fins do presente o trabalho, é preciso deixar registrada a seguinte observação: toda vez que falarmos de tributos finalísticos, estaremos fazendo menção aos empréstimos compulsórios e as contribuições especiais, pois são essas as figuras identificáveis eminentemente pela análise de sua finalidade.


3. Relação jurídica e obrigação tributária.

A nosso ver, existe uma questão de cunho epistemológico para a qual os tributaristas não deram a devida atenção. Na quase totalidade das obras pesquisadas, especialmente naquelas cujo corte metodológico restringe-se à seara do Direito Tributário, constatamos uma imprecisão na abordagem de um fenômeno inerente ao direito como um todo: o da relação jurídica.[2]

Dois são os pontos de convergência entre a quase totalidade dos autores que divagam sobre relação jurídica, em especial a relação jurídica de caráter tributário. O primeiro deles, que a nosso ver não sucede qualquer tipo de problema, diz respeito ao entendimento que se tem acerca do que seria relação jurídica.

O conceito usual de relação jurídica não é novo, e pode ser encontrado em boa parte dos tratadistas clássicos do Direto. Kelsen, fazendo referência àquilo que chama de doutrina tradicional, traz inicialmente a definição de relação jurídica como sendo a “relação entre um dever jurídico e o correspondente direito (berechtigung)”.[3]

Karl Engisch, por sua vez, vê a relação jurídica como uma hipótese legal que, caso preenchida no mundo fenomênico, é capaz de gerar direitos e deveres aos sujeitos que porventura guardem alguma relação com o fato jurídico previsto na hipótese legal em questão.[4]  

Enrique R. Aftalión, José Vilanova e Julio Raffo, entendem a relação jurídica como um fênomeno eminentemente do direito positivo, pois que somente existirá relação se houver alguma norma que estatua um determinado dever e seu direito correspondente. Desse modo, a relação jurídica se apresenta quando alguma norma impõe a uma pessoa o dever de cumprir determinado ato, e faculta à outra a possibilidade de exigir esse cumprimento.[5]

Vicente Ráo, pautando-se nos ensinamentos de Savigny, entende a relação jurídica como um reconhecimento normativo apto a conferir a determinadas pessoas ou grupos sociais a capacidade para  a aquisição de direitos e deveres, e seu consequente exercício. Cada relação entre pessoas seria determinada por uma regra de direito, e essa regra fixaria, para cada uma das pessoas, um domínio dentro do qual sua vontade poderia ser exprimida.[6]

Para Orlando Gomes, a relação jurídica teria como pressuposto um fato que  somente passaria a adquirir significação jurídica caso a lei o determinasse como suficiente e idôneo à produção de determinados efeitos. Desse modo, o incorporar significação jurídica, mediante juridicização, o fato originaria uma relação concreta e típica entre sujeitos determinados ou determináveis.[7]

Vê-se, portanto, que o conceito que se tem acerca do que seria uma relação jurídica não destoa em territórios diferentes, trazendo consigo sempre um núcleo mínimo de exatidão do qual não há desacordo: trata-se de uma relação entre duas ou mais pessoas decorrente de uma previsão legal que institui direitos e deveres recíprocos.

O segundo ponto, contudo, parece passar sempre à margem de uma análise mais aprofundada e acaba por confundir coisas que são, por essência, diferentes.  Grande parte dos tributaristas enxerga a relação jurídico tributária como sinônimo de relação obrigacional, de modo que relação tributária decorrente da concretização da hipótese, exaure-se e consume-se inteiramente na obrigação de pagar o tributo. Como veremos, essa relação impositiva, irreflexiva e assimétrica, não deixa de estar contida na relação jurídica instaurada com o acontecimento da hipótese. Com efeito, a relação obrigacional é um dos vínculos existentes após o surgimento da relação jurídica. Mas, de modo algum, é o único. Esse, contudo, parece ser o pensamento da maioria daqueles que já se debruçaram sobre o tema.

