Resumo: Este artigo descreve a evolução da doutrina da dignidade da pessoa humana, que constitui o mais importante princípio de grande parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, inclusive o brasileiro.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana. Direito Constitucional. Filosofia do Direito.
Sumário: Introdução. 1. Metodologia. 2. Evolução da doutrina da dignidade da pessoa humana. Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Se um valor pode ser escolhido como o principal, dentre os muitos que integram o sistema constitucional brasileiro de hoje, esse valor é o da dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Thiago Luís Santos Sombra:
Somado aos atributos inerentes à fundamentalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana reforça a posição ocupada pelas normas jusfundamentais no centro de gravitação do ordenamento jurídico. O sistema de direitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro – e de grande parte dos Estados Sociais e Democráticos de Direito – retira seu fundamento de existência, validade e eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana.[1]
Essa valorização do homem frente ao Estado e aos demais particulares ocorre devido a fortes motivos históricos: reflete a negação do absolutismo, herança da Revolução Francesa de 1789, e, principalmente, o repúdio ao nazifascismo, como consequência do desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).[2]
Grande parte dos ordenamentos jurídicos de hoje, comumente condicionados por esses mesmos motivos materiais, abrigam dispositivos de proteção à dignidade do homem, semelhantes em seu cerne, cujo processo de consolidação constitui o objeto deste trabalho.
2 EVOLUÇÃO DA DOUTRINA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O homem da antiguidade era enormemente vinculado ao Estado, pelas razões que Fustel de Coulanges expõe, ao tratar da Grécia e de Roma daqueles tempos:
A palavra pátria, entre os antigos, teve o significado de terra dos pais, terra patria. A pátria de cada homem era a porção do solo que a religião doméstica, ou a nacional, havia santificado, a terra onde estavam depositados os ossos de seus antepassados e por suas almas ocupada. A pequena pátria era o círculo da família, com o seu túmulo e o seu fogo sagrado. A grande pátria era a cidade, com seu pritaneu[3] e seus heróis, com seu recinto sagrado e seu território demarcado pela religião. ‘Terra sagrada da pátria’ – diziam os gregos. Não era essa uma expressão vazia. Esse chão tornara-se verdadeiramente sagrado para o homem, porque os seus deuses o habitavam. Estado, Cidade e Pátria não eram conceitos abstratos, como entre os povos modernos; representavam, verdadeiramente, todo um conjunto de divindades locais, com um culto cotidiano, e crenças que tinham grande poder sobre as almas. [...] Uma pátria com tais características não é, para o homem, apenas seu domicílio. Transpondo suas santas muralhas, ultrapassando os limites sagrados do território, ele não terá nem religião, nem vínculo social de espécie alguma. Somente na sua pátria, ele tem dignidade de homem e seus deveres. O cidadão não pode ser homem em outro lugar.[4]
A atual polissemia da palavra “dignidade”, que, dentre outras coisas, significa “qualidade de digno” ou “Cargo ou título de alta graduação”,[5] é consentânea com as instituições dos tempos antigos, nos quais essa qualidade praticamente não existia desligada de um cargo estatal. Relata o historiador francês:
se nos lembrarmos de que entre os gregos o Estado tinha poder absoluto, e que nem um só direito individual podia resistir-lhe, compreenderemos então o enorme interesse que havia para cada homem, mesmo para o mais humilde, em possuir direitos políticos, isto é, fazer parte do governo. Sendo tão onipotente o soberano coletivo, o homem só podia ser alguma coisa quando membro dessa soberania. Sua segurança e sua dignidade dependiam disso. Queria possuir direitos políticos, não para ter verdadeira liberdade, mas para possuir, pelo menos, o que a pudesse substituir. [6]
Descrevendo o surgimento da ideia das liberdades individuais, como uma parte do processo de substituição do modelo de Cidades-Estado pelo de grandes países, ensina Coulanges:
