4. O requisito do nexo causal
Ao lado do ato ilícito, do dano e da culpa em sentido lato, o mais complexo requisito pra que haja imputação de responsabilidade é a verificação do nexo de causa e efeito entre o ato ilícito praticado e o dano sofrido. É a verificação concreta de que o ato ilícito (culposo, doloso ou resultante de uma atividade objetivamente considerada) foi o desencadeante do dano ou prejuízo (moral, material ou estético).
Há hipóteses de responsabilidade civil sem culpa – na modalidade objetiva – assim como há autores que estudam a possibilidade de responsabilidade mesmo sem a prática de atos ilícitos[14], entretanto não há dever de indenizar sem a comprovação do nexo de causalidade, em quaisquer das modalidades de responsabilidade civil.
Três foram as teorias mais difundidas pelos estudiosos do direito para tentar explicar o requisito do nexo de causalidade, de forma que as legislações as recolheram, sendo no caso brasileiro a aceitação da primeira para o direito penal e previdenciário, e a adoção da última teoria pelo direito civil, conforme destacaremos na sequência.
Na lúcida síntese de Fernando Noronha, as teses explicativas da relação de causalidade procuram saber, entre todos os fatores sem os quais um determinado dano não teria ocorrido, quais devem ser selecionados como dele determinantes.[15]
4.1. Teoria da equivalência dos antecedentes
Para essa primeira teoria, desenvolvida nos quadrantes do direito penal do século XIX, na tentativa de explicar a razão jurídica do cúmplice ser responsabilizado junto com o autor, uma conduta deve ser considerada causa sempre que se puder dizer que o dano não ocorreria se ela também não tivesse ocorrido. Há nexo causal sempre que puder ser atribuído a uma conduta um dano, ainda que remotamente e que outras condutas também tenham influído na materialização do dano. Decorre que o agente da conduta responde não só pelos danos diretos como pelos danos subseqüentes.
Quando mais de uma condição for identificada como geradora de um dano, todas elas são consideradas causas eficientes e equivalentes, deixando o observador de investigar qual delas foi a imediata ou a mais adequada a causar o prejuízo. Todos os antecedentes que integram a cadeia de fatos que geraram o dano são considerados causas, não se importando com a sua ligação direta e imediata ou apenas remota. Para essa teoria também é irrelevante a investigação do grau de participação de cada uma das causas no evento, de modo a possibilitar a gradação das responsabilidades civis. Ao contrário, a teoria admite a conclusão abstrata de que a participação das causas é equivalente e, por corolário, a responsabilidade civil dos múltiplos agentes é solidária.
Exemplificativamente, a aplicação dessa teoria torna criminalmente punível como homicídio a conduta de um agente que ocasionou um pequeno ferimento no dedo da vítima, mas que, por receber tratamento médico inadequado, sofreu de hemorragia e morreu em decorrência do minúsculo ferimento que não seria capaz de gerar mais que um curativo nas demais pessoas com condições físicas saudáveis. A adoção da teoria pelo direito civil também desencadearia o dever de indenizar o dano morte mesmo que a conduta do agente tenha causado diretamente apenas o pequeno ferimento.
Nada obstante o prestígio da teoria durante os séculos passados na Europa, a legislação civil brasileira sempre a foi refratária, pelo que disse Gustavo Tepedino que “(...) a inconveniência desta teoria, logo apontada, está na desmensurada ampliação, em infinita espiral de concausas, do dever de reparar, imputado a um sem-número de agentes. Afirmou-se, com fina ironia, que a fórmula tenderia a tornar cada homem responsável por todos os males que atingem a humanidade.”[16]
Rejeitada pelo nosso direito civil, a teoria da equivalência dos antecedentes, interpretada de modo evolutivo atualmente, foi prestigiada pelo direito penal (CP, 13)[17] e pelo direito previdenciário brasileiro (Lei 8.213/1991, 21, I). Na dicção legal quanto às concausas, considera a lei como de responsabilidade do INSS o dano, ainda que outras causas, embora mais eficientes e adequadas, tenham contribuído para o acidente. É, pois, irrelevante para a legislação previdenciária que as condições de trabalho sejam apenas uma das diversas causas, bastando que tenham contribuído minimamente para o sinistro, quando o nexo causal fica estabelecido e surge a responsabilidade.
