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Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls

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4 Conclusões

A partir da análise das obras de Thomas Hobbes e John Locke, é possível observar que eles constroem a processualística do Estado de forma semelhante. Contudo, o seu entendimento sobre a origem é diferenciado. Para Hobbes, os sentimentos de insegurança, de desconfiança, de incerteza, de agressividade, de angústia, de ameaça, de medo; em especial este, são significativos para os homens deliberarem e agirem. Essas deliberações e ações colocam o homem contra o outro homem, com o intuito de ele assegurar a sua sobrevivência, a sua vida. O sentir medo e o precisar sobreviver permitem a Hobbes construção um ente artificial, um Estado soberano, absoluto, indivisível.

Locke, por sua vez, visualiza o Estado como ente necessário para proteger os homens. No seu estado de natureza, os homens possuem direitos naturais e invioláveis à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. As razões para a existência do Estado estão na possibilidade desses direitos serem violados, quer pela fome, quer pela ação pejorativa de outro homem. O Estado, então, surge com a finalidade de salvaguardar esses direitos e de ser um juiz imparcial que inibe e combate as ações más dos homens.

É possível identificar, no pensamento dos dois autores liberais clássicos, a preocupação com legitimar a existência do Estado e prescrever limites para a sua atuação, através da imposição de direitos naturais aos indivíduos. Assim, como bem afirma Araújo (2002), a preocupação desses pensadores é prescrever uma teoria do governo legítimo.

John Rawls, por sua vez, preocupa-se com as questões de justiça. Ao desenvolver o seu estudo, ele parte da existência de uma posição hipotética original, em que são realizadas decisões através de um acordo que permita oferecer condições justas para todos. Por isso, nessa situação original, é preciso que as pessoas não saibam quais as condições elas estarão após essa situação, para escolher de forma justa os princípios básicos para a sociedade.

Assim, Rawls descreve princípios, os quais ele acredita que todos iriam escolher, dadas as condições que estariam (véu da ignorância). Os princípios, para o autor, que podem ser usados para definir uma sociedade justa são o da liberdade e o da eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). É preciso notar que Rawls está sempre preocupado em conferir justiça para a vida em sociedade.

Após a sua obra “O Liberalismo Político”, o autor se preocupa em desenvolver uma sociedade estável e justa, tendo em vista a divisão existente entre doutrinas abrangentes, as quais são muitas vezes incompatíveis. Partindo de alguns critérios e fases, conclui que o ideal de uma sociedade bem-ordenada é tornar compatível a idéia de justiça à idéia de bem, e embora divergentes as doutrinas abrangentes, elas podem conviver pacificamente porque aceitam os mesmos princípios.

Rawls, portanto, desde o princípio de sua obra preocupa-se essencialmente com a prevalência de uma situação socialmente justa, já que a justiça é indispensável para a vida em sociedade. A legitimidade deve ser relacionada à justiça, já que para ele uma sociedade pode ser legítima e injusta (Araújo, 2002). Portanto, é a necessidade da justiça, é a preocupação com a substancialidade das decisões, que diferencia John Rawls dos primeiros pensadores do liberalismo clássico – Thomas Hobbes e John Locke – cujo cerne de suas obras está na preocupação da existência de um governo legítimo.


5 Bibliografia

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VITA, A. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.


Notas

[1] A natureza humana hobbesiana estaria submetida ao “estrito encadeamento de causas e efeitos, tendo como propriedades – igualmente naturais – desejar e agir, ou seja, deliberar e mover-se de acordo com esse dado primeiro que é o desejo” (BOBBIO, 1989/1991, p. 53).

[2] A título de ilustração, anterior a Hobbes, Maquiavel ensinou como “fazer o mal”: como tomar e preservar o poder, pela astúcia ou pela força, como levar a bom termo uma conspiração. Assim, “falar no ‘realismo’ de Maquiavel equivale, portanto, a ter aceito o ponto de vista de Maquiavel: o ‘mal’ é politicamente mais significativo, mais substancial, mais ‘real’ do que o ‘bem’.” (MANENT, 1987/1990, p. 27) Em outros termos, “a ordem política é a alquimia do mal, a supressão, jamais completa, do medo pelo medo.” (MANENT, 1987/1990, p. 36) Dessa forma, o que Maquiavel descreve como um episódio dramático e instrutivo, no encadeamento de paixões e ações, Hobbes observa a própria lógica da ordem humana.

[3] Nos Ensaios sobre o Magistrado Civil, Locke, em sua juventude, possui uma concepção de estado natural hobbeasiana. “A inferência de Hobbes não poderia ser mais clara. Ele aceita sem quaisquer condições o ponto fundamental da teoria hobbesiana sobre o poder civil, que consiste em admitir que a renúncia à liberdade natural deve ser completa, atribuindo ao soberano todos os direitos que o indivíduo gozava no estado da natureza.” (BOBBIO, 1963/1997. p. 96) Conforme Bobbio (1963/1997), “quando a acusação de seguir a teoria de Hobbes ameaça tornar-se perigosa, Locke dirá que nunca leu as obras do seu grande predecessor. Podia dizer isso, porque esses manuscritos [Ensaios sobre o Magistrado Civil] da juventude permaneciam guardados na gaveta. Hoje, porém, não podemos mais acreditar nessa versão. Em substância, Locke aceita o dilema colocado por Hobbes: anarquia ou Estado absoluto.” (p. 97)

[4] Rawls (1992) considera que existe um quadro de idéias e princípios implicitamente compartilhados, que compõe a base de sua justiça como eqüidade. São três as idéias descritas pelo autor: a sociedade é historicamente um sistema justo de cooperação social, que é guiada por normas e procedimentos publicamente reconhecidos, sendo que os cidadãos são pessoas livres e iguais e a sociedade é regulada por uma concepção pública de justiça; as condições justas de cooperação são aceitas desde que os outros façam; necessita de uma vantagem racional de cada participante. “Essa idéia de bem especifica aquilo que os envolvidos na cooperação – sejam indivíduos, famílias ou associações, ou mesmo Estado-nação estão tentando obter, quando o esquema é considerado de seu ponto de vista”. (RAWLS, 1992, p. 36).

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Sobre os autores
Daniel Lena Marchiori Neto

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estádio de doutoramento junto ao Colorado College, EUA. Professor de Teoria Geral do Estado e Introdução ao Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.

Vanessa Wendt Kroth

Graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Analista-Tributária da Receita Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCHIORI NETO, Daniel Lena ; KROTH, Vanessa Wendt. Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3573, 13 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24183. Acesso em: 26 abr. 2024.

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