Resumo: As significações e alcances do art. 20, § 1º da Constituição têm importância fundamental tanto para questões já postas perante o Poder Judiciário, como também para as vitais discussões legislativas envolvendo a distribuição dos royalties. O presente artigo faz uma apreciação crítica das embrionárias jurisprudências que se vão formando no STF e no STJ, com tendências aparentemente distintas. Faz um apanhado da doutrina sobre o tema e apresenta uma análise própria, calcada especialmente na compreensão do termo exploração e nos objetivos da compensação a que alude o dispositivo constitucional, em vista da lavra de petróleo na plataforma continental.
Sumário: Introdução. I) As manifestações do STF referentes à distribuição dos Royalties e ao art. 20, § 1º. a) O cunho indenizatório do disposto no art. 20, § 1º. b) O suposto critério constitucional da distribuição da riqueza do petróleo. II) As manifestações do STJ. a) A utilização do suposto critério constitucional da distribuição da riqueza do petróleo. b) A Eficácia Contida do art. 20, § 1º e a irradiação de seus efeitos ao legislador. III) As manifestações doutrinárias relativas á compensação prevista no art. 20, § 1º. IV) Os elementos de interpretação e concretização do art. 20, § 1º. a) O sentido do termo exploração. b) A literalidade e uma aproximação ao elemento sistemático – Os bens da União. c) A previsão de compensação e a teleologia do art. 20, § 1º - a plataforma continental e a maior legitimidade de recebimento pelos afetados do que pelos confrontantes, chamados “produtores”. c.1) Escorço histórico – A contemplação dos produtores e dos confrontantes. c.2) A interação entre a lei anterior e o dispositivo constitucional. c.3) A superficialidade do determinismo físico e a compensação constitucional por efetivos riscos e impactos nos Municípios. d) O elemento sistemático externo, a teleologia e o âmbito normativo – A indústria petrolífera – seu significado e as conseqüências do desenvolvimento da atividade – a convocação do art. 225 para a atividade de interpretação do art. 20, § 1. d.1) O âmbito normativo – A indústria do petróleo. d.2) O elemento sistemático externo e os impactos ambientais. d.3) Conseqüências para a concretização legal dos dispositivos constitucionais. d.4) Da importância estratégica das atividades. Conclusão
Introdução
Muitas são as indagações sobre o alcance do art. 20, § 1º da Constituição. De um lado, toma-se como dado que o dispositivo contempla todos os Estados e municípios confrontantes à plataforma continental, quanto à exploração ali realizada. Na seqüência, entende-se também abrangidas as instalações de embarque e desembarque e os Municípios afetados. A jurisprudência do STJ, porém, criou uma restrição a essa compreensão, entendendo necessário haver pertinência com a extração do petróleo, de parte dessas instalações, independente dos efeitos sofridos pelos Municípios que as sediam. Finalmente, o alcance do dispositivo impacta também as discussões no Congresso Nacional relativas a uma possível extensão dos benefícios a todos os Estados e Municípios.
A fim de aprofundar a discussão em torno do alcance do referido dispositivo constitucional, um dos objetivos desse artigo é investigar o sentido do termo exploração, em sua especificidade constitucional. Quer-se, além disso, promover a interação entre o dispositivo constitucional e a realidade da indústria do petróleo.
Porém, mais do que isso, quer-se também colocar em perspectiva a noção de exploração com as de participação e compensação, previstas no mesmo dispositivo constitucional, referindo a específica peculiaridade da exploração e respectiva compensação na plataforma continental. Como se verá, isso traz contornos completamente diferentes quanto à abrangência dos Municípios alcançados pelo dispositivo constitucional, para fins de recebimento dos royalties decorrentes da exploração de petróleo e gás na plataforma continental.
Para melhor expor a situação e enriquecer a análise, antes das considerações próprias sobre o dispositivo será feita uma abordagem da jurisprudência e da doutrina pertinentes.
I) AS MANIFESTAÇÕES DO STF REFERENTES À DISTRIBUIÇÃO DOS ROYALTIES E AO ART. 20, § 1º
a) O cunho indenizatório do disposto no art. 20, § 1º
Assim dispõe o art. 20, § 1º, da Constituição:
É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.
O STF (Recurso Extraordinário nº 228.800-5-DF), analisando a eficácia normativa do art. 20, § 1º da Constituição, em cotejo com a Lei 7990/89 que disciplina o pagamento de compensação financeira pela exploração de recursos minerais, pelo voto do Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu o seguinte:
“Tenho, no entanto, que a obrigação instituída pela L. 7.990-89 não corresponde ao modelo constitucional.