Albert Hensel, por exemplo, já afirmava que a relação jurídica no Direito Tributário orienta-se, por força de sua própria natureza, a satisfazer um determinado crédito, dando-se aí sua extinção.[8] Klaus Tipke, de maneira ainda mais sucinta, identificava o conceito de relação jurídico-tributária como sinônimo de relação obrigacional, devendo o intérprete se atentar para os comandos normativos emanados do direito positivo vigente para então encontrar os momentos de nascimento e extinção da relação obrigacional e, por conseguinte, da relação jurídica com um todo.[9]

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Por outro lado, Fernando Sainz de Bujanda, ao investigar a transição da relação de potestade existente entre Estado e cidadão para uma relação jurídica calcada na legalidade, percebe que essa concepção unitária de relação jurídica, tão presentes em Hensel e Tipke,  adstritas a reconhecerem apenas um vínculo na relação jurídica formada entre Estado e Contribuinte, não consegue captar o conglomerado de vínculos jurídicos – direitos, obrigações, deveres e faculdades – que de fato existem quando a relação entre Estado e contribuinte ganha vida.[10]

O autor espanhol, mesmo reconhecendo acertos na teoria das relações jurídicas concêntricas, elege a obra de Archille Donato Giannini e sua teoria da relação jurídico-tributária de natureza complexa como sendo o principal paradigma para o examine dos distintos vínculos que cercam a relação jurídica.[11]. Ao fazer o resumo expositivo da teoria do jurista italiano, Fernando Sainz de Bujanda sumariza o pensamento de  Archille Donato Giannini na seguinte passagem:[12]

Efectivamente, Giannini  señala que la determinación de los casos em que se debe el impuesto, de las personas obligadas al pago, de su cuantía, de los modos y forma en que el propio impuesto debe ser liquidado y recaudado, es materia que en el Estado moderno aparece regulada por el ordenamiento jurídico con disposiciones imperativas, a cuya observancia quedan obligados tanto los órganos del Estado como las personas sujetas a su potestad. De estas disposiciones, por tanto, surgen entre el Estado y los contribuyenes derechos y deberes recíprocos, que forman el contenido de una relación especial: la relación jurídico-impositiva.

Daí conclui Archille Donato Giannini:[13]

De tal modo que la relación jurídica impositiva tiene un contenido complejo, puesto que de ella derivan, de un lado, poderes, derechos y obligaciones de la autoridad financiera, así como obligaciones, positivas y negativas, y derechos, de las personas sometidas a su potestad, y de otra parte, con carácter más específico, el derecho del ente público a exigir la correlativa obligación del contribuyente de pagar la cantidad equivalente al importe del impuesto debido em cada caso.

Como bem se vê, a relação jurídica de cunho tributário não se limita à obrigação principal, e nem poderia, dado que o conceito universal do instituto (conceito lógico-jurídico) pressupõe um plexo de vínculos que não se esgotam naquele de cunho pecuniário, mesmo que se entenda ser esse o objeto principal da relação jurídica complexa. De fato, como vimos, diversos foram os autores que reconheceram na relação jurídica a existência de um feixe de direitos, poderes e deveres capazes de serem arguidos pelos sujeitos que são parte da relação.

Assim, o fato da obrigação tributária principal nascer com a concretização do fato gerador, e morrer com adimplemento do crédito, pouco diz a respeito da relação jurídica instituída entre o ente tributante e o contribuinte. Seria o mesmo que entender, nos dias de hoje, que toda obrigação tributária teria caráter patrimonial, entendimento esse já superado graças a José Souto Maior Borges.[14]

Em sentido semelhante posiciona-se atualmente Paulo de Barros Carvalho, para quem o estudo da relação jurídica tributária não se pode mais pautar exclusivamente sobre a análise da obrigação principal. Veja-se:[15]

Sob o signo de certa insegurança e palmilhando caminho pleno de obstáculos, nossos autores tomaram consciência da impossibilidade de estudar-se a relação jurídica tributária, tão somente perlustrando as implicações do objeto do vínculo, ou mesmo da pessoa jungida ao implemento da prestação. Tornava-se imperioso inquirir, para o exame completo dos laços abstratos que o direito positivo prevê, sobre a posição do sujeito ativo, ou seja, sobre aquela entidade que se acha investida do direito subjetivo, ou do poder; ou poder-dever, no quadro da realização dos anseios impositivos do Estado.[...]