A cidade antiga fora tão poderosa e tão tirânica que o homem fizera dela razão de todo o seu trabalho e de todas as suas virtudes; a cidade fora a regra do belo e do bem, e o homem só conhecera para ela o heroísmo. Mas eis que Zenão[7] ensina ao homem a existência de uma dignidade, não de cidadão, mas de homem; que, além dos seus deveres para com a lei, o homem os tem também para consigo próprio, estando o supremo mérito do homem, não em viver ou morrer pelo Estado, mas em ser virtuoso e agradar à divindade. Virtudes um tanto egoístas e que fizeram decair a independência nacional e a liberdade, mas por via das quais o indivíduo adquiriu importância. As virtudes públicas foram desaparecendo, mas as virtudes pessoais tomaram mais evidência e surgiram no mundo. Tiveram primeiro que lutar, quer contra a corrupção geral, quer contra o despotismo. Mas pouco a pouco enraizaram-se na humanidade, e, com o tempo, tornaram-se um poder com o qual todo o governo teve de contar, e tornou-se imprescindível modificar as regras da política para que lhes fosse dado lugar. Assim, pouco a pouco, transformaram-se as crenças; a religião municipal, fundamento da cidade, extinguiu-se; o regime municipal, tal como os antigos o conceberam, teve de soterrar-se nos escombros da cidade antiga. Insensivelmente os homens libertaram-se das regras rigorosas e das formas acanhadas de governo. Idéias mais elevadas conclamavam os homens a formar sociedades mais amplas. Os homens tenderam para a unidade; foi essa a aspiração geral dos dois séculos que precederam a era cristã.[8]
Defende Ingo Wolfgang Sarlet, em seu panorama histórico sobre a dignidade, aqui resumido e complementado, que “No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo”,[9] porém Cícero teria desenvolvido “uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social”,[10] decorrente da qualidade ímpar de racional que tem o ser humano frente aos animais e outros seres.
O seguinte trecho da obra De oficiis (Dos deveres), de Cícero, representa a posição do Cônsul romano sobre o assunto, revelando também a serenidade de sua filosofia estóica:
É pertinente a todo questionamento sobre o dever sempre atentar para o quanto a natureza humana [natura hominis] excede a do gado e das demais bestas; eles nada pensam [sentiunt], a não ser na satisfação dos sentidos, à qual são arrastados com todo ímpeto; a mente humana, pelo contrário, se alimenta de aprender e cogitar, sempre investiga ou faz algo, sendo levada pelo deleite de ver e ouvir. [...] Disso se depreende que a satisfação dos sentidos corporais não é digna o bastante da superioridade humana [non satis esse dignam hominis praestantia], devendo ser desprezada e rejeitada [...] E também, se quisermos considerar o que é, em natureza, excelência e dignidade, entenderemos o quão torpe é a dissolução em luxúria e o viver delicado e mole, e quanto é honrado o viver parcimonioso, contido, severo, sóbrio.[11]
Com efeito, no modelo de Cícero, todo ser humano tem alguma dignidade. Ocorre, no entanto, que o pensador reconhece a existência de diversos “graus de dignidade [dignitatis gradus]”,[12] decorrentes do cargo ou posição social, de maneira que ainda subsiste para ele, a rigor, uma vinculação entre dignidade e status. No mesmo sentido, o jurista alemão Joern Eckert, para quem:
Em Roma, [...] a dignidade humana não tinha relevância jurídica. Cícero, por exemplo, não considerava a dignidade como uma dignidade humana universal, mas como uma dignidade específica, de acordo com a hierarquia. Ele explicitamente usou o conceito de dignidade para criticar a democracia por não respeitar as necessárias diferenciações de dignidade de acordo com a hierarquia. Mesmo quando o povo controla tudo – não importa quanta justiça e moderação ele possa demonstrar – ainda assim a igualdade em si é iníqua por desconsiderar os graus de hierarquia (aequabilitas est iniqua, cum habet nullos gradus dignitas).[13]
Assim, quanto a este aspecto do pensamento ciceroniano, aqui se adota o ponto de vista de Sarlet com o temperamento de que o romano, na verdade, ainda não desvinculava inteiramente a dignidade do cargo ou posição social.
