1.2 Posição da jurisprudência
Por se tratar de instituto alheio a nosso ordenamento jurídico, pouco existe de produção jurisprudencial acerca da possibilidade de prisão civil por contempt of court. Conforme já demonstramos em momento anterior, com a alteração havida no artigo 14, do Código de Processo Civil, restou reconhecida a possibilidade de punição da parte ou terceiro que descumprir ordem judicial. No entanto, apenas há previsão da aplicação de multa, nada referindo quanto à prisão.
Assim, com relação à imposição de multa à parte recalcitrante em cumprir ordem judicial, é tranquila a jurisprudência. Tal não é a situação quando se trata da utilização da prisão civil coercitiva por contempt of court. Preferem os tribunais pátrios, ao invés da aplicação direta da prisão por contempt of court, configurar o descumprimento de ordem judicial como crime, seja pelo tipo penal da desobediência ou, em alguns casos, prevaricação.
Como forma de demonstrar esta postura, faremos breve análise de decisão[25] do Superior Tribunal de Justiça, que, mesmo reconhecendo que a situação contida nos autos, moldava-se à doutrina do contempt of court, apresenta como procedimento correto a aferição do descumprimento e sua classificação como ilícito penal. Para melhor entendimento, transcrevemos a ementa do mencionado julgado:
MANDADO DE SEGURANÇA. Desobediência a ordem judicial. Ofício ao Ministério Público. Contempt of court.
Não constitui ato ilegal a decisão do Juiz que, diante da indevida recusa para incluir em folha de pagamento a pensão mensal de indenização por ato ilícito, deferida em sentença com trânsito em julgado, determina a expedição de ofício ao Ministério Público, com informações, para as providências cabíveis contra o representante legal da ré.
Recurso ordinário improvido.
Tratava-se, portanto, de mandado de segurança impetrado pela parte que descumpriu a ordem judicial, insurgindo-se contra a decisão do juiz prolator da sentença descumprida de oficiar o Ministério Público quanto ao suposto crime de desobediência. Note-se a que ponto chegou o nível de desprezo pela autoridade judicial. Além de fazer pouco de sentença transitada em julgado, insurgiu-se a parte contra o meio utilizado pelo magistrado para tentar fazer valer a sua decisão.
Conhecendo da matéria, em interessante voto, o então Ministro Ruy Rosado de Aguiar flagrou a existência, na espécie, do que “o direito anglo-saxão conhece por contempt of court, de antiga origem e diversas espécies”. No entanto, como tem sido a prática até hoje nos nossos tribunais, aponta como solução para os casos de desacato à ordem judicial a aplicação de multas ou acionamento do órgão competente para aferição de eventual ilícito penal. Demonstra o referido julgado, portanto, que a posição da jurisprudência é clara no sentido de que o juiz, ao deparar-se com devedor que insiste em não cumprir ordem judicial, não tem outro recurso que não seja aplicar multa e oficiar o Ministério Público. Do trecho do voto do relator, abaixo transcrito, fica evidente o tratamento que se dá no direito brasileiro para o descumprimento de ordem judicial:
O direito anglo-saxão conhece o contempt of court, de antiga origem e diversas espécies (Contempt of Court, Criminal and Civil, Joseph H. Beale, Jr., Harvard Law Review, XXI, janeiro, 1908, 3, p.161), que permite à Corte punir imediatamente o ofensor, podendo inclusive determinar a sua custódia até que cumpra a ordem, como, por exemplo, o de produzir certo documento (The Oxford Companion to the Supreme Court of The United States, Oxford University Press, 1992, p.193). O procedimento tem sido questionado, especialmente quando se trata de contempt in facie Curie, a permitir que a mesma autoridade aplique a sanção, mas a verdade é que se conserva e é moderadamente aplicado.
Na nossa história, não encontramos a tradição de reprimir imediatamente a desatenção ao selo real, daí porque o instituto nos é desconhecido. De acordo com a legislação em vigor, além das sanções de ordem processual, com indenizações e multas, o descumprimento de ordem do juiz poderá caracterizar ilícito penal, submetido ao procedimento próprio (O Aspecto Penal do Descumprimento às Decisões Judiciais de Natureza Mandamental. Agapito Machado, RT, 722/389; Prisão por Desobediência à Ordem Judicial, Hugo de Brito Machado, Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, TRJE, 96/25). No caso dos autos, o juiz limitou-se a comunicar o fato da desobediência ao Ministério Público, e nisso não praticou nenhuma ilegalidade.