Aspecto que merece ser considerado, no âmbito do conceito de relação jurídica, é a circunstância de ser um vínculo entre pessoas, reflexão que abriu margem a intermináveis disputas acadêmicas. Prevalece hoje, contudo, sobre o fundamento da essencial bilateralidade do direito, a tese da necessidade impostergável de, pelo menos, dois sujeitos para que se possa configurar o liame jurídico.

Assim, em sendo a bilateralidade condição de existência de uma relação jurídica, e sabendo que a relação jurídico-tributária pressupõe um plexo de direitos e deveres, tais como o dever do contribuinte em adimplir com a obrigação e o direito do contribuinte em ver que o montante pago a título de determinado tributo foi destinado ao fim através do qual a exação se legitima, é imperativo a superação da tese segundo a qual a relação jurídico-tributária se extingue com a extinção da obrigação principal.

3.1. Conceitos lógico-jurídicos e jurídicos-positivos.

Em definição ofertada por Edvaldo Brito, conceito seria “uma unidade formal  que reúne a multiplicidade dos fenômenos segundo vínculos que guardam entre si e a importância de concebê-lo está em que o saber científico é por natureza sistemático e um sistema somente é possível mediante 'conceitos'”.[16] Não obstante, o conceito pressupõe um sistema de axiomas não-contraditórios, completos e independentes, capazes de revelar objetividade e de torná-lo inconfundível com categorias similares.[17]

Em um sistema conceitual, nem todos os conceitos ocupam planos idênticos. Existem aqueles que possuem âmbito de validez específico e existem também aqueles que possuem âmbito de validez geral. Como bem aponta Fredie Didier Junior, “o Direito terá o seu conteúdo determinado por circunstâncias históricas e espaciais, sendo muito difícil criar uma teoria que sirva a todos os ordenamentos jurídicos”. Por essa razão, prossegue o autor, “devem ser separados os conceitos que servem para a compreensão do fenômeno jurídico onde quer que ele ocorra, dos conceitos restritos e construídos a partir de determinado ordenamento”.[18]

Aos conceitos universais dá-se o nome de conceito lógico-jurídico, enquanto que aos conceitos não universais que exigem do sujeito o exame de determinado sistema de direito positivo, dá-se o nome conceito jurídico-positivo.

Constrói-se o conceito jurídico-positivo analisando-se uma realidade normativa específica, e sua aplicabilidade restringe-se a ela. Sua validez, portanto, limita-se tanto espacialmente quanto temporalmente. Ademais, por depender da análise de determinada ordem jurídico-positiva, seu conhecimento somente se dá a posteriori, após o exame das normas vigentes naquele ordenamento.

Por outro lado, o conceito lógico-jurídico é tem pretensão de validade universal, servindo para auxiliar os operadores do Direito na compreensão de qualquer ordenamento jurídico. Fredie Didier Júnior, com arrimo em Felix Somló, afirma ser o conceito lógico-jurídico “indispensável de qualquer contato científico com o direito”.[19]

Ele é dado apriorísticamente, sendo alheio a qualquer realidade jurídica determinada. São conceitos que não são obtidos de algum ordenamento, mas são utilizados para a compreensão dos ordenamentos. São formulados a partir da observação do fenômeno jurídico, procedendo, como todo conceito, da experiência.[20]

São identificáveis e, por conseguinte, distinguidos dos conceitos normativos por serem conceitos comuns a todos os ordenamentos, sendo sua definição invariável extraterritorialmente. Apresentam, segundo Fredie Didier Júnior, dupla função, pois “servem de base à elaboração dos conceitos jurídico-positivos e auxiliam o operador do Direito na tarefa de compreender, interpretar e aplicar o ordenamento jurídico. Têm, sobretudo, função heurística: permitem e facilitam o conhecimento do Direito”.[21]