Essa compensação financeira há de ser entendida em seu sentido vulgar de mecanismo destinado a recompor uma perda, sendo pois, essa perda, o pressuposto e a medida da obrigação do explorador.
A que espécie de perda, porém, se refere implicitamente a Constituição?
Não, certamente, à perda dos recursos minerais em favor do explorador, pois, nesse caso, a compensação financeira, para compensá-la efetivamente, haveria de corresponder à totalidade dos recursos minerais explorados. Em todo caso, não seria lógico compensar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pela perda de bens que não lhes pertencem, mas exclusivamente à União.
Com efeito, a exploração de recursos minerais e de potenciais de energia elétrica é atividade potencialmente geradora de um sem numero de problemas para os entes públicos, especialmente para os municípios onde se situam as minas e as represas. Problemas ambientais – como a remoção da cobertura vegetal do solo, poluição, inundação de extensas áreas, comprometimento da paisagem e que tais -, sociais e econômicos, advindos do crescimento da população e da demanda por serviços públicos.
(...)
Pois bem. Dos recursos despendidos com esses e outros efeitos da exploração é que devem ser compensadas as pessoas referidas no dispositivo.
(...)
Não importa tratar aqui da questão tributária, base desse precedente, mas das considerações tecidas em torno do art. 20, § 1º da Constituição, designadamente: a) da titularidade dos bens; b) da ênfase na teleologia do dispositivo constitucional, especialmente a noção de danos ambientais, sociais ou econômicos; c) do fato do acórdão ater-se exclusivamente à lavra de recursos minerais em solo, e de uma contribuição voltada à exploração desses recursos.
Assim, embora referindo-se aos efeitos sobre os Municípios onde efetivamente ocorre a extração de minerais – ou seja, tratando apenas da extração em terra -, o Min. Sepúlveda Pertence intui duas questões fundamentais: a) o titular dos minérios é a União, devendo mesmo assim ser indenizados os Estados e Municípios; b) a compensação se dá em vista dos prejuízos ambientais, sociais e econômicos decorrentes da atividade de extração dos minérios. Reitere-se: o Ministro não cogitou da participação ou compensação decorrente da exploração na plataforma continental, pois a demanda era mais restrita, respeitante à natureza tributária de uma compensação sobre a extração de minérios.
Sintetizando a posição da mais alta Corte do País, manifestou-se o Min. Gilmar Mendes, no AI 453.025 – AgR/DF:
Naquele precedente (MS 24.312) também foi expressamente consignado nos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence (inicialmente, inclusive invocando o decidido pela 1ª Turma no RE 228.800) e Nelson Jobim (posteriormente), cujos fundamentos foram incorporados pela relatora e pela integralidade do Plenário, que a causa à compensação não é a propriedade do bem, pertencente exclusivamente à União, mas sim a sua exploração e o dano por ela causado.” (fls. 651) (gn)
Na mesma linha, manifestou-se a Ministra Ellen Gracie, na apreciação da ACO 834
5. Quando do julgamento do MS 24.312/DF, de minha relatoria, DJ 19.12.2003, o Plenário desta Suprema Corte, a unanimidade, firmou entendimento de que a compensação financeira prevista no § 1.°, do art. 20, da Constituição Federal, possui natureza jurídica de receita constitucional originária dos entes federados. Naquela ocasião, considerou-se que essa receita patrimonial destina-se a recompor perdas (ambientais, sociais, econômicas, etc.), decorrentes da atividade de exploração do petróleo nos territórios dos Estados e de seus respectivos municípios. (fls. 3-4 do Despacho) (gn)
Ora, os efeitos ambientais, econômicos ou sociais se dão também para Estados e Municípios em que ocorre o manejo do óleo bruto e do gás natural oriundos da plataforma continental, não estando tais efeitos, por óbvio, restritos à lavra do petróleo em terra.
b) O suposto critério constitucional da distribuição da riqueza do petróleo
Ainda no MS 24312, que reconheceu a natureza federativa da distribuição dos royalties, assim se manifestou o Min. Nelson Jobim:
“Daí porque preciso ler o § 1º do art. 20, em combinação com o inciso X do art. 155, ambos da Constituição Federal. O que se fez? Estabeleceu-se que o ICMS não incidiria sobre operações que se destinassem a outros estados – petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos, gasosos e derivados e energia elétrica -, ou seja, tirou-se da origem a incidência do ICMS. (...Assim, decidiu-se da seguinte forma: tira-se o ICMS da origem e se dá aos estados uma compensação financeira pela perda dessa receita. Aí criou-se o § 1º do art. 20 (...).”[1]
Trata-se aqui da aplicação do chamado elemento genético (para alguns, parte do elemento histórico) de interpretação. Segundo o relato do Min. Jobim, uma melhor distribuição da renda entre os Estados teve papel importante na definição e criação do art. 20, § 1º.