A legislação previdenciária, a despeito da adoção da teoria da equivalência dos antecedentes, deixa claro que a equiparação se dá apenas para “os efeitos desta Lei”, do que deriva que não se admite a aplicação da legislação previdenciária para fins de responsabilidade civil da empresa, mormente porque a legislação civil, instaurando diferente relação jurídica, com diferentes requisitos, rechaçou a teoria em estudo.
Equívoco que nos parece cometer Sebastião Geraldo de Oliveira ao importar equivocadamente a lei previdenciária – e por arrastamento a teoria da equivalência dos antecedentes – para os julgamentos de responsabilidade civil do empregador pelos acidentes ou doenças ocupacionais:
O nexo concausal aparece com freqüência no exame das doenças ocupacionais. A doença fundada em causas múltiplas não perde o enquadramento como patologia ocupacional, se houver pelo menos uma causa laboral que contribua diretamente para a sua eclosão ou agravamento, conforme prevê o art. 21, I, da Lei n. 8.213/91. Diante dessa previsão legal, aplica-se na hipótese a teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non, como ocorre no Direito Penal, pois tudo o que concorre para o adoecimento é considerado causa, já que não se deve criar distinção entre causa e condição. Não há necessidade de se precisar qual das causas foi aquela que efetivamente gerou a doença, como ocorre na aplicação da teoria da causalidade adequada, pois todas as condições ou causas têm valoração equivalente.[18]
A aplicação do artigo 21, I, da Lei 8.213 de 1991 para o fim de reconhecer a existência do nexo causal nas ações de responsabilidade civil por acidente ou doença ocupacional propostas em face do empregador gera a inadequada importação da teoria da equivalência dos antecedentes para as relações jurídicas de natureza civil, violando a opção legislativa, cuja consequência será a imputação de responsabilidade civil ao empregador em diversas situações em que não tenha sido ele o autor da causa direta, relevante e imediata a produzir o resultado (dano material, moral ou estético).[19]
4.2. Teoria da causalidade adequada
Se para a teoria anterior todas as causas, diretas ou indiretas, que tenham participado do resultado são equivalentes, para a teoria da causalidade adequada deve o observador verificar qual dessas causas foi a mais eficiente e adequada para gerar o dano. Ainda que duas ou mais causas tenham contribuído diretamente para o dano, só a mais adequada desencadeará a responsabilidade de seu agente. Por essa opção de ordem conceitual, a tese da causalidade adequada não admite a relevância jurídica das concausas, na medida em que uma única causa deve ser identificada como a relevante.
Sergio Cavalieri Filho, defensor da teoria, anota que para a responsabilidade civil, nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes, como na hipótese da responsabilidade penal, mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir concretamente o resultado dano. Além de indagar se uma condição concorreu concretamente para o evento, é ainda preciso apurar se, em abstrato, ela era adequada a produzir o dano. Entre as várias circunstâncias que concretamente concorreram para o resultado, causa adequada será apenas aquela que teve interferência decisiva.[20]
Quando um acidente de trânsito ocorre entre dois veículos, tendo um deles avançado o semáforo e o outro transitado em velocidade muito superior à permitida na via, deve o observador ter em conta quais das condutas ilícitas foi decisiva e adequada ao resultado. É de se perguntar se o tráfego em excesso de velocidade, considerando que o outro veículo não tivesse desrespeitado o semáforo, geraria o acidente? Em outro ângulo, é questionar se o avanço do sinal vermelho, considerando que o outro veículo estivesse em velocidade compatível, geraria o acidente?
A resposta das duas indagações descortina que a conduta adequada para o evento danoso foi a do motorista que avançou o semáforo fechado, único responsável pelo dever de indenizar os prejuízos causados pelo sinistro. Aquele que transitava em velocidade excessiva, a despeito da punição administrativa, não pode ser responsável pelo ressarcimento, na medida em que a sua conduta não foi a mais adequada.