Com esses apontamentos em mente, de antemão é possível concluir que o conceito de relação jurídica e obrigação tributária, em alguns casos entendidos – equivocadamente - como semelhantes, são conceitos pertencente a categorias diferentes. O exame desses conceitos é importante para demonstrar a perenidade da relação jurídica frente à efemeridade da obrigação tributária, bem como para rechaçar o astuto argumento muitas vezes utilizado de que a relação jurídica tributária existente entre Fisco e contribuinte se extinguiria no mesmo momento da extinção da obrigação. A análise da natureza dos institutos ajudará no rebate dos defensores da tese de que a afetação ou desafetação não interessaria ao Direito Tributário, haja vista que a destinação do produto da arrecadação tributária nada tem a ver com a relação jurídica instaurada entre Fisco e contribuinte, dando-se em momento posterior ao término do(s) laço(s) que prendia(m) ambos os sujeitos com direitos e obrigações recíprocas.

3.2. Relação jurídica como conceito lógico-jurídico.

O conceito de relação jurídica é conceito fundamental e mostra-se sob reserva da teoria geral do direito. Não se restringe, desse modo, ao direito privado ou ao direito público, nem é obtido exclusivamente através da análise do ordenamento jurídico brasileiro.

O conceito de relação jurídica transcende o campo das ciências jurídicas especializadas.  Ele é encontrado mediante processo de generalização empírica, sendo onipresente nos ordenamentos jurídicos. José Souto Maior Borges identifica no conceito de relação jurídica, assim como nos conceitos de dever jurídico, objeto e direito subjetivo, verdadeiros pressupostos fundamentais para a ciência jurídica.[22]

Por assim ser, seu conhecimento prévio condiciona o conhecimento dos demais institutos do direito, e por essa razão cumpre-nos fazer a seguinte admoestação: seu conteúdo não é moldável ao gosto particular, de modo a satisfazer pretensões intelectuais pessoais.

Se o conceito de relação jurídica é um conceito universal, e sabendo que esse conceito pressupõe um plexo de direitos e deveres recíprocos entre os sujeitos da relação, confundi-lo com uma relação de imposição unidirecional seria, no mínimo, uma falha epistemológica.

Não raramente, contudo, alguns conceitos particulares apresentam-se dentro de conceitos gerais, e esses naqueles, como bem explica José Souto Maior Borges:

O conceito fundamental de relação jurídica é conceito relativamente material, no confronto com o conceito de relação jurídica, como estrutura que busca desvencilhar-se de qualquer conteúdo jurídico-dogmático. Os conceitos da teoria geral só com os temperamentos indicados podem ser havidos como formais (relativamente formais): a teoria geral objetiva descrever e explicar formalmente, ou seja, com abstração dos conteúdos do direito positivo, as estruturas materiais das províncias dogmáticas do direito positivo (como caracterizadas essas estruturas nas disciplinas jurídicas especializadas). São, como se vê, conceitos universais embutidos em normas particulares.

Tal passagem demonstra que podem existir similitudes entre conceitos notoriamente pertencentes à categoria dos lógico-positivos e conceitos pertencentes à categoria jurídico-positiva. Assim como na obrigação, que é conceito jurídico-positivo, está presente o conceito fundamental de dever; na relação jurídica, que é conceito lógico-jurídico, contempla-se também o conceito de obrigação. Ou seja, nenhuma generalização formal ou material é absoluta. Até porque, “a generalização da teoria geral é uma generalização empírica, obtida através de dados da experiência jurídica, dados normativos”. Conclui-se, portanto, “que tanto na teoria geral quanto na dogmática jurídica, há conteúdos de significação material”.[23]

Isso não quer dizer, todavia, que são idênticos os conceitos que porventura sejam carreados de conteúdos de significação material similares. Isso porque, os conceitos gerais, tais como o conceito de relação jurídica, desconsideram conteúdos específicos de significação das categorias jurídicas obtidas nas ciências particulares do direito, como a obrigação tributação, sua patrimonialidade e sua extinção.[24] Não há, pois, coextensividade conceitual entre o conceito de relação jurídica e o de obrigação.