Perceba-se, porém, que a manifestação do Min. Jobim refere-se à natureza federativa das participações governamentais. É pertinente, pois, ao que estava sendo discutido naquele caso concreto. O mandado de segurança em apreço tratava justamente da possibilidade de fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, da aplicação dos recursos respeitantes aos royalties. Não se tratava aqui de verificar quais Estados ou Municípios deveriam ser enquadrados no rol dos recebedores.
Além disso, o aspecto da distribuição do ICMS tem um alcance que se limita às relações entre os Estados. De resto, é o que expressamente determina o dispositivo constitucional com auxílio do qual se busca justificar esse suposto critério (art. 155, § 2º, X, b)[2].
Note-se, porém, que a chamada interpretação “genética” não congela nem esgota as possibilidades hermenêuticas do texto a ser interpretado. É lugar comum na hermenêutica o papel de destaque que cabe ao elemento teleológico e à chamada interpretação sistemática. O texto traz várias possibilidades, e aquilo que foi “pensado” pelo Constituinte não esgota o campo de concretização administrativa e jurisdicional dos dispositivos constitucionais. Veja-se a lição de Gilmar Mendes e Paulo Branco:
“Cogita-se, ainda, de analisar o processo da criação da norma, quando se investigam os antecedentes históricos, os trabalhos legislativos preparatórios que redundaram no dispositivo (interpretação histórica e/ou genética). Esse método tende, na generalidade dos casos, a oferecer relevância mais restrita, recomendando-se, em caso de divergência, a preferência pelo sentido que se possa extrair como objetivado no preceito.”[3]
Ora, como adiante se verá, o art. 20, § 1º tem um alcance que transcende o eventual “pensamento” do Constituinte quando da busca do equilíbrio entre os Estados.
Cabe referir que a ampla maioria dos Municípios afetados ou portadores de instalações, não situados nos Estados ditos produtores, não têm ganhos significativos de ICMS. A única exceção se dá com os Municípios em que se situam as refinarias.
A despeito desses óbices, a menção a esse suposto critério é, porém, relevante, pois que ele serviu de base para a tentativa de consolidação de uma jurisprudência no STJ, conforme se verá na seqüência.
II) AS MANIFESTAÇÕES DO STJ
a) A utilização do suposto critério constitucional da distribuição da riqueza do petróleo
O suposto princípio do “equilíbrio da distribuição da riqueza relacionada à atividade petroleira”, consistente em royalties para a extração e ICMS para o refino e distribuição de petróleo, a partir do § 1º do art. 20, em combinação com o inciso X do art. 155 da Constituição, referido pelo Min. Jobim, foi aceito, com algumas nuances (como se verá, irrazoáveis em face do próprio critério), em acórdão que, de modo pioneiro, tratou do mérito da distribuição de royalties, no STJ.
Esse Egrégio Tribunal, até então, no julgamento de dois casos envolvendo os Municípios de Paulista/PE e de Canoas/RS[4], não havia conhecido os Recursos Especiais ajuizados pela ANP, que restara vencida nas instâncias inferiores, prevalecendo então a tese de que tais Municípios deveriam voltar a receber royalties, por se lhes haver reconhecido a existência de instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural em seus territórios.
Ocorre que, no RESP 1.119.643 (atualmente suspenso em vista de liminar concedida em Reclamação ajuizada perante o STF, como na seqüência se verá), a Ministra Eliana Calmon adotou a tese da ANP, no sentido da existência de um princípio constitucional da distribuição da riqueza do petróleo, que consistiria no pagamento de royalties para as instalações de embarque e desembarque voltadas direta e primariamente à atividade de extração do petróleo; e ICMS para as instalações voltadas direta e primariamente às atividades de distribuição e refino.
A ementa do acórdão, na parte pertinente à análise do caso, está assim redigida:
“ADMINISTRATIVO – PETRÓLEO – ROYALTIES – ICMS – ATIVIDADES DE EXTRAÇÃO E DE REFINO E DISTRIBUIÇÃO – COMPETÊNCIA DA ANP – ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO – DECRETO 01/91 – LEI 9.478/97 – DESTINAÇÃO DOS EQUIPAMENTOS.