São Tomás de Aquino (1225-1274), no baixo medievo, defende em sua Summa Theologiae que “a dignidade é algo absoluto e pertence à essência”[14] e que “o corpo humano tem a máxima dignidade, uma vez que a forma que o aperfeiçoa, a alma racional, é a mais digna”.[15] Mas, da mesma forma que o filósofo romano, Aquino admitia graus de dignidade, defendendo, e. g., que “por natureza, a mulher é inferior ao homem em dignidade e poder”.[16]
No período da Renascença, conforme Sarlet, também o “humanista italiano Pico della Mirandola, [...] partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino”.[17]
Utilizando argumentos que, em parte, lembram os de Cícero, traça Mirandola (1463-1494), em sua obra Oratio de hominis dignitate (Discurso sobre a dignidade do homem),[18] uma clara distinção entre o homem e os demais seres. Pregava o italiano:
Ó suprema bondade de Deus Pai, suprema e admirável felicidade do homem! É-lhe dado ter aquilo que deseja, ser aquilo que quer. Os animais, no momento do seu nascimento, trazem consigo ‘do ventre da sua mãe’ (como diz Lucílio) o que eles possuirão. Os espíritos superiores foram de mediato, ou pouco depois, aquilo que eles estão eternamente destinados a ser. Mas, ao homem recém-nascido, o Pai deu sementes de toda a natureza e os germes de toda a espécie de vida. Aqueles que cada um tiver cultivado desenvolver-se-ão e frutificarão nele: vegetativos, eles o farão tornar-se plantas; sensíveis, farão dele um animal; racionais, eles o elevarão à categoria de ser celeste; intelectuais, eles farão dele um anjo e um filho de Deus. E se, insatisfeito com a sorte de cada criatura, ele se recolher no centro da sua unidade, formando com Deus um único espírito, na solitária treva do Pai que está erguido acima de todas as coisas, ele ultrapassará todas elas. Quem não admiraria este nosso camaleão?[19]
Mirandola fundamentava seus escritos na cabala (teoria mística judaica) e na magia não diabólica, defendendo que ambas apoiariam a fé cristã,[20] motivo pelo qual foi declarado herege pela Igreja Católica e, consequentemente, levado à prisão.[21]
Para o jurista alemão Samuel Pufendorf (1634-1694), segundo Sarlet, “a noção de dignidade não está fundada numa qualidade natural do homem e tampouco pode ser identificada com a sua condição e prestígio na esfera social”,[22] tampouco representando uma concessão divina.
Aqui se defende, no particular, uma posição parcialmente oposta à do teórico gaúcho. Pufendorf, na verdade, considera a dignidade uma decorrência da natureza humana e, ao mesmo tempo, a maior das dádivas de Deus, como se depreende do seguinte excerto:
A natural dignidade do homem [humanae naturae dignitas] e sua superioridade sobre os outros animais requerem que suas ações sejam ajustadas por normas; sem as quais nenhuma ordem, nenhum decoro, nenhuma beleza pode ser concebida. Portanto, a máxima dignidade do homem [Maxima inde homine dignatio] é ter obtido alma imortal, luz do intelecto, faculdade de julgamento e de escolha, e ser em muitas artes solertíssimo [...] foi sem dúvida intencional, que ele pudesse empregar os poderes que recebeu para manifestar a glória de seu Criador, e para promover sua própria felicidade.[23]
E, à maneira de Cícero, Pufendorf reconhece um mínimo de dignidade em todo ser humano, mas ainda admite a existência de níveis de dignidade, conforme se extrai das seguintes palavras suas:
Uma vez que há diversos graus, por assim dizer, de servidão, então o poder dos senhores e a condição dos servos varia. Para um servo alugado por determinado tempo [...] a condição do mestre é a melhor, então tal servo deve também respeitar a seu mestre conforme sua dignidade; e se tiver feito seu trabalho enganosa ou negligentemente, está sujeito a punição por ele; desde que não vá tão longe quanto qualquer mutilação grave de seu corpo, e muito menos quanto o castigo da morte. Mas, quanto àquele servo que se oferece voluntariamente à servidão perpétua, o mestre é obrigado a dar sustento perpétuo e todas as coisas necessárias à sua vida [...] é não só sujeito aos castigos físicos do seu mestre por sua