Evidente pelo julgado, que a jurisprudência pátria não tolera a prisão civil por contempt of court, ainda que esta tenha caráter coercitivo para efetivação de direitos. Apenas admite a punição pelo descumprimento da ordem judicial, mas na esfera penal.
Entretanto, a dificuldade que impera em tal procedimento e que torna totalmente inócua a tentativa de fazer valer a autoridade judicial pela “criminalização” do descumprimento está justamente no procedimento adotado a partir da Lei 9.099/95. É que o crime de desobediência, pela pena que prevê, é considerado de menor potencial ofensivo, conforme dispõe o artigo 61,[26] da Lei 9.099/95, devendo processar-se de acordo com esta.
Somado a isso, o artigo 69,[27] parágrafo único da referida lei dispõe que o autor do fato, encaminhado ao juizado, uma vez comprometendo-se a ele comparecer, não será preso em flagrante, nem se exigirá fiança. Logo, no caso do crime de desobediência, bastará que o “desobediente” assuma o compromisso de comparecer ao Juizado que está livre da imposição da prisão, tornando sem qualquer força coercitiva a medida.
Sendo assim, adotou a jurisprudência pátria o caminho de manter a tradição da não imposição de prisão civil para os casos que não sejam aqueles excetuados na Constituição Federal. Ainda, relegou a “punição” daquele que descumpre ordem judicial à esfera criminal, que, por sua peculiaridade, não reprime na hora a ofensa à autoridade judicial pelo descumprimento de suas decisões, talvez contribuindo para crise de efetividade pela qual passamos nos dias de hoje.
1.3 (In)Viabilidade da aplicação do contempt of court como forma de execução indireta – abertura dos meios executivos do artigo 461, §5º, do CPC
Na contemporaneidade, tema que tem trazido muitos problemas é o que diz respeito à concretização dos direitos, ou seja, à efetividade da tutela jurídica. Tanto é verdade, que no sistema brasileiro, a tutela jurídica efetiva foi alçada a direito fundamental do cidadão, contando com dispositivos constitucionais que garantem o amplo acesso à justiça e a duração razoável do processo, com meios que permitam a celeridade na sua tramitação.
Importante já de início referir que a tutela efetiva que deve ser garantida pelo Estado é tal qual como postulada pelo autor da demanda, se titular do direito material posto em causa. Isto quer dizer que o Estado deve estar aparelhado de mecanismos capazes de satisfazer integralmente os anseios daquele que demanda em juízo.
Já aqui identificamos o primeiro problema no que diz respeito à tutela efetiva, que dá ensejo à abordagem que queremos dar à prisão civil, qual seja, a em decorrência de contempt of court. Que meios ou técnicas processuais estão disponíveis ao juiz para que possa fornecer efetiva tutela judicial?
A pergunta é perfeitamente válida quando nos deparamos com um estado de coisas que se pauta pelo descumprimento das normas judiciais, falta de comprometimento com as obrigações assumidas, entre outras. Logo, o que parece ser o “nó górdio” da questão da efetividade da tutela jurisdicional é a capacidade do Judiciário, em substituição ao autor da ação, entregar o que de direito, fazendo valer suas decisões.
O Código de Processo Civil prevê diversas técnicas para efetivação dos direitos, destacando-se como a de uso mais comum, a técnica da expropriação de bens quando se trata de execução de dar ou de pagar soma em dinheiro. O problema intensifica-se quando abordado sob a ótica das obrigações de fazer. Neste caso, técnica válida é a da sub-rogação, na qual se busca um terceiro para fazer às expensas do executado aquilo que este deveria ter feito.
Entretanto, existem obrigações que, por sua natureza, não permitem a utilização da técnica da sub-rogação. São as obrigações de caráter infungível, as quais, por características pessoais, só podem ser prestadas pelo obrigado. Justamente nesta modalidade de obrigação é que reside a dificuldade de efetivação da tutela específica, sem que se tenha simplesmente que converter em perdas e danos.
