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O sistema de governo e o exercício da cidadania na história das constituições brasileiras

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14/05/2013 às 09:57
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7. A Constituição “Cidadã” de 1988

 O clamor popular para restabelecimento das eleições diretas para a Presidência da República foi fundamental para tornar irreversível a saída dos militares do poder. Tancredo Neves, eleito Presidente em 1985, fez nascer uma República a ser materializada por meio de uma nova Constituição. Porém, enfermo, veio a óbito, sem ver a tão almejada obra. A intranqüilidade voltou a reinar absoluta. Assumiu seu Vice, José Sarney, fiel a ideologias autoritárias e anacrônicas.

 A Constituição em construção era objeto de esmerosos debates. Esclareça-se que, na verdade, não foi convocada uma genuína Assembléia Nacional Constituinte. Convocou-se, sim, um "Congresso Constituinte".

No dia 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, denominada "Constituição Cidadã" porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania. Passava-se, definitivamente, a tratar da "República Federativa do Brasil".

 É a Constituição mais longa de todas as anteriores: são 250 artigos e mais 70 nas disposições transitórias, perfazendo um total de 320 artigos. Acabou até sendo enxuta, pois na primeira versão eram 501 artigos, depois "sintetizados" em 334, até chegar quando da votação em 250. Interessante registrar que a palavra "garantia" aparece 46 vezes no texto constitucional, já "direitos", 16, mas "deveres" é citada somente quatro, revelando sua grande preocupação com as garantias individuais frente a ação do Estado, em manifesta reação ao longo período anterior de ditadura.

 Caio Tácito registra que a Constituição brasileira de 1988, fiel às tradições nacionais, reafirma, como fundamento da ordem jurídica, o princípio da legalidade, fonte de direitos e deveres e limite ao poder do Estado e à autonomia da vontade, considerando-se lei como sendo, por excelência, ato que incumbe ao Poder Legislativo. O Parlamento bicameral, investido da representação popular e federativa, emite, no âmbito traçado pela Constituição, os comandos que estruturam a ordem jurídica. O poder de legislar é atividade precípua do Parlamento que, até mesmo etimologicamente, ‘fala’ em nome do povo[15].

 O princípio democrático ficou cravado no texto constitucional de 1988 de tal modo que, logo no preâmbulo, o constituinte anunciou:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais [...]

 Da mesma forma, ficou gravado no artigo 1º o "republicanismo", doutrina política que prega a honestidade cívica. No parágrafo único do mesmo dispositivo, o constituinte estabeleceu que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", admitindo expressamente a possibilidade de inclusão no sistema jurídico pátrio de modalidades de governo direto.

No que se refere aos objetivos da República Federativa do Brasil de 1988, o constituinte estabeleceu: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º).

 Convém salientar que o princípio adotado pela Constituição Federal de 1988, no que tange à distribuição de competências federativas, foi o postulado da predominância de interesses, segundo o qual à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se às matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local[16].

 Há a manutenção do presidencialismo como sistema de governo representativo vigente, cabendo ao Presidente da República a chefia de Estado e de Governo (art. 76), auxiliado pelos Ministros de Estado, que não são responsáveis perante o Legislativo, que não os pode destituir, como ocorre no parlamentarismo. Não obstante, o Parlamento poderá convocar a presença de Ministros de Estado para prestarem, pessoalmente, informações sobre assuntos determinados, sob pela de crime de responsabilidade sua ausência sem justificação adequada, bem como poderão os Ministros de Estado comparecer ao Parlamento, por sua iniciativa, para expor assunto de relevância de seu Ministério (art. 50). Os Ministros, atualmente, são meros auxiliares do Presidente, por ele nomeados e demissíveis ad nutum, responsáveis pela direção da parcela da Administração Pública colocada sob sua competência, bem como cabe aos Ministros referendar os atos do Presidente, sob pena de imperfeição do ato e sua inexistência jurídica (art. 87, parágrafo único, I).

No que tange ao denominado exercício de governo direto, pela cidadania, importante registrar que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto e direto, com igual valor para todos, e mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14, "caput"). Há a previsão constitucional do plebiscito e, pela primeira vez na história constitucional, do referendo e da iniciativa popular para apresentação de projetos de lei, que foram posteriormente regulamentados pela Lei Federal nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Quanto à iniciativa popular, esta será exercida através da apresentação à Câmara de Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2º). O plebiscito é concebido como uma etapa preliminar no processo decisório e de aprovação de uma determinada lei, sendo condição para entrada em vigor do ato. Já o referendo, por sua vez, é uma instância posterior à vigência do ato, um expediente para ratificação ou cancelamento daquilo já em vigor.