negligência, mas o mesmo pode corrigir suas maneiras, as quais devem ser ajustadas para preservar a ordem e a decência na família [...] se o crime for contra a mesma família, sendo ela independente, o chefe pode infligir até mesmo à punição capital [...] É também de praxe transmitir nossa propriedade sobre aqueles escravos que são capturados em guerra, ou comprados com nosso dinheiro, para quem desejamos, da mesma maneira que fazemos com nossos outros bens e mercadorias [...] E ainda assim a Humanidade nos manda não esquecer que aquele servo é um homem, seja como for, e portanto não deve ser tratado como fazemos com nossos móveis, usando-os ou deles abusando, ou os destruindo como desejamos. E, quando estamos inclinados a nos separarmos dele, não devemos entregá-lo nas mãos daquele que, como sabemos, abusará dele desumana e imerecidamente”.[24]
Também afirma Pufendorf, revelando admitir a existência de diversos graus de dignidade, que “Nem deve cada um ser considerado na Igreja de acordo com o status ou a dignidade que tem na comunidade, mas, essas qualificações são, por assim dizer, postas de lado ali, e ele é apenas é considerado como um cristão”,[25] que certos “Príncipes adicionaram aos seus antigos títulos o de Eleitor, e foram depois disso respeitados como pessoas em mais alta posição e dignidade que o resto”[26] e que um ofício é “esse status no qual, de uma pessoa, essencialmente por atividade intelectual, e em associação com um certo grau de dignidade, se espera que realize algo em favor de outrem”.[27]
Em conhecido trecho de sua obra, Kant, considerado o principal filósofo do Iluminismo e um dos maiores de todos os tempos,[28] sustenta:
o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. [...] Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).[29]
A compreensão desse ponto de vista, para não ser superficial, requer uma contextualização e uma breve exposição do modelo kantiano.
Platão extrai, da existência de semelhança entre coisas diversas, que haveria um mundo das idéias perfeitas, de cujas formas essas coisas se aproximavam.[30] Todas as coisas belas, por exemplo, apenas refletiriam “O Belo”. O pensador grego, que apreciava a matemática, criou sua “Teoria das Idéias” como uma transposição da geometria, na qual há, v. g., esferas perfeitas e cubos perfeitos, dos quais as esferas e cubos do mundo concreto apenas se aproximam.
Também Kant é idealista,[31] acreditando em “um mundo inteligível puro, como um conjunto de todas as inteligências, ao qual pertencemos nós mesmos como seres racionais (posto que, por outro lado, sejamos ao mesmo tempo membros do mundo sensível)”.[32] Ao analisar os costumes, portanto, não pode se contentar com o relativismo, com o dever como “necessidade da acção partindo de um determinado interesse”,[33] como, e. g., o dever de estudar com o fim de aprender. Procura “alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas”.[34]
Kant, nessa busca, inicialmente declara que a única coisa ilimitadamente boa é a boa vontade, porque não pode se tornar má pelo uso que se pode fazer dela, ao contrário do que ocorre com o discernimento, a coragem, etc.[35] A boa vontade é boa em si mesma, independentemente do que consegue concretizar, sendo, no entanto, “claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham”.[36]
Com base nisso, chega à conclusão de que, dentre todas as coisas, apenas o ser racional existe como fim em si mesmo, porque é o único capaz de uma boa vontade, sendo esta a única coisa absolutamente boa. O fim absoluto, nas suas palavras:
não pode ser outra coisa senão o sujeito de todos os fins possíveis, porque este é ao mesmo tempo o sujeito de uma possível vontade absolutamente boa; pois esta não pode sem contradição ser posposta a nenhum outro objecto.[37]
Assim, no respeito à “dignidade de um ser racional”,[38] Kant encontra aquilo que Platão chamaria “O Dever”, ou seja, o dever absoluto, que, por ser sempre o mesmo, vale para todos os seres racionais e é um estereótipo para todos os deveres legítimos, como, por exemplo, o de não fazer promessas com a intenção de descumpri-las.
