7 - A resolução da antinomia aparente pela interpretação consolidada na jurisprudência do STJ: análise do acórdão paradigma no REsp 1.251.933/PR
Logicamente, a discussão sempre esteve longe ser pacífica. Por esse motivo, e também por envolver interpretação da lei federal, a merecer uniformidade em apreço à segurança jurídica do sistema, a aparente antinomia existente entre a regra do Código Civil (art. 206, § 3º, V) e a do Decreto 20.910/32 (art. 1º), relativamente ao prazo prescricional das ações indenizatórias propostas contra a Fazenda Pública, foi submetida ao exame do STJ.
O caso foi julgado pela Primeira Seção da Corte no final do ano de 2012, sob o rito dos recursos repetitivos (CPC, art. 543-C), em controvérsia constante do REsp 1.251.993/PR. O recurso especial fora interposto pelo Município de Londrina em ação de responsabilidade civil agitada por particular, que pleiteava reparação civil junto ao Estado pelos danos ocasionados ao seu veículo com a queda de uma árvore em via pública. Inconformada com o acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, que afastou a tese fazendária da prescrição da pretensão do particular ao afirmar a prevalência do prazo quinquenal do Decreto 20.910/32 (art. 1º), em detrimento do prazo trienal constante do CC-2002 (art. 206, § 3º, V), a Fazenda Pública munícipe interpôs o recurso especial que acabou por constituir-se no precedente paradigmático sobre a matéria perante o STJ. Nesse sentido, é interessante observar os argumentos de que se valeu o TJPR para decidir contrariamente ao pleito da Fazenda Pública municipal. Eis a ementa do acórdão:
Ação de responsabilidade civil - Queda de árvore situada em via pública sobre automóvel estacionado - Prescrição - Prazo trienal previsto no artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do novo Código Civil - Inaplicabilidade - prescrição quinquenal - Aplicação do artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932, lei especial, que prepondera, quando em confronto com a geral (Código Civil) - Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte. Recurso provido.
Prescreve em cinco anos todo e qualquer direito ou ação em face da Fazenda Pública (Federal, Estadual ou Municipal), inclusive ação indenizatória, nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932, que por ser lei especial, não foi revogado com o advento do Código Civil de 2002.
Nota-se que o tribunal a quo valeu-se do critério da especialidade, largamente estudado na filosofia do direito, para dirimir a antinomia aparente entre os prazos trienal e quinquenal, respectivamente, do Código Civil e do Decreto 20.910/32. Para o TJPR, como o art. 1º do Decreto 20.910/32 é lei especial, deve prevalecer diante da lei geral, isto é, o Código Civil. Curiosamente, foi esse mesmo argumento que veio a capitanear a decisão da Primeira Seção do STJ sobre o assunto. Colaciono a ementa do acórdão paradigma (grifos meus):
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ARTIGO 543-C DO CPC). RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESCRIÇÃO. PRAZO QUINQUENAL (ART. 1º DO DECRETO 20.910/32) X PRAZO TRIENAL (ART. 206, § 3º, V, DO CC). PREVALÊNCIA DA LEI ESPECIAL. ORIENTAÇÃO PACIFICADA NO ÂMBITO DO STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. A controvérsia do presente recurso especial, submetido à sistemática do art. 543-C do CPC e da Res. STJ n 8/2008, está limitada ao prazo prescricional em ação indenizatória ajuizada contra a Fazenda Pública, em face da aparente antinomia do prazo trienal (art. 206, § 3º, V, do Código Civil) e o prazo quinquenal (art. 1º do Decreto 20.910/32).
2. O tema analisado no presente caso não estava pacificado, visto que o prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública era defendido de maneira antagônica nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Efetivamente, as Turmas de Direito Público desta Corte Superior divergiam sobre o tema, pois existem julgados de ambos os órgãos julgadores no sentido da aplicação do prazo prescricional trienal previsto no Código Civil de 2002 nas ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública. Nesse sentido, o seguintes precedentes: REsp 1.238.260/PB, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 5.5.2011; REsp 1.217.933/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 25.4.2011; REsp 1.182.973/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10.2.2011; REsp 1.066.063/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe de 17.11.2008; EREspsim 1.066.063/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 22/10/2009). A tese do prazo prescricional trienal também é defendida no âmbito doutrinário, dentre outros renomados doutrinadores: José dos Santos Carvalho Filho ("Manual de Direito Administrativo", 24ª Ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2011, págs. 529/530) e Leonardo José Carneiro da Cunha ("A Fazenda Pública em Juízo", 8ª ed, São Paulo: Dialética, 2010, págs. 88/90).