No que tange a este tema, uma das deliberações mais controversas da Constituinte foi o art. 2º das Disposições Transitórias, que dispunha que, no dia 7 de setembro de 1993, haveria um plebiscito para definir a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) a vigorar no Brasil. Esta data foi antecipada para o dia 21 de abril, sob o argumento de que a primeira data escolhida mantinha estreito vínculo com a história monárquica e poderia ser indutiva do voto dos cidadãos. Interessante registrar que, durante a Constituinte, o parlamentarismo já havia sido derrotado, recebendo 213 votos, contra 343 favoráveis ao presidencialismo. Quando do plebiscito, o parlamentarismo foi novamente derrotado, na terceira oportunidade histórica de seu debate, assim como mantida a forma republicana.

 No que tange ainda à cidadania, a Constituição permitiu aos analfabetos (e também aos maiores de 16 e menores de 18 anos de idade) votar nas eleições, não como um dever obrigatório, mas como um direito facultativo (art. 14, § 1º). Para os analfabetos, foi o retorno à participação nas eleições, direito que tinha sido retirado desde a reforma eleitoral de 1881, a Lei Saraiva, ainda no final do Segundo Reinado. No entanto, os analfabetos continuam sem poder ser eleitos, sendo considerados inelegíveis (art. 14, § 4º).

 A Constituição Federal de 1988 pode ser classificada como uma Constituição promulgada, escrita, analítica, dogmática, rígida e dirigente.


CONCLUSÃO

 A análise da história constitucional brasileira revela uma grande luta entre Estado e cidadãos, na difícil e árdua tarefa de fixar os perfeitos limites do poder e das liberdades individuais.

 De qualquer sorte, é plenamente possível aferir-se uma significativa evolução democrática, mesmo que paulatina e gradativa. Pouco a pouco, foram positivados direitos que asseguram, hoje, o pleno exercício das garantias e prerrogativas democráticas, com significativa estrutura normativa de participação direta, inclusive, no processo governamental.

 O Brasil convive há pouco mais de 20 anos com uma realidade democrática, com uma estrutura de normais constitucionais e infraconstitucionais destinadas a propiciar-lhes o direto exercício do poder. Somente após a Constituição de 1988 pode a cidadania formular e apresentar projetos de lei, diretamente, por iniciativa sua e exclusiva, sem a necessidade de intervenção de terceiros que a representem. Há lei regulamentadora do direito ao plebiscito e ao referendo, algo impensável anteriormente, e não no pretexto de justificação já esposado na década de 30, no Estado Novo.

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Após turbulentos "hiatos autoritários", o atual regime político brasileiro fundou um Estado Democrático de Direito que, apesar de todas as adversidades, vem lutando para sedimentar seus valores e princípios, de forma clara e sólida, rogando-se não permita o futuro que se repitam os golpes e as imposições forçadas de sistemas e de governantes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2).

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.

CAVALCANTI, Themístocles; BRITO; Luiz Navarro de; BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1967. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 6).

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 1.).

PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras: 1937. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 4).

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

TÁCITO, Caio. Constituições Brasileiras: 1988. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 7).

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições Brasileiras. 1ª ed. São Paulo: Leya, 2011.


Notas

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 70.

[2] SILVA, op. cit., p. 72.

[3] NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 1.)

[4] NOGUEIRA, op. cit., p. 14.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 77.

[6] BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2).

[7] BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2). p. 49.

[8] Anteriormente, em 1928, no Rio Grande do Norte, foi permitido o alistamento eleitoral das mulheres pela primeira vez em nossa história, ao argumento de que o artigo 70 da Constituição não vedava expressamente o voto das mulheres e o artigo 72, § 2º, da mesma Carta prescrevia a igualdade de todos perante a lei. Ocorre que o número de alistadas foi quase que desprezível. De qualquer sorte, a primeira eleição nacional com participação feminina ocorreu apenas em 1945.

[9] SILVA, op. cit., p. 82.

[10] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 83.

[11] PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras: 1937. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 4). p. 49.

[12] SILVA, op. cit., p. 85.

[13] CAVALCANTI, Themístocles; BRITO; Luiz Navarro de; BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1967. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 6). p. 30.

[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 87.

[15] TÁCITO, Caio. Constituições Brasileiras: 1988. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 7). p. 13.

[16] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 269.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Pontes Borges

Advogado, Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Mestrando em Direito das Relações Internacionais e da Integração na América Latina, da Universidad de La Empresa (U.D.E.).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Antonio Carlos Pontes. O sistema de governo e o exercício da cidadania na história das constituições brasileiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3604, 14 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24432. Acesso em: 7 nov. 2024.

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