3.3. A perenidade da relaçao jurídico-tributária frente à efemeridade da obrigação tributária nos tributos finalísticos.

Muitos são os autores que negam importância à efetiva destinação do produto da arrecadação dos tributos finalísticos. Geralmente com supedâneo nos art. 4° e 113, do Código Tributário Nacional, parte da doutrina insiste em afirmar que a relação jurídica instaurada entre Fisco e contribuinte no momento da concretização do fato gerador chega a seu fim assim que extinta a obrigação tributária principal.

O raciocínio adotado, em que pese não estar completamente incorreto, peca pelo descuido e superficialidade com que trata a relação jurídica em si. Como vimos, a relação jurídico-tributária existente entre Fisco e contribuinte é, antes de tudo, uma relação jurídica complexa, dando ensejo ao nascimento de diversos vínculos entre sujeito ativo e sujeito passivo.

Ora, se os tributos finalísticos são instituídos para que determinadas finalidades erigidas pela Constituição sejam alcançadas, existindo, portanto, uma necessária vinculação entre aquilo que se arrecada e os gastos públicos específicos, é certo que todos os vínculos entre sujeito ativo e sujeito passivo não se esgotam tão-somente no momento de pagamento do tributo, estendendo-se também para alcançar a esfera financeira. Com efeito, se é o gasto público específico que estabelece a justificação imediata e direta do ingresso tributário, não é possível analisar os tributos finalísticos com os olhos fechados para o destino que efetivamente é dado aos recursos advindos dessas exações.

Partindo da premissa que a relação jurídico-tributária é uma relação complexa, é possível suscitar que um dos vínculos instaurados entre sujeito ativo e passivo prolonga-se até a fase de execução dos gastos, muito embora o vínculo de que trate a obrigação tributária principal – levar dinheiro aos cofres públicos – tenha sido extinto no momento do pagamento do quantum debeatur pelo sujeito passivo. Isso porque, como se disse, o ingresso não está desconectado do gasto que deverá suportar: está é, inclusive, uma circunstância essencial para a definição do regime jurídico-constitucional dos tributos finalísticos. Daí dizer que a plena eficácia da relação jurídica complexa instaurada dependerá, inexoravelmente, da efetiva destinação dos recursos oriundos dos tributos finalísticos e da execução das previsões orçamentárias relativas a esses gastos.

Disso decorre que os sujeitos passivos dos tributos finalísticos têm legítimo interesse não só na legalidade da alocação orçamentária dos ingressos decorrentes dessas exações, como também na legalidade da execução dos gastos a que deram causa. Com efeito, a legalidade do gasto afetará a legalidade do ingresso, já que ligados. Assim, no caso dos tributos finalísticos, não há como declarar extinta a relação jurídica existente entre sujeito ativo e sujeito passivo em função do simples pagamento do tributo. O pagamento, de fato, resultará na extinção da obrigação tributária[25], mas o vínculo que se estabeleceu entre os sujeitos da relação sobreviverá, porquanto essa relação, por ser complexa, comporta diversos vínculos, sendo que um deles se estenderá até a fase orçamentária, momento no qual os gastos serão realizados. Em outras palavras: depois da extinção da obrigação tributária principal, e mesmo depois da alocação orçamentária dos recursos arrecadados, a relação jurídica estabelecida entre sujeito ativo e passivo se mantém até a fase de execução das despesas.

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Sobre o autor
Willer Costa Neto

Advogado. Mestrando em Direito Administrativo pela UFBA. Graduado pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA NETO, Willer. Tributos finalísticos: relação jurídico-tributária e legitimação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3529, 28 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23832. Acesso em: 19 abr. 2024.

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