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Benefício de Prestação Continuada integrando a renda familiar: inconstitucionalidade e antijuridicidade

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10/05/2013 às 15:55
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EFEITOS EXCLUDENTES DO DECRETO 7617/11

Para melhor avaliar os efeitos do teor do art. 1º, VI, do Decreto 7617/11, eis a situação hipotética de uma família com cinco membros, cuja renda familiar é de R$ 678,00 (um salário mínimo). A renda per capita dessa família será de R$ 136,60, de forma que se um de seus membros for portador de deficiência, terá direito a receber um BPC no valor de R$ 678,00.

Nesse caso, ante o teor do Decreto 7617/11, a renda familiar daquele grupo familiar passa a ser de R$ 1.356,00. Como consequência a renda per capita passa para R$ 271,20, embora a destinação do BPC seja exclusivamente para a pessoa com deficiência, e não aos demais integrantes da família.

Nessas circunstâncias (grupo com renda familiar de R$ 1.356,00, sendo R$ 678,00 provenientes de BPC), na eventualidade de um agrupamento familiar possuir outra pessoa portadora de deficiência, essa não terá direito ao beneficio, o que se consiste em grave violação à Constituição. Uma segunda pessoa com deficiência somente teria direito ao benefício no caso do grupo familiar possuir a partir de nove membros.

A situação torna-se mais grave por conta do que acontece na realidade.  É evidente que naquele meio familiar em situação de vulnerabilidade, os recursos do BPC destinados ao beneficiário serão repartidos com outras pessoas com deficiência (se houver), tendo como consequência que ele (beneficiário original) receberá menos que um salário mínimo. A violação constitucional torna-se dupla, pois são duas ou mais pessoas a receberem menos que um salário-mínimo, enfim, menos que o mínimo social previsto na LOAS, em seu art. 1º:

“A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social, não contributiva, que provê os mínimos sociais...”.

A Constituição determinou, no caso das pessoas portadoras de deficiência e idosos inseridos em famílias pobres, de grande vulnerabilidade e risco social, que o mínimo social tem o valor de um salário mínimo (art. 203, V, CF).

Esse “mínimo social”, assegurado pela Constituição e pela  LOAS às pessoas com deficiência, equivale ao conceito do “mínimo existencial”, e nem mesmo a clausula da “reserva do possível” pode ser invocada ou justificada com o propósito de impedir ou reduzir a efetivação do direito do cidadão ao seu “mínimo” (mais ainda o da pessoa com deficiência ou deficiências múltiplas, o que torna a situação tão mais grave), em razão de questões econômico-financeiras.

O Legislador, consciente da relevância da matéria, plasmou na LOAS (art. 4º,I) um dos mais significativos princípios, que consolida esse entendimento, se harmonizando com a Constituição, merecendo ser novamente reproduzido:

“Art. 4º A Assistência Social rege-se pelos seguintes princípios:

I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica.”


MAIS DECISÕES JUDICIAIS. SÚMULA 30 DA AGU

Muitos poderão invocar a conveniente (e bem fundamentada, diga-se de passagem) doutrina da “Reserva do Possível”, segundo a qual a efetivação dos direitos sociais estaria limitada às possibilidades orçamentárias do Estado (em que pese o teor do art. 4º, I, da LOAS.

Entretanto, recente e magistral decisão sobre a “Reserva do Possível” na implementação de políticas públicas, o STF se pronunciou da impossibilidade da mesma ser invocada.

"A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. (...) A noção de ‘mínimo existencial’, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV)." (ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-8-2011, Segunda Turma, DJE de 15-9-2011.)

Esta decisão, ao nosso ver, deveria ser esculpida em mármore e exposta em todas as praças públicas.

A concretização do direito ao BPC para a pessoa com deficiência, atualmente excluída do beneficio por força dos efeitos do Decreto 7617/11, implica também na efetivação de outra importante proteção, ou seja, na proteção constitucional à Família (art. 203, I), em harmonia com a LOAS (art. 2º, I).

Isso porque as pessoas com deficiência mais graves, que as impossibilitam ao trabalho, particularmente as com deficiências múltiplas, serão amparadas (ao menos em tese) por sua família por toda a vida, tendo em vista a sua total dependência, muitas vezes até mesmo para as coisas mais básicas do dia-a-dia, como comer, tomar banho, vestir-se.

