5. A causalidade múltipla (concausas)
A multiplicidade das situações pode demonstrar que há danos decorrentes de mais de uma conduta, quando se estabelecerá a causalidade múltipla ou concausas. Nessas situações o observador já identificou todas as condições que integram a cadeia causal, depois afastou as juridicamente irrelevantes (meras condições), elegeu apenas as causas, entretanto ainda há mais de uma causa que diretamente tenha contribuído necessariamente para o dano. Essas causas podem ser simultâneas ou sucessivas, em cada um dos gêneros revelando-se espécies. As consequências são também diversas.
Quando duas ou mais causas agem simultaneamente e decisivamente para a ocorrência de um único dano, há concausas simultâneas. Essa modalidade concausal se subdivide em duas espécies, conforme os agentes ofensores. Se uma das causas decisivas foi praticada pela própria vítima, haverá culpa recíproca, ocasião em que as causas devem ser avaliadas e a responsabilidade divida, na modalidade de redução do valor da indenização a ser paga pelo outro agente lesante (artigo 945 do Código Civil). A outra espécie é quando dois agentes diferentes atuam simultaneamente para a lesão, quando o dever de reparar o dano é solidário entre eles (artigos 934 c/c 942 do Código Civil), reservando para futura ação regressiva o debate acerca do grau de participação de cada agente na eclosão do resultado, quando haverá acertamento dos valores que um pagou pelo outro.[28] A solidariedade não depende da intenção conjunta em causar o dano único, até porque é da essência dos atos culposos a inexistência da vontade de lesar um bem jurídico alheio, bastando que os dois atos independentes contribuam de forma decisiva para o resultado único.
Importante distinguir a situação das concausas simultâneas das ocasiões em que dois ou mais agentes, concomitantemente, geram vários danos independentes, de modo que cada dano deve ser investigado a partir da causa que lhe foi necessária e, por corolário, cada um deles será responsabilizado individualmente pelo dano que lhe incumbir. Exemplo é o do garçom ofendido moralmente tanto pelo cliente do restaurante quanto pelo gerente, em razão de ter inadvertidamente trocado o pedido da refeição. Havendo duas ofensas simultâneas, cada um dos agentes deve responder pelo dano moral a que deu causa, independentemente.
O outro gênero de concausas é o das sucessivas, caracterizado quando as causas ocorrem postergadas no tempo, sendo, na maioria das vezes, que as anteriores são condições para que as posteriores ocorram. Nesse grande gênero identificamos que há três espécies diferentes de concausas sucessivas.
Na espécie das causas preexistentes ou antecedentes a conduta do agente em abstrato não era apta a gerar o resultado verificado, entretanto a existência de uma particular condição antecedente contribui para o resultado final. É o caso do empregado que é portador de hemofilia (condição antecedente) que sofre uma lesão cortante por culpa do empregador e, em razão da hemorragia, teve de amputar uma mão. A análise cuidadosa revela que somente a condição antecedente – sem a interveniência posterior de um ato ilícito – não era apta a gerar o prejuízo. Somente o fato de ser portador da hemofilia não é condição decisiva para a hemorragia, sem que um ato independente e posterior venha causar uma lesão cortante. Essa última, a rigor, é a única causa apta e direta que gerou o prejuízo, razões pelas quais as condições antecedentes não exoram a integral responsabilidade do causador do ato ilícito posterior pelo dever de indenizar.
Existem ainda duas modalidades de concausas supervenientes. Uma delas é quando o agente ofensor pratica um ato lesivo, mas na sequência da cadeia causal outra causa interveio, agravando o resultado. Nessa modalidade, coerente com a teoria da interrupção do nexo causal, o investigador deve verificar se a causa posterior é total e integralmente independente. Se para o agravamento contribuiu apenas uma condição que não é independente, responde o ofensor originário pelo dano todo. Como exemplo é o ato lesivo que causa um corte profundo no braço do empregado, ele é socorrido e no hospital municipal da pequena cidade recebe os cuidados possíveis. Durante o seu tratamento no hospital – ainda que esse tenha agido dentro das condições adequadas para a localidade – o paciente adquire uma infecção que gera uma lesão mais grave. O empregador responderá pelo resultado grave, na medida em que a infecção, embora oriunda do contato em ambiente hospitalar, é decorrência direta da primeira lesão, pois não interveio uma causa independente e direta que possa explicar a sua ocorrência. Nesse exemplo não há outro ato, comissivo ou omissivo, de outro agente que explique o resultado gravoso ao trabalhador.
Haverá, de outra banda, causas sucessivas supervenientes que romperão o nexo causal, sendo elas as únicas direta e necessariamente responsáveis pelo dano mais grave. A análise cuidadosa da espécie retrata que há, em verdade, dois ou mais danos interdependentes, embora o último seja a agravação do dano anterior. Havendo, com efeito, dois ou mais danos nas concausas sucessivas, em cada um deve se estabelecer qual a causa direta e a responsabilidade do agente causador da lesão. Por exemplo, se um acidente de trabalho causa uma cicatriz no operário, para a qual foi solicitada a intervenção de um cirurgião plástico, cuja atuação imperita acaba por gerar a amputação de um membro, responde o empregador pela lesão-cicatriz e o médico pela amputação. Aqui já se verifica a existência de dois atos ilícitos independentes.