Acrescenta que, uma vez que a natureza sempre acerta na repartição das faculdades e que o instinto satisfaria nossas necessidades melhor que a razão, o verdadeiro destino desta seria produzir uma vontade boa em si mesma, e não somente boa para atingir fins específicos.[39]
Retirando estes fins específicos da vontade, resta apenas, na boa vontade, a característica de valer para todos os seres racionais, a “conformidade a uma lei universal das acções em geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”.[40] Assim, por exemplo, não se deve nunca fazer uma promessa com a intenção de descumpri-la, porque esta não seria desejável como regra universal dos costumes. E não o seria porque, caso existisse, ninguém acreditaria em promessa alguma, o que destruiria o próprio instituto das promessas.[41]
Esse imperativo (agir sempre conforme máximas cuja validade para todos os seres racionais é desejável), que corresponde à boa vontade, é dito categórico, porque não está condicionado à busca de um fim específico e vale igualmente para todos os seres racionais.[42]
É com essa base que Kant afirma que “aquilo que [...] constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade”,[43] acrescentando que “a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”,[44] ficando o preço reservado para as coisas.
Em Kant, finalmente, é suprimida, embora ainda não inteiramente, a ideia de dignidade vinculada ao cargo ou posição social. A dignidade deve ter sempre o mesmo grau, para quase todos aqueles considerados dignos, muito embora o autor ainda conceda ao Soberano o “esplendor de sua dignidade”,[45] ou seja, uma dignidade em grau maior.
Para Kant, “Nenhum indivíduo no Estado pode realmente ser inteiramente sem Dignidade; pois tem ao menos a de ser um Cidadão, exceto quando tenha perdido sua Cidadania por [ter cometido] um Crime”.[46] O filósofo defende a gradual extinção da nobreza hereditária, para cuja existência não vê nenhuma boa razão, de maneira que o Estado possa “passar da divisão tríplice em Soberano, Nobres e Povo, para a dúplice, e única natural, divisão entre Soberano e Povo”.[47]
Além disso, mesmo reconhecendo a maior dignidade do Soberano, Kant é inteiramente contrário à monarquia absolutista. Critica esta e também a concessão de dignidades nobiliárquicas, no seguinte trecho:
– Que é um monarca absoluto? – É aquele a cuja ordem, quando diz «Deve haver guerra», logo a guerra tem lugar. – Que é, pelo contrário, um monarca de poder limitado? Aquele que antes deve consultar o povo se deve ou não haver guerra; e se o povo diz «Não é necessária a guerra», então a guerra não ocorre. – Com efeito, a guerra é uma situação em que todas as forças do Estado estão à disposição do soberano. Ora o monarca da Grã-Bretanha levou a cabo muitas guerras sem para tal buscar aquele consentimento. Por isso, este rei é um monarca absoluto – o que decerto, segundo a constituição, não deveria ser; mas ele pode ir sempre além dela porque, graças justamente às forças do Estado, por ter em seu poder todas as funções e dignidades, pode estar seguro da aprovação dos representantes do povo. Mas este sistema de corrupção não deve, com certeza, ter publicidade, para ser bem sucedido. Permanece, pois, sob o véu muito transparente do segredo.[48]
A posição de Kant, com poucas alterações, constitui a essência da teoria da dignidade da pessoa humana, na forma adotada por numerosos ordenamentos jurídicos contemporâneos, em grande medida graças à “extraordinária amplitude e profundidade da influência de Kant em todo o curso da filosofia moderna”.[49]
Mas é com a repulsa aos horrores da Segunda Guerra Mundial, na qual, segundo Eric Hobsbawn, morreram 54 milhões de pessoas,[50] que o princípio da dignidade da pessoa humana teve seu maior estímulo, sendo também, ironicamente, um fruto do nazifascismo.