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A questão social do tema é tão relevante, que a Advocacia-Geral da União, OGU, editou a Súmula n° 30, dando interpretação diversa e importante para o art. 20, § 2º da LOAS,  que define que a pessoa com deficiência, para os termos da Lei, “é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”

Ante o texto literal da Lei, sempre se afirmou que não bastaria apenas a impossibilidade de exercer a atividade laborativa, mas também para a vida independente. Ambas as condições tinham que estar presentes, para que a pessoa fizesse jus ao benefício.

A AGU entendeu que a incapacidade para o trabalho já seria suficiente para caracterizar a incapacidade para a vida independente, editando a Súmula 30 (abaixo reproduzida), de observância obrigatória pelos Procuradores Federais responsáveis pela defesa do INSS:

“A incapacidade para prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da incapacidade para a vida independente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.”

Trata-se de reconhecimento de entendimento que melhor atende aos comandos constitucionais pertinentes à dignidade humana, também refletido na Súmula 29 da Turma Nacional de Uniformização- TNU:

“Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”.

A vantagem prática da Súmula da Advocacia-Geral da União, mediante interpretação da finalidade social da lei, foi o fato de liberar os advogados públicos de manejarem recursos relacionados a questão já superada, em detrimento das necessidades fundamentais dos demandantes.

Vale dizer que a Súmula 30 foi revogada em 31.01.11, em razão da recepção pelo Brasil da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Além do mais, o disposto na Súmula 30 da AGU está contido na referida Convenção, de maior abrangência. 

Sem dúvida, a conduta da Advocacia-Geral da União, na edição da Súmula 30, revelou a disposição de conferir à advocacia pública um caráter institucional que objetiva garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.


AJUSTES PROPOSTOS NO DECRETO 7617/2011

Por essa razão, pensamos que:

1.    a Advocacia-Geral da União, por conta de sua competência constitucional de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 131, CF) pode ser provocada para manifestar-se a respeito do tema, no sentido de orientar a Casa Civil da Presidência da República para ajustar o Decreto 7617/11, excluindo definitivamente a possibilidade de se computar na renda familiar o Benefício de Prestação Continuada concedido a idoso ou pessoa com deficiência, para fins de concessão desse mesmo Benefício a outra pessoa da mesma família,  pouco importando se idosa ou pessoa com deficiência;

2.    a Casa Civil da Presidência da República, por outro lado, poderá fazer tal adequação no Decreto 7617/11, “ex officio”, eis que em plena conformidade constitucional e legal.

Em linhas gerais, basta a exclusão do Parágrafo único, art. 19, do Decreto 6214/07 (com as alterações do 7617/11) e a retirada da expressão “e Benefício de Prestação Continuada”, do art. 4º, inciso VI, do Decreto 6214/07 (com as alterações do Decreto 7617/11).


CONCLUSÃO

A adoção dos ajustes propostos compatibilizará o novo Decreto a ser editado, com a Constituição, com a LOAS e com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, corrigindo enorme injustiça com pessoas com deficiência (e suas famílias) que necessitam, efetivamente, da assistência social, assegurando o “exercício dos direitos sociais (...) a segurança, o bem-estar (...) como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social" (Preâmbulo da Constituição de 1988) .

Não é mais possível que, em pleno Século XXI, direitos e garantias ainda se constituam em meras obras de arte e poesias, em plena Carta Constitucional. 

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Sobre o autor
Milton Cordova Junior

Advogado, Mestrando em Estudos Jurídicos Avançados, pós-graduado em Direito Público, com Extensão em Defesa Nacional pela Escola Superior de Defesa, extensões em Direito Constitucional e Direito Constitucional Tributário. Empregado de empresa pública federal. Recebeu Voto de Aplauso do Senado Federal por relevantes contribuições à efetivação da cidadania e dos direitos políticos (acesso in http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/09/26/ccj-aprova-voto-de-aplauso-ao-advogado-milton-cordova-junior). Idealizador do fundo de subsídios habitacional denominado FAR - Fundo de Arrendamento Residencial, que sustenta o Programa Minha Casa Minha Vida, implementado por meio da Medida Provisória 1.823/99, de 29.04.1999.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDOVA JUNIOR, Milton. Benefício de Prestação Continuada integrando a renda familiar: inconstitucionalidade e antijuridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3600, 10 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24407. Acesso em: 25 abr. 2024.

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