III. Excessos e acertos – o caminho orientado pela Lei 12.403/11
A Lei 12.403/11 adequou a sistemática das medidas cautelares pessoais à lógica da presunção de inocência, consagrada em nosso ordenamento jurídico pela Constituição Federal. A prisão cautelar assumeexpressamente seu caráter de medida excepcionalíssima, só podendo ser decretada quando incabível sua substituição por outra medida cautelar.
Nesse contexto, a fiança se afigura como medida cautelar pessoal alternativa à prisão e deve ser fixada, isolada ou acompanhada de outras(i) observando-se o princípio regente da matéria, a saber: o binômio necessidade-adequação; (ii) em consonância com a finalidade específica do instituto, consistente na garantia do juízo e no pagamento dos encargos decorrentes de eventual condenação.
De um lado, a fiança deve ser aplicada apenas quando necessária para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal; de outro, o valor fixado deve ser adequadoà gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Não é demais lembrar que a fiança não pode significar antecipação da pena. Se a presunção de inocência é princípio constitucional, nítida distinção deve haver entre a prisão pena e a prisão cautelar, não se justificando essa por razão outra senão a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Não sendo caso de prisão cautelar, pode ser arbitrada fiança como condição para concessão de liberdade provisória.[11] Indispensável, todavia, que o valor fixado seja proporcional, segundo as circunstâncias concretamente verificadas; que se trate de situação em que o instituto se mostre necessário para assegurar a continuidade da persecução criminal e de quantia adequada segundo a gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Assim porque não se pode confundir as funções da pena – retribuição; prevenção geral e especial, positiva e negativa[12] – com o propósito da fiança, embora algumas recentes decisões pareçam sinalizar em sentido contrário, desvirtuando a natureza do instituto.
Dois casos concretos reclamam atenção para o tema. Em ambos, trata-se do crime de porte de arma (art. 14 da Lei 10.826/03), crime sem vítima, de perigo abstrato e cuja pena máxima é de quatro anos.
Em Sergipe, suposto cometimento de tal delito levou ao arbitramento de fiança no valor de R$ 54.500.000,00 (cinquenta e quatro milhões e quinhentos mil reais) pelo Juízo da Comarca de Lagarto, quantia que foi revista pelo Tribunal de Justiça do Estado e definitivamente fixada em não menos absurdos R$ 54.000,00 (cinquenta e quatro mil e quinhentos reais). [13]
Situação semelhante ocorreu em São Paulo, onde sujeito investigado por portarmunição teve sua fiança arbitrada em 100 (cem) salários mínimos pela autoridade policial. A situação foi revista em Juízo, reduzindo-se o valor para 20 (vinte) salários mínimos; e, ao final, convertida pelo Tribunal de Justiça do Estado no comparecimento semanal em Juízo. [14]
É inadmissível a fixação arbitrária de valores elevados e desacompanhados de qualquer fundamentação razoável. Não é demais repetir que a fiança só tem lugar quando verificada concretamente sua necessidade para garantia da persecução criminal, e desde que o valor fixado seja adequado à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
É dizer que o valor da fiança não pode sujeitar-se ao alvedrio da autoridade policial ou do magistrado, mas deve resultar de uma análise das circunstâncias concretamente verificadas, segundo um filtro de necessidade-adequação e em consonância com a finalidade do instituto.
Felizmente, não raras são as decisões acertadas sobre a matéria. O Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento no sentido de que a exigência do pagamento de fiança deve levar em conta as condições econômicas do afiançado, sob pena de caracterização de constrangimento ilegal. [15]
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem revisto a necessidade e o valor de diversas fianças fixadas arbitrária e abusivamente, de modo a proporcionalmente adequar-se às condições financeiras do afiançado. [16]
Portanto, as condições financeiras do afiançado devem ser levadas em conta para a obtenção de um valor suficiente para a garantia do juízo – de modo que se lhe afigure uma quantia convincente para assegurar seu comparecimento durante a persecução criminal, mas jamais proibitiva a ponto de inviabilizar a sua prestação.
Mas não só.Também a gravidade do crime e as circunstâncias do fato devem orientar a fixação do valor à título de fiança, já que em caso de condenação transitada em julgado (também perda ou quebramento) seu destino será o pagamento das custas, da indenização decorrente do dano causado e da pena de multa, também devem orientar a busca por um valor adequado.
Todavia, sobrevindo absolvição ou extinção da punibilidade, o valor que a constituir será restituído, atualizado e integralmente, ao indivíduo. E mesmo em casos de condenação, após a dedução dos encargos mencionados e não ocorrendo a perda total da fiança, o saldo remanescente do valor inicialmente entregue como fiança será devolvido a quem lhe houvera prestado.
Portanto, seja em função do princípio constitucional da presunção de inocência, quer porque ontologicamente distinta em suas funções e juridicamente incompatível em suas finalidades, a fiança jamais poderá importar em antecipação da pena. Face à dupla finalidade do instituto (assegurar o comparecimento durante a persecução criminal e o pagamento dos encargos decorrentes de eventual condenação), deve exsurgir um valor adequado e proporcional como fiança: que não seja irrisório para os fins a que se destina, mas tampouco inviabilize sua prestação.
Notas
[1] Já assim ensinava E. Magalhães Noronha, no final da década de 1960. (NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 1969, p. 195.)
[2] NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 1969, p. 195.
[3]TORNAGHI, Helio Bastos. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 375.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Direito processual penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 249.
[5]TORNAGHI, Helio Bastos. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 375.
[6] NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 1969, p. 195.
[7]TORNAGHI, Helio Bastos. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 375.
[8]NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 644.
[9] Apenas na remota hipótese do artigo 313, inciso II, demonstrando-se que o indiciado era vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não ter fornecido ou indicado elementos para esclarecê-la, o juiz poderia manter a prisão preventiva – o que se explicava mais por uma ilogicidade da legislação anterior do que por uma sistematização do instituto.
[10]“Esta [a prisão] só deve ser permitida em casos de absoluta necessidade, pois, em face do dano que acarreta à pessoa, sua oportunidade ocorre somente depois da sentença final. Consequentemente, para que se harmonizem os interesses sociais com o do acusado, deve limitar-se a