Técnica que vem sendo utilizada com grande sucesso é a execução indireta, por coerção. Aqui, no Brasil, como em diversos outros países, popularizou-se a utilização do modelo francês de coerção, com a imposição de astreintes. O que se vê, no entanto, é que, em muitos casos, nem mesmo a imposição de multa cominatória é capaz de premir o obrigado ao cumprimento de determinada obrigação ou ordem judicial.
Nesse contexto, é que se pergunta se seria possível a utilização da prisão civil como meio de coerção, uma vez verificado que o obrigado se encontra em contempt of court pela recalcitrância no cumprimento da determinação judicial? Afrontaria tal técnica processual o direito fundamental à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana?
A doutrina nacional, em regra, entende impossível a utilização generalizada de prisão civil como meio de coerção, invocando para tanto a conhecida regra constitucional que só se refere à viabilidade de duas hipóteses de prisão civil, quais sejam, do devedor de alimentos e do depositário infiel. Portanto, ressalvadas as duas hipóteses previstas no texto constitucional, entende-se como inaplicável a prisão civil como técnica coercitiva.
Tal, no entanto, não é o entendimento uníssono. Parte minoritária da doutrina, através de consistente fundamentação, entende possível a utilização da prisão civil como técnica coercitiva, principalmente quando se refere à prisão por descumprimento de ordem judicial.
É o caso de Sérgio Cruz Arenhart.[28] Segundo o autor, o ponto de partida de toda discussão envolvendo a restrição da liberdade individual como meio coercitivo é a análise do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, que preceitua que “não haverá prisão por dívida”, salvo a do responsável “pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Refere o autor, que o texto constitucional veda a prisão civil por dívida, mas não toda e qualquer prisão civil. Ou seja, considera que a prisão civil seja o gênero do qual a prisão por dívida apresenta-se como espécie. Assim, utilizando-se como ponto de partida o fato de que a Constituição veda apenas a prisão civil (gênero) de espécie “dívida”, passa a discorrer sobre a prisão cuja função seja coercitiva.
É justamente desta análise inicial da locução da norma constitucional que se detrai os argumentos daqueles que sustentam a viabilidade de prisão civil. A primeira consideração que fazem, diz respeito à inexistência, tanto na Constituição Federal quanto no próprio Pacto de San José da Costa Rica de vedação a todo e qualquer tipo de prisão civil. Como visto, teria sido limitada a proibição às hipóteses de dívida.
Ainda, e aqui nos parece que a fundamentação ganha corpo, a prisão que propõem como válida é aquela destinada à garantia da efetiva prestação jurisdicional, ou seja, que atue como elemento de pressão psicológica frente ao obrigado para que cumpra determinada ordem judicial. Não se trata, portanto, de prisão por dívida ou de natureza criminal, mas sim aquela com função exclusivamente coativa, tendente a estimular o ordenado ao cumprimento da determinação judicial, semelhante ao que ocorre nos casos de contempt of court no direito norte-americano.
Logo, para estes autores, e aqui incluímos, além de Sérgio Cruz Arenhart, Luiz Guilherme Marinoni[29] e Marcelo Lima Guerra,[30] a prisão civil, desde que não por dívida, pode ser utilizada, principalmente nos casos de descumprimento de ordem judicial. Tal seria para garantir o direito fundamental de tutela jurídica efetiva.
Ora, parece óbvio que para que o Estado possa fornecer a efetiva tutela jurisdicional, é necessário que esteja aparelhado com os meios executivos[31] capazes de satisfazer o direito material postulado. Nesse contexto, por existirem direitos que somente poderão ser satisfeitos com a utilização da técnica da coerção pela prisão e não sendo esta vedada na Constituição ou em qualquer tratado internacional, é de plena aplicabilidade.