Carlos Roberto Gonçalves também conclui quanto às concausas sucessivas que “o agente primeiro responderia tão-só pelos danos que se pretendessem a seu ato por um vínculo de necessariedade. Pelos danos conseqüentes das causas estranhas responderiam os respectivos agentes.”[29]
6. A responsabilidade civil do empregador. Exemplos práticos.
No presente tópico analisaremos a responsabilidade civil nas situações mais corriqueiras na vivência trabalhista, enquadrando-as nas diversas modalidades vistas nas linhas acima, inclusive em cotejo com as soluções dadas pela jurisprudência mais difundida. Apontaremos a solução científica, à luz das premissas fixadas nos tópicos alhures, criticando a jurisprudência especializada naquilo em que entendemos tenha ela laborado em equívoco, principalmente no sincretismo que gera a importação inadvertida das disposições da legislação previdenciária para imposição de responsabilidade civil.
Situações deveras corriqueiras no foro são os pedidos de indenizações por danos morais e materiais aviados por empregados vítimas de assalto durante o horário e no local de trabalho. Afastada a responsabilidade pela simples aplicação do artigo 21, II, “a”, da Lei 8.213 de 1991, na medida em que não incidente para responsabilização civil, inobstante a situação seja considerada como acidente para fins previdenciários, devemos investigar o atendimento dos requisitos civis. Não há na hipótese ato ilícito da empresa, traço que já afasta a sua responsabilidade civil. Poder-se-ia refinar o exemplo para aqueles empregadores que têm a obrigação legal de instalação de equipamentos de segurança, como os estabelecimentos financeiros (Lei 7.102 de 1983). Omitindo-se o empregador em atender os requisitos quanto à segurança do local, haveria no caso omissão culposa e ato ilícito, porém o requisito do nexo de causalidade estaria rompido diante de que o dano ao trabalhador foi causado necessariamente por fato de terceiro, em relação ao qual a empresa não responde objetivamente (artigo 932 do Código Civil).
A violação das disposições da Lei 7.102 de 1983 gerará as penalidades da própria legislação, culminando com a interdição do estabelecimento (artigo 7°), também ensejará o reconhecimento de omissão culposa do empregador, mas, só por si, não há estabelecimento de nexo de causalidade para todos e quaisquer prejuízos sofridos por clientes, prepostos ou empregados. E não se estabelece nexo de causalidade porque a teoria adotada pelo Código Civil atual – e chancelada pelo STF – é a da causalidade direta e imediata. Somente em se adotando inadvertidamente a teoria da equivalência das condições é que se consideraria a omissão na instalação dos equipamentos como uma das causas equivalentes do dano, sem a qual a lesão não teria ocorrido.
Na primeira hipótese a jurisprudência atual tenciona a isentar o empregador de responsabilidade[30], mas no segundo caso há reiteradas decisões de condenação. Decisão paradigmática reconheceu a responsabilidade civil do empregador por assalto que sofreu vigilante seu empregado enquanto prestava serviço em instituição de ensino particular. O acórdão entendeu preenchidos os requisitos do ato ilícito e dano, inclusive porque a atividade era de risco e a responsabilidade objetiva, mas não enfrentou o nexo de causalidade adequadamente, na medida em que invocou as regras previdenciárias para dizer da existência de nexo.[31] O que fez a decisão foi inadequadamente importar a teoria da equivalência dos antecedentes, a partir da equivocada aplicação da legislação previdenciária, conforme se verifica de trecho do acórdão:
Assim, tenho por configurado o acidente de trabalho, eis que presentes os seus requisitos caracterizadores, quais sejam: evento danoso (disparo contra o trabalhador); decorrente do exercício do trabalho a serviço da empresa (decorrente de suas funções de vigilante do estabelecimento comercial, portando arma fornecida pela empresa); morte em consequência dos ferimentos causados pelos disparos. Por outro lado, ainda que não se tivesse por configurado o nexo causal entre o evento sofrido pelo de cujus e suas atividades laborais, teríamos então a equiparação do incidente sofrido com o obreiro a acidente de trabalho, nos termos do art. 21, da Lei n. 8.213/91.