4.3. Teoria da causalidade direta (interrupção do nexo causal)
O artigo 1.060 do Código Civil brasileiro de 1916 recolheu a mesma redação dos códigos civis francês e italiano, em cujas disposições constava que somente as consequências diretas e imediatas do inadimplemento das obrigações eram alcançadas pelo dever de indenizar. Por conseguinte, e com apoio em autores franceses e italianos, o professor Agostinho Alvim desenvolveu a teoria da interrupção do nexo causal, para a qual “Suposto certo dano, considera-se causa dele a que lhe é próxima ou remota, mas, com relação a esta última, é mister que ela se ligue ao dano, diretamente. Assim, é indenizável todo dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei que o dano seja efeito direto e imediato da execução.”[21]
A doutrina de Agostinho Alvim explica que a teoria da causalidade direta, um pouco mais alargada que a da causalidade adequada, não afasta os danos indiretos ou remotos do dever de ressarcimento, só por essa sua natureza. Em regra, os danos indiretos ou remotos não são indenizáveis porque deixam de ser efeito necessário do ato ilícito, pelo aparecimento de concausas sucessivas, as quais rompem com o nexo de causalidade. A propósito se possa ligar um dano indireto ao ato ilícito remoto, sem a ocorrência de outras concausas que rompam com a cadeia causal, os danos reflexos também são indenizáveis.[22]
Justamente por intervirem na cadeia causal, rompendo com o nexo em face de ato anterior que deu início aos acontecimentos, que são considerados excludentes do nexo causal o caso fortuito, a força maior, a falta exclusiva da vítima e o fato de terceiro. Em todos esses casos há ato originário praticado pelo agente ofensor, contudo sucessivamente interveio um ato não imputável ao ofensor que rompeu com o nexo, daí porque os danos deixaram de ser efeitos diretos do ato ilícito originário. Ressalve-se, no que pertine aos acidentes de trabalho, que não se considera fato de terceiro o ato ilícito praticado por empregados ou prepostos, no exercício do trabalho ou em razão dele, que cause dano aos empregados. Nessas situações, embora a conduta causal do dano não seja imputada ao empregador diretamente, é dele a responsabilidade, conforme o artigo 932, III, do Código Civil.[23]
A teoria da interrupção do nexo causal encontra-se em posição intermediária em relação às duas anteriores. Enquanto para a da equivalência das condições toda e qualquer causa que tenha, direta ou indiretamente, participado do resultado é relevante juridicamente, a da causalidade adequada elege apenas a causa eficiente e adequada para gerar o resultado como a juridicamente relevante. Ainda que duas ou mais causas tenham contribuído diretamente para o dano, só a mais adequada delas gerará o dever de indenizar pelo seu agente. Já a da interrupção do nexo causal elege como causas as que tenham contribuído necessariamente para o resultado, ainda que o dano seja uma consequência reflexa, porém importando que a causa seja a sua explicação, sem que outra posterior tenha intervindo e interrompido com a cadeia causal. Essa terceira teoria admite a existência de concausas, na medida em que identificadas duas ou mais causas que tenham necessariamente desencadeado o resultado são elas relevantes juridicamente para estabelecimento da responsabilidade.
A adoção da última tese leva o intérprete a divisar as condições das causas. Todas as condutas que interferem de alguma maneira na cadeia causal e contribuem para o resultado são condições, sem as quais o dano não teria ocorrido. No entanto, nem todas as condições são relevantes juridicamente para o fim de imposição civil de responsabilidade, mas apenas aquelas que necessariamente tenham gerado o prejuízo, sem a existência de outra condição que tenha interrompido a cadeia causal. Essas últimas, relevantes juridicamente, são as causas.
O exemplo doutrinário clássico para explicar essa teoria é aquele em que um agente fere outro com instrumento cortante, em razão do qual a vítima é encaminhada ao hospital, contudo vem a falecer no trajeto devido ao capotamento da ambulância. Sem a ocorrência da lesão, a vítima não estaria sendo conduzida na ambulância, fato que afastaria a sua morte, isso se todas as condições, remotas e próximas, fossem consideradas, como na teoria da equivalência das condições. Entretanto, para a teoria da interrupção do nexo causal somente as lesões corporais são os danos diretos e imediatos decorrentes do ato ilícito praticado, mas não a morte, na exata medida em que o ato posterior (acidente automobilístico) interrompeu a cadeia causal. Logo, poder-se-ia falar em responsabilidade civil do agente causador da lesão apenas pelos efeitos desta, mas a responsabilidade pela morte somente é atribuível ao causador da colisão.
A falta injustificada de pagamento de uma dívida gera o dano imediato e o direito de cobrá-la, com as devidas correções, mas não o dever de o agente causador do dano pagar um empréstimo que o credor se viu obrigado a contrair para saldar as suas obrigações corriqueiras, muito menos os danos morais causados à filha do credor que deixou de terminar a faculdade em decorrência da falta de condições financeiras de seu pai, quem financiava seus estudos.