Ainda, é de se considerar que a prisão civil como técnica de coerção vem tendo sua aplicabilidade fundamentada no disposto no artigo 461, §5º, do CPC. Expoente deste posicionamento é Luiz Guilherme Marinoni[32] que prescreve:
Não é errado imaginar que, em alguns casos, somente a prisão poderá impedir que a tutela seja frustrada. A prisão, como forma de coação indireta, pode ser utilizada quando não há outro meio para a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente. Não se trata, por óbvio, de sanção penal, mas de privação da liberdade tendente a pressionar o obrigado ao adimplemento. Ora, se o Estado está obrigado a prestar a tutela jurisdicional adequada a todos os casos conflitivos concretos, está igualmente obrigado a usar os meios necessários para que suas ordens (o seu poder) não fiquem à mercê do obrigado.
O artigo 461, §5º, do Código de Processo Civil conferiu ao juiz o poder de impor medidas coercitivas inominadas, ou seja, não previstas em lei. O que se discute, portanto, é se dentre as medidas inominadas postas à disposição do juiz, poderia ele lançar mão da prisão civil por contempt of court. Teria o juiz poderes ilimitados na escolha dos meios de execução?
Marcelo Lima Guerra,[33] atento a este problema, refere que o uso arbitrário de poderes conferidos ao juiz é algo sempre vedado pelo ordenamento jurídico. Ainda, o fato do §5º, do artigo 461, do CPC, ter conferido poderes indeterminado ao juiz, para, em caráter complementar à lei, fixar os meios executivos, não significa dizer que o magistrado pode agir sem limitações. Deve, sim, ao utilizar-se da faculdade-dever conferida no referido dispositivo legal, fundamentar adequadamente a sua decisão, evidenciando a sua valoração quanto ao cabimento e à adequação da medida coercitiva adotada.
Certo é que, com a alteração perpetrada por meio do artigo 461, §5º, do CPC, abandonou-se o dogma da tipicidade dos meios executivos, cabendo ao juiz utilizar aquele mais apto a viabilizar a tutela efetiva dos direitos. No entanto, segue valendo a máxima de que a execução deverá se dar da forma menos gravosa ao devedor. É justamente aí que está a medida na utilização dos meios inominados.
Assim, cabe ao juiz, de acordo com o caso concreto, utilizar os meios executivos capazes de efetivação do direito, escolhendo, em um grau de valores, os menos gravosos ao executado. Portanto, sempre que indicado um meio de execução, caberá ao juiz, na fundamentação da sua decisão explicitar as razões que o levaram a escolher aquele meio, possibilitando o controle crítico das suas escolhas.
A prisão, por certo, é o mais excepcional de todos os meios de coerção, sendo possível a sua utilização somente nos casos em que a multa ou os meios de execução direta mostram-se incapazes de levar à tutela do direito. De se referir que inaplicável quando a obrigação for de disposição de patrimônio (ou gasto de dinheiro).[34]
Poder-se-ia, por outro turno, se dizer que a prisão civil, ainda que como técnica coercitiva para fornecimento de tutela efetiva, ou por contempt of court, afronta o direito fundamental à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana. Certo é que, na maioria das vezes, efetivamente afronta tais princípios e direitos, não podendo ser utilizada. Entretanto, em especialíssimas situações, poderá fazer com que o direito fundamental á liberdade e até mesmo a própria dignidade (desde que não ofendida no seu núcleo) sejam relativizados. Explicamos.
Por envolver o “choque” de princípios e direitos fundamentais, em que de um lado está o direito fundamental à tutela judicial efetiva e, de outro, o direito à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, a aferição da possibilidade ou não de prisão civil por contempt of court deve ser feita diante do caso concreto.
Existem situações em que a prisão civil poderá favorecer, além do próprio direito de tutela judicial efetiva, a realização de outros direitos fundamentais, tais como a proteção ao meio ambiente, à saúde, à privacidade, à integridade física e à própria vida do “credor”. Portanto, mesmo estando certo de que o artigo 5º, LVII, da CF/88, bem como o direito à liberdade e à própria dignidade da pessoa humana representam direitos fundamentais, podem estes se oporem à realização de outros direitos fundamentais, o que por certo trará enormes dificuldades hermenêuticas, que deverão ser solucionadas pela aplicação do princípio da proporcionalidade e interpretação tópico-sistemática, conforme já tivemos possibilidade de abordar.