(...)
2. Agência Nacional do Petróleo - ANP é competente para regular as atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo (art. 8º da Lei 9.478/97) e estabelecer critérios para o pagamento de royalties . (art. 49, I, c, da Lei 9.478/97).
(...)
5. As instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque de óleo bruto estão arroladas no parágrafo único do art. 19 do Decreto 01/91, as quais não incluem parque de tancagem para armazenamento de petróleo, parque de bombas e transferência de petróleo, casa de bombas de combate a incêndio.
6. O critério a ser atendido para o pagamento dos royalties é o da destinação dos equipamentos, os quais devem ser direta e primariamente voltados à extração do petróleo, e não à distribuição e refino.
7. O equilíbrio da distribuição entre os Municípios da riqueza relacionada à atividade petroleira é feito com a distribuição de royalties (diretamente ligadas à extração do petróleo) e com o recebimento do ICMS (demais atividades relacionadas).
8. Recurso da UNIÃO parcialmente provido e recurso da ANP provido”.
No voto-vista de tal acórdão, ratificando as conclusões do voto da Ministra-relatora, o Min. Castro Meira fez expressa menção ao art. 20, § 1º da Constituição, cujo teor seria justamente a base para uma interpretação mais restrita do art. 48 da Lei 9478/97, que permitiria então considerar como aptas aos royalties apenas as instalações voltadas direta e primariamente à extração do petróleo. Veja-se trecho significativo do voto-vista:
Assinale-se que essa interpretação acha-se em conformidade com o disposto no art. 20, § 1º, da Carta Magna ("É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração"), que, funcionando como fundamento de validade para todas as normas que disciplinam a matéria, determina o pagamento de royalties aos entes federados em cujo território sejam promovidas atividades relacionadas à exploração de petróleo. (gn)
Desde logo, cabe uma crítica à coerência do argumento, em vista do caso concreto a que se pretendeu aplicar. É que do suposto princípio constitucional da repartição da riqueza do petróleo, consistente em royalties e ICMS, decorreria, como dito, a estipulação de critérios: royalties para os Municípios ligados à extração; e ICMS para os ligados à distribuição de petróleo, onde se encontrariam as atividades de transporte. Ocorre que a própria ANP paga royalties aos portadores de instalações de embarque e desembarque e aos por elas afetados, sendo que tais Municípios encontram-se já num momento francamente posterior ao da extração de petróleo. Assim, é preciso que o próprio critério seja suavizado: os royalties devem ser distribuídos não apenas aos produtores propriamente ditos, mas também àqueles portadores de instalações que seriam então “primariamente” ligados à extração; aos demais, caberia o produto do ICMS. Esse critério – a ser considerado decerto para uma rediscussão do nosso pacto federativo-tributário, mas apenas para as relações entre os Estados – é tão inusitado que, mesmo se aplicável aos Municípios, teria ainda de considerar que beneficiários de ICMS são apenas as refinarias.
Daí se vê que, ao aplicar tal critério, o voto-vista deixa de seguir a própria interpretação restritiva que dá ao art. 20, § 1º[5], pois coerente seria então que apenas os supostos produtores fossem aquinhoados com a distribuição dos royalties.
Importa referir que esse acórdão teve seus efeitos suspensos, em vista de liminar concedida na Reclamação nº 10.958, ajuizada perante o STF. É que o reclamante, Município de Osório, entendeu haver uma declaração escamoteada de inconstitucionalidade na referida decisão, com o que se ofenderia a Cláusula de Reserva de Plenário. Assim dispôs o despacho da Ministra Ellen Gracie:
“O Acórdão impugnado na presente reclamação, na dificuldade que teve de encontrar, na lei, definição categórica do que deva ser entendido como ’instalações terrestres de embarque e desembarque de óleo bruto ou de gás natural’ ou como ’estações terrestres coletoras de campos produtores e de transferência de óleo bruto ou de gás natural’ , parece, a princípio, ter lançado mão de critério inovador, de matriz constitucional, que importou, no mínimo, na parcial declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, de um sentido mais literal e extensivo da norma legal, adotado pela própria Administração Pública por pelo menos uma década. “(gn)
A despeito da suspensão dessa decisão, duas outras foram tomadas pelo STJ no mesmo sentido. Uma envolvendo o Município de Imbé e outra, o de Camaragibe.[6]
Tais decisões conferem uma dimensão restrita à compreensão do art. 20, § 1º da Constituição, entendendo que, além de ser ele o único fundamento para a análise da legislação que disciplina a distribuição das participações governamentais, garante royalties unicamente àqueles Municípios em que se faz a lavra do petróleo.