O Tribunal Superior do Trabalho cometeu equívoco semelhante em decisão recente. A situação de fato era a de um motoboy que foi assaltado e morto enquanto realizava as suas atividades habituais. O acórdão reconheceu que a atividade era de risco, conjugando as disposições do artigo 2° da CLT com o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, por corolário concluiu pelo dever de indenizar. Entretanto, passou ao largo do ponto crucial para o desate da contenda que era justamente o nexo causal que é rompido com o fato de terceiro. Abstratamente – e sem entrar em debate de tema paralelo e irrelevante –, ainda que se reconheça que a atividade de entregas era de risco, tal conclusão importa em isenção de prova quanto à culpa patronal, que passa a ser legalmente presumida. Repita-se: a responsabilidade objetiva apenas desonera a vítima de comprovar culpa, mas não ato ilícito, dano e nexo causal. Porém, mesmo nas hipóteses de responsabilidade objetiva, o nexo de causalidade, na espécie da causa direta e necessária, deveria ser investigado e comprovado, o que nem de longe passou pelo debate da decisão criticada, que é absolutamente omissa no ponto.[32]
Também não há responsabilidade do empregador nos casos em que noticia ocorrência de crime para as autoridades policiais, na hipótese mais comum de desvio de mercadorias da empresa, e por esse ato um ou alguns dos empregados suspeitos são conduzidos por policiais e até constrangidos por esses na Delegacia de Polícia. A única hipótese de responsabilização do empregador é a de denunciação caluniosa, em que ele sabe não ocorrido crime – ou que não fora cometido por nenhum empregado – e ainda assim noticia, colocando os trabalhadores como suspeitos. Aqui há abuso de direito (artigo 187 do Código Civil) e o nexo se estabelece diretamente, na medida em que a denunciação caluniosa foi a causa necessária da prisão dos trabalhadores, sem outra concausa superveniente que venha interromper a cadeia causal.
Outra situação corriqueira na jurisprudência trabalhista é a constatação pela perícia médica que o trabalhador era portador de doença degenerativa e as condições danosas de trabalho agravaram o resultado das lesões, as quais seriam verificadas sem a intervenção da causa trabalhista, mas em menor proporção. Ambas contribuíram de forma necessária, decisiva e concomitantemente para o dano único, de modo que há multicausalidade simultânea. A solução jurídica nesse caso é a divisão proporcional das responsabilidades, na modalidade da culpa recíproca, eis que um dos agentes lesivos é inerente à própria vítima. O juiz deverá investigar, principalmente com apoio na prova pericial médica, qual o grau de participação da doença degenerativa e da conduta da empresa, para modular o valor da indenização.
Hipótese juridicamente diversa – embora faticamente assemelhada – se dá quando o empregado possui uma doença antecedente e a condição de trabalho atua no desencadeamento do dano, como no exemplo acima da hemofilia. Nesse caso apenas a hemofilia não geraria a lesão, daí porque é apenas condição e não causa. O resultado é que apenas o empregador responde pelo dano integral (concausas antecedentes). Já para as doenças degenerativas, elas, isoladamente, são aptas a gerar a lesão, porque causas, mas atuando simultaneamente com causas laborais, agravam o resultado. Aqui a hipótese já é de concausalidade simultânea.
Um último ponto debatido amiúde é a respeito da responsabilidade civil em acidente ou doenças ocupacionais nos contratos de terceirização. Debatem os autores e as decisões judiciais se a responsabilidade será apenas do empregador, do tomador, de ambos, ainda assim nesse último caso subsidiária ou solidária. A primeira premissa para responder a indagação é despir-se da inclinação em aplicar a Súmula 331 do TST que diz ser a responsabilidade subsidiária. Ainda que bastante questionável o conteúdo do verbete, temos como se fosse ela eficaz para regular as situações de terceirização, ainda assim no inciso IV pontua que a responsabilidade da tomadora da mão-de-obra é subsidiária quanto às “obrigações trabalhistas”.[33] E de natureza jurídica trabalhista não se trata as indenizações de responsabilidade civil, inclusive por serem extracontratuais.
Deverá o intérprete investigar se a lesão sofrida pelo empregado teve uma causa única (necessária) ou concausas. Na primeira hipótese a responsabilidade civil será apenas da empregadora ou da tomadora, conforme qual delas tenha praticado o ato ilícito culposo causador do dano. Uma e outra podem ocupar essa única condição, conforme a situação fática revelar. Na hipótese de concausas simultâneas necessárias, a responsabilidade é solidária entre os causadores do dano único, podendo, também aqui, empregadora e tomadora ocupar o pólo passivo da relação jurídica obrigacional, responsabilizando-as solidariamente pelo prejuízo. O certo apenas é que jamais será a responsabilidade subsidiária, modalidade não recolhida pelo legislador para as relações jurídicas de responsabilidade civil.
O inventário dos exemplos acima demonstra que um axioma que precisa ser rompido é aquele de que todo e qualquer dano sofrido pelo empregado no horário e no local de trabalho é de responsabilidade do empregador. O será de responsabilidade do INSS para fins previdenciários (artigo 21 da Lei 8.213 de 1991), contudo só o será do empregador se coexistirem os requisitos civis do ato ilícito, culpa, dano e principalmente o nexo causal na modalidade da causalidade direta (interrupção do nexo causal), ainda que se trate da hipótese de responsabilidade objetiva, quando apenas o elemento da culpa do empregador deixa de ser exigível, mas a prova do nexo de causalidade não.