3. Entretanto, não obstante os judiciosos entendimentos apontados, o atual e consolidado entendimento deste Tribunal Superior sobre o tema é no sentido da aplicação do prazo prescricional quinquenal - previsto do Decreto 20.910/32 - nas ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública, em detrimento do prazo trienal contido do Código Civil de 2002.
4. O principal fundamento que autoriza tal afirmação decorre da natureza especial do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição, seja qual for a sua natureza, das pretensões formuladas contra a Fazenda Pública, ao contrário da disposição prevista no Código Civil, norma geral que regula o tema de maneira genérica, a qual não altera o caráter especial da legislação, muito menos é capaz de determinar a sua revogação. Sobre o tema: Rui Stoco ("Tratado de Responsabilidade Civil". Editora Revista dos Tribunais, 7ª Ed. – São Paulo, 2007; págs. 207/208) e Lucas Rocha Furtado ("Curso de Direito Administrativo". Editora Fórum, 2ª Ed. – Belo Horizonte, 2010; pág. 1042).
5. A previsão contida no art. 10 do Decreto 20.910/32, por si só, não autoriza a afirmação de que o prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública foi reduzido pelo Código Civil de 2002, a qual deve ser interpretada pelos critérios histórico e hermenêutico. Nesse sentido: Marçal Justen Filho ("Curso de Direito Administrativo". Editora Saraiva, 5ª Ed. – São Paulo, 2010; págs. 1.296/1.299).
6. Sobre o tema, os recentes julgados desta Corte Superior: AgRg no AREsp 69.696/SE, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 21.8.2012; AgRg nos EREsp 1.200.764/AC, 1ª Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 6.6.2012; AgRg no REsp 1.195.013/AP, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 23.5.2012; REsp 1.236.599/RR, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 21.5.2012; AgRg no AREsp 131.894/GO, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 26.4.2012; AgRg no AREsp 34.053/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 21.5.2012; AgRg no AREsp 36.517/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 23.2.2012; EREsp 1.081.885/RR, 1ª Seção, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 1º.2.2011.
7. No caso concreto, a Corte a quo, ao julgar recurso contra sentença que reconheceu prazo trienal em ação indenizatória ajuizada por particular em face do Município, corretamente reformou a sentença para aplicar a prescrição quinquenal prevista no Decreto 20.910/32, em manifesta sintonia com o entendimento desta Corte Superior sobre o tema.
8. Recurso especial não provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. (STJ, REsp 1.251.993/PR, Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 12/12/2012, p. DJe 19/12/2012).
O acórdão do STJ, do modo como se encontra ementado, deixa ver que o tribunal superior rejeitou a tese fazendária que pugnava pela aplicação do prazo trienal do CC-2002 nas ações de indenização ajuizadas contra a Fazenda Pública. Com efeito, a Corte afastou o prazo prescricional de 3 anos do art. 206, § 3º, V, do CC, em virtude de considerá-lo "norma geral que regula o tema de maneira genérica", inidônea, portanto, a prevalecer quanto confrontada com a regra especial do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição nas ações de qualquer natureza intentadas contra a Fazenda Pública. Logo, por força do critério da especialidade, a lei geral não tem o condão de influir sobre a legislação de caráter especial, seja para alterá-la, seja para revogá-la.
Além disso, no voto do relator, Min. Mauro Campbell Marques, também ficou consignado que o Código Civil aplica-se na regência de relações eminentemente de direito privado, não tendo havido, em nenhum momento, qualquer referência expressa a que o art. 206, § 3º, V, do diploma codificado fosse aplicável à Fazenda Pública. Tampouco se poderia alegar omissão legislativa, uma vez que o legislador não repetiu a norma encartada no art. 178, § 10, VI, do CC-1916, que dispunha exatamente sobre o prazo prescricional nas ações ajuizadas contra o Poder Público.
Na verdade, o STJ apenas confirmou, agora sob a sistemática dos recursos repetitivos, uma tese que paulatinamente já estava a predominar nas decisões das Turmas de direito público da Corte desde o início de 2012. Colaciono (grifos meus):
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANO MORAL. PRESCRIÇÃO. DANOS MORAIS. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ.
1. Cuidam os autos de ação de indenização decorrente de acidente automobilístico.
2. A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que a prescrição contra a Fazenda Pública, mesmo em ações indenizatórias, rege-se pelo Decreto 20.910/1932.
3. O Tribunal a quo determinou a redução do quantum indenizatório, de acordo com a situação fática. Portanto, é inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido. Aplicação da Súmula 7/STJ.
4. Agravo Regimental não provido.
(STJ, AgRg no AREsp 36.517/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 22/11/2011, p. DJe 23/02/2012).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO DO RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 1º DO DECRETO N. 20.910/1932.