b) A eficácia Contida do art. 20, § 1º e a irradiação de seus efeitos ao legislador
Há importante precedente, porém, do STJ, que, sem tratar especificamente da compreensão do referido dispositivo constitucional, reitera sua força normativa perante a ulterior atividade legislativa. Trata-se de decisão unânime no Recurso Especial 990.695 – ES, com voto condutor do Ministro José Delgado:
“Na mesma linha de entendimento, tudo a merecer meu apoio, as razões do voto de fls. 156⁄163:
O grande debate no caso dos autos é saber se a municipalidade tem ou não direito ao recebimento dos royalties. E, o embate jurídico que se vê, até o presente momento, cinge-se basicamente em saber qual dos dispositivos legais é que determinará se o ente municipal terá sua pretensão acolhida.
Em breve síntese, de um lado o autor calca sua pretensão com base no artigo 48 da Lei n° 9.478⁄97 c⁄c os critérios de distribuição dos royalties previstos na Lei n° 7.990⁄89. Do outro, posiciona-se o Estado do Espírito Santo, afirmando que inexiste o direito à compensação financeira por parte do município, já que o artigo 83 da Lei 9.478⁄97 revogou expressamente a Lei n° 7.990⁄89, o que, por via oblíqua, impede a formação do direito da municipalidade.
A meu sentir, o caminho a ser trilhado, para saber se realmente o direito à compensação financeira pertence ou não ao município “canela verde”, tem como ponto de partida o texto constitucional, para que, ao final, tenhamos como ponto de chegada os dispositivos conflitantes da Lei n° 9.478⁄97. Por outro giro, o primeiro campo de batalha é constitucional, para que, então, superado este, possamos partir para o segundo, que é a Lei n° 9.748⁄97, onde há o conflito real entre os artigos 48 e 83 desta lei.
Nobres pares, dentre as várias características que a Constituição Federal possui, sobreleva-se, no caso dos autos, sua feição analítica. Em razão dela, o legislador constitucional esmiuça assuntos que são, do ponto de vista jurídico, político ou social, de extremo interesse estatal.
E, em última análise, o fato do legislador constitucional descer a minúcias em assuntos como os direitos e garantias individuais do cidadão, a organização do estado e o sistema tributário e orçamentário, existe para que excessos ou omissões não sejam cometidos por aqueles que estão, de uma forma ou de outra, a frente da máquina estatal. Desse modo, preserva-se interesses ligados tanto ao poder público como ao particular.
No título III, capítulo I do texto constitucional, o legislador constitucional assegura aos integrantes do sistema federativo a participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural ou a compensação financeira por essa exploração (royalties).
Portanto, surge a garantia de que, tanto para os municípios como para os Estados-membros, é resguardado quinhão da exploração do petróleo ou gás natural, seja através da participação direta no resultado da exploração de tais recursos ou por via indireta, o que se dá por meio da compensação financeira.
Um ponto deve ficar claro. Malgrado a norma contida no § 1º do artigo 20 do texto maior possua natureza jurídica de norma constitucional de eficácia limitada, suas entrelinhas trazem comando imperativo negativo para o legislador infraconstitucional, haja vista que impede a formação de qualquer barreira quanto ao direito de participação dos entes estatais no resultado da exploração destes recursos naturais.
Em outras palavras, muito embora o direito a participação do resultado da exploração do petróleo⁄gás natural ou aos royalties deva ser (ainda que de uma forma limitada) delineado pelo legislador infra-constitucional, o mapeamento deste direito não pode chegar ao ponto de ser tolhido, restringido, minorado pelas disposições normativas da lei infraconstitucional. É que qualquer norma constitucional (mesmo de eficácia limitada), possui um mínimo de eficácia jurídica, o que impede que os comandos emergentes de qualquer texto abaixo do plano constitucional, de uma forma ou de outra, embaracem (mesmo que de forma velada) o fim colimado pelo legislador constitucional.
No caso dos autos, é notório que o objetivo proposto pelo texto constitucional é resguardar, em sua totalidade, o direito não apenas dos estados-membros na participação da exploração do resultado destes recursos naturais, mas também das municipalidades.
Assim, qualquer disposição normativa infraconstitucional que traga prejuízos à participação direta ou indireta destes recursos, não deve prosperar, sob pena da eficácia jurídica da norma constitucional cair por terra.