Também há atendimento do requisito do nexo causal nas omissões em que o agente estava obrigado a agir, por imposição lei legal, contratual ou em razão de uma conduta anterior do próprio omitente. Ele não praticou o ato que deu origem ao dano, mas se omitiu na prática de outro ato que evitaria que a cadeia causal se completasse. Quando não houver imposição de agir, não há falar em responsabilidade civil daquele que se omitiu, ainda que tenha consciência da ocorrência premente de lesão.
Já sob os influxos da Constituição de 1988 o Supremo Tribunal Federal teve de decidir uma ação de indenização movida contra o Estado do Paraná em razão da ocorrência de assalto praticado por fugitivo de uma penitenciária estadual. A alegação da inicial era de responsabilidade do ente federado pela omissão na custódia do preso, ato lesivo que desencadeou o dano. A decisão foi tomada à unanimidade no sentido de que não havia responsabilidade porque o assalto não era decorrência direta e imediata da omissão de custódia, sendo decisivas para o dano outras causas não atribuídas ao Estado do Paraná. Na mesma decisão a teoria acolhida foi a da interrupção do nexo causal (RE 130.764 – DJ 07.08.1992). O relator Min. Moreira Alves, então Professor Catedrático de Direito Civil da USP e com apoio nas lições de Agostinho Alvim, disse em seu voto que:
Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, agasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada.
A partir da posição expressa firmada no precedente, os civilistas brasileiros, entre os quais Gustavo Tepedino, dizem que “A adoção, pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, da teoria do dano direto e imediato afasta a aplicação das duas outras teorias conhecidas pela dogmática do direito civil: as teorias da equivalência das condições e a da causalidade adequada.”[24]
Muito embora o leading case fora firmado a partir da interpretação do artigo 1.060 do Código Civil de 1916, o precedente continua válido na vigência do Código Civil de 2002, na medida em que o atual artigo 403 reproduz a literalidade do texto anterior, opinião que também é compartilhada pelos autores contemporâneos.[25]
Como conclusão, podemos afirmar que o sistema pátrio de responsabilidade civil, quanto ao requisito do nexo de causalidade, adotou a teoria da causalidade direta e imediata ou da interrupção do nexo causal, para a qual deve o observador investigar no caso sobre apreciação se o dano é decorrência direta da conduta ilícita apontada como causadora. Apenas a resposta afirmativa instaura a relação causal imprescindível para a responsabilização civil.
A aplicação dessa teoria para os acidentes de trabalho levaria a conclusão de que mesmo que o empregador tenha determinado que o empregado tomasse uma condução da empresa para se deslocar ao local da prestação dos serviços e tenha se acidentado dentro de transporte fornecido por ela, não haveria responsabilidade civil do empregador, p. ex., se o causador do acidente fora um motorista que avançou o sinal vermelho e abalroou o veículo.[26] O evento seria considerado de responsabilidade do empregador se a teoria adotada fosse a da equivalência das condições, na medida em que o ato do empregador em determinar a utilização do transporte também foi uma das condições da morte, sem a qual o dano não teria ocorrido. É exatamente em razão de adotar a teoria da equivalência das condições que a legislação previdenciária considera como acidente de trabalho, com a consequente responsabilidade do INSS, esse mesmo evento[27], mas nem de longe pode cogitar-se de responsabilidade civil do empregador no sistema civil brasileiro, o qual, é bom repetir, repeliu a teoria da equivalência das condições e adotou expressamente a teoria da causalidade direta.
Também não há responsabilidade, porque rompido o nexo causal, quando o empregador deixa de fornecer os equipamentos de proteção individual ao empregado, omissão potencial a gerar uma lesão no manuseio de uma máquina, porém ocorreu um ato do próprio empregado (p. ex., colocação inadvertida das mãos na correia da serra), o qual gerou o dano em um dos dedos. A omissão na entrega dos equipamentos, nada obstante passível de penalidades administrativas, não foi a causa direta da lesão, mas o fato da própria vítima que colocou as mãos na correia, mesmo sabedora de que tal conduta era potencialmente perigosa e proibida, na exata medida em que recebeu treinamento para operação do equipamento.