A propósito, ensina Alessandro Marques de Siqueira:
A partir do segundo pós-guerra, ao menos no plano das leis, a concepção de que o respeito ao Ser Humano deve ocupar o centro de toda e qualquer atividade desenvolvida ganha força. Esta constatação rompe com as fronteiras do Estado Liberal para apresentar um modelo onde os valores essenciais ao Ser Humano são fundamentos da nova soberania. Desta forma os princípios informadores do Estado Democrático (Cidadania e Dignidade da Pessoa Humana) são trazidos para a realidade constitucional e passam a ser exigíveis no plano jurídico.[51]
A Organização das Nações Unidas, no ano de 1948, decide reforçar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão feita pela França em 1789, cujos artigos 1º e 6º, respectivamente estabelecem que “Os homens nascem iguais e são livres em direitos”, e que “[...] Todos os cidadãos são [...] igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”.[52]
Proclama a ONU, então, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe, em seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.[53]
Conforme a Declaração anterior, todos poderiam alcançar, segundo a sua capacidade, todas as dignidades, o que indica a adoção, ainda, da teoria da dignidade vinculada ao cargo ou posição social. Segundo a nova Declaração, adotada pelos atuais 193 Estados-Membros da ONU, todos já nascem iguais em dignidade, o que representa o abandono em definitivo dessa teoria.
A Alemanha, derrotada pelas armas na Segunda Guerra Mundial e pressionada politicamente pelas nações vitoriosas, promulgou em 1949 uma nova Lei Maior, cujo artigo 1º reza que “A dignidade humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público”.[54] Tal disposição, a par de outras, significava uma espécie de garantia de que as histórias da Primeira e Segunda Guerras Mundiais não seriam repetidas.
Esse substrato histórico, certamente aliado à grande influência que, de longa data, a doutrina jurídica alemã exerce sobre o mundo, fez com que diversos países também adotassem expressamente em suas Constituições o princípio da dignidade da pessoa humana. Dentre esses países, aponta Sarlet:
Espanha (preâmbulo e art. 10.1), Grécia (art. 2°, inc. I), Irlanda (preâmbulo) e Portugal (art. 1°), [...] Itália (art. 3°), [...] Bélgica [...] (art. 23), [...] Paraguai (Preâmbulo), [...] Cuba (art. 8º) [...] Venezuela (Preâmbulo) [...] Peru [...] (art. 4º) [...] Constituição Chilena (art. 1º) [...] Constituição da Rússia [...] art. 12-1 [...] Colômbia (art. 1º), Bulgária (preâmbulo), Hungria (art. 54), Lituânia (art. 21), Polônia (art. 30), China (art. 38), Namíbia (preâmbulo e art. 8º), Cabo Verde (art. 1º) e África do Sul (arts. 1°, 10º e 39º).[55]
Também preceitua o art. 1º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida”.[56] Esse diploma tem efeito jurídico vinculativo, desde dezembro de 2009, para os Estados-Membros da União Europeia, valendo como um Tratado, por força do art. 1º do Tratado de Lisboa, segundo o qual:
A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.[57]
Adotam, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, por força do Tratado de Lisboa (cumulativamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dispositivos constitucionais específicos), todos os Estados-Membros da União Europeia: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia e Suécia.
Abstraindo-se um período inicial de inexistência, a história geral da dignidade, para o direito, pode ser sintetizada nas seguintes fases sucessivas: 1) apenas o serviço ao Estado gera dignidade, de forma diretamente proporcional à posição hierárquica (sistema predominante até o final da Idade Antiga); 2) se reconhece uma dignidade mínima comum a todo ser humano, mas, acima disso, permanece o escalonamento (sistema de Cícero, Aquino e Pufendorf, adotado na Idade Média e na Moderna); 3) a dignidade propriamente dita é igual para todos os seres humanos (sistema adotado pela grande maioria dos ordenamentos jurídicos da Idade Contemporânea, inspirado no modelo de Kant).