(...)
E, não refoge a esta regra a situação posta em julgamento, já que a determinação do legislador constitucional é que seja ASSEGURADA a participação dos municípios, de uma forma ou de outra, na exploração do petróleo e gás natural, o que impede que seja inibida ou restringida pelo legislador infraconstitucional.
Ora, não há qualquer vontade permissiva no texto constitucional que acene pela possibilidade de tolhimento deste benefício entregue nas mãos dos entes municipais. Em outras palavras, para que qualquer minoração da regra contida no § 1° do artigo 20 da CF fosse possível, ou esta norma seria de eficácia restringível ou contida, ou o legislador constitucional consignasse, expressamente, no texto constitucional originário a restrição ao direito de participação dos municípios; como se vê, por exemplo, com a permissão constitucional de que a União, no campo tributário, isente mercadorias e serviços destinados ao exterior, respectivamente, do ICMS e ISS. E, nobres julgadores, em nenhuma dessas situações amolda-se o pleito requerido pelo ente municipal.
Ou atentamos para o princípio da máxima efetividade ou eficiência das normas constitucionais, que determina que a uma norma localizada no texto maior seja imprimido o sentido que lhe dê maior eficácia, portanto, que seja assegurado ao município o exercício de seu direito sem a restrição que vem sofrendo, ou se imprima maior valor normativo a uma DÚVIDA localizada na interpretação de artigos da Lei n° 9.478⁄97, quanto ao caminho que deve ser tomado no caso dos autos!
Contudo, advirta-se! Focar o olhar para esta segunda opção, certamente é afirmar que a norma constitucional contida no artigo 20, § 1° da CF está tendo sua aplicabilidade diminuída ou suprimida.
Ademais, cite-se ainda que o princípio da justeza ou conformidade funcional impõe a esta casa uma posição: Que evite qualquer subversão ou perturbação do esquema estabelecido originalmente pelo legislador constitucional originário.
E, diante deste comando lanço a seguinte indagação: Tolher o direito de participação do município requerente, sem que haja qualquer permissão constitucional neste sentido, é prestigiar o princípio do pacto federativo, que, em última análise, refuta qualquer tratamento que implique no tratamento desigual dos seus pactuantes???? É certo que não!
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E, na situação posta em juízo, a exclusão do direito à compensação financeira dos entes municipais, certamente, implica na desestabilização política, social e enfraquecimento da unidade política, pois até o presente momento, o direito constitucionalmente assegurado à municipalidade está sendo restringido indevidamente.
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Por outro ângulo de análise, muito embora sustente o eminente e culto Des. Arnaldo Santos Souza a edição de diploma normativo para viabilizar a fruição do direito subjetivo pleiteado pela municipalidade, não vislumbro a necessidade da edição de diploma normativo para esse fim, isto porque tal direito, talhado expressamente no texto constitucional, encontra-se perfeitamente materializado no artigo 48 da citada lei. Assim, vincular o direito dos royalties a edição de nova lei é, em última análise, retirar do § 1º do artigo 20 da CF o grau de eficácia jurídica mínima que possui, já que a lei responsável pela regulamentação da participação no resultado da exploração direta e indireta do petróleo e gás natural é a lei n° 9.478⁄97, e não outro diploma. A edição de outro diploma normativo que trate do assunto pode ocorrer, já que é da essência do direito sua mutação ao longo dos tempos, vindo a aperfeiçoar um ou outro ponto da lei em questão; mas que o direito da municipalidade é patente e plenamente fruível, não resta a menor dúvida.
Ante o exposto, data vênia, sigo caminho diverso do percorrido pelo nobre relator e por aqueles que o acompanham, entendendo por bem julgar procedente a pretensão da municipalidade.
É como voto.
Portanto, o E. STJ tem fundamental precedente, no sentido de considerar que a legislação não pode amesquinhar aquilo que já está disposto no nível constitucional a respeito dos royalties. Nada impede que as possibilidades ali constantes fossem alargadas, desde que respeitada a proporcionalidade. Contudo, o direito constitucional dos Municípios ao recebimento de royalties não pode ser restringido sob nenhuma hipótese. Ainda, cabe considerar que esse acórdão invoca a ideia de máxima efetividade da Constituição e de concordância prática, no sentido de se estabelecer uma interpretação ampla do art. 20, § 1º, que não prejudique os Municípios que sofrem os efeitos do manejo do petróleo e do gás natural.[7]