1. A Primeira Seção, no julgamento dos EREsp 1.081.885/RR, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 13.12.2010, Dje 1º.2.2011, consolidou o entendimento segundo qual nas ações contra a Fazenda Pública aplica-se o prazo prescricional quinquenal, nos termos do art. 1º do Decreto n. 20.910/32, pois o Código Civil é um "diploma legislativo destinado a regular as relações entre particulares, não tendo invocação nas relações do Estado com o particular".
2. O recurso de apelação interposto em data anterior ao julgamento dos embargos de declaração depende de sua necessária ratificação, sob pena de ser tomado por intempestivo. (Precedente: REsp 1.291.489/PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 6.12.2011, DJe 13.12.2011.)
Agravos regimentais improvidos.
(STJ, AgRg no AREsp 131.894/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 19/04/2012, p. DJe 26/04/2012).
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. PRAZO PRESCRICIONAL. DECRETO 20.910/32. QUINQUENAL. ACÓRDÃO EMBARGADO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO. DIVERGÊNCIA SUPERADA. SÚMULA 168/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO
1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o EREsp 1.081.885/RR, consolidou o entendimento no sentido de que o prazo prescricional aplicável às ações de indenização contra a Fazenda Pública é de cinco anos, previsto no Decreto 20.910/32, e não de três anos, por se tratar de norma especial que prevalece sobre a geral.
2. "Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado" (Súmula 168/STJ).
3. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no EREsp 1.200.764/AC, Primeira Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves, j. 23/05/2012, p. 06/06/2012).
Dessa maneira, a inclinação jurisprudencial turmária, até então paulatina na Corte, em favor da prevalência do prazo quinquenal do Decreto 20.910/32 nas ações indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública, consolidou-se definitivamente com o julgamento, sob a sistemática dos recursos repetitivos, do REsp 1.251.933/PR pela Primeira Seção do STJ.
8 - Conclusão
No decorrer deste artigo, busquei explicar o contexto histórico em que se situa a discussão relativa ao prazo prescricional das pretensões indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública. Com efeito, é preciso perceber que o debate se iniciou ao tempo do CC-1916, cujo regime de prescrição tinha por regra geral o prazo vintenário.
Essa circunstância levou muitos doutrinadores a se confundirem, acreditando que na redação original do CC-1916 a Fazenda Pública não gozaria de privilégio prazal, o que é manifestamente um equívoco, pois, à luz do art. 178, § 10, VI, do Código Civil revogado, já se notava que as pessoas jurídicas de direito público não estavam submetidas ao regime geral de prescrição vintenária, mas sim a um prazo mais favorável, estipulado pelo legislador em 5 anos.
Essa foi a tendência reproduzida com o Decreto 20.910/32, que praticamente repetiu, no seu art. 1º, a redação do art. 178, § 10, VI, do CC-1916, inovando apenas na extensão do prazo privilegiado, na medida em que aclarou que a prescrição de 5 anos aplicar-se-ia não apenas às pretensões constantes de demandas de natureza pessoal, mas também àquelas de natureza real como a quaisquer outras pretensões formuladas contra a Fazenda Pública. Com o advento do CC-2002 - e a consequente redução do prazo de prescrição aplicável à pretensão de reparação civil prevista no art. 206, § 3º, V, daquele diploma -, parte da doutrina inclinou-se em considerar que o prazo trienal do código civilista aplicar-se-ia aos entes fazendários. O argumento era que o elemento finalístico do Decreto 20.910/32, que foi o de dar tratamento favorecido à Fazenda Pública, autorizaria a aplicação do prazo de 3 anos estipulado pelo novo código, até porque o próprio art. 10 do Decreto 20.910/32 ressalvava a aplicabilidade, nas pretensões dirigidas à Fazenda Pública, de prazos de prescrição menores, eventualmente previstos na legislação esparsa. Com isso, restaria prejudicado o prazo quinquenal do decreto.
O STJ, no entanto, rejeitou essa argumentação doutrinária. Tendo em consideração a existência de uma antinomia aparente entre os prazos de prescrição trienal, do CC-2202, e o quinquenal, previsto no Decreto 20.910/32, considerou a controvérsia dirimível pelo critério da especialidade. Assim, ao julgar o REsp 1.251.933/PR, sob o rito dos recursos repetitivos (CPC, art. 543-C), aquele tribunal superior lavrou acórdão, onde ficou consignado que o prazo prescricional aplicável às pretensões indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública é o de 5 anos, previsto no Decreto 20.910/32, que prevalece em face do prazo de 3 anos do CC-2002 (art. 206, § 3º, V), dada sua especialidade normativa.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. rev. ampl. e atual. até a Lei 12.587, de 3-1-2012. São Paulo: Atlas, 2012. 1250 p.CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 10ª ed. São Paulo: Dialética, 2012. 830 p.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, vol. 1. 10ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 856 p. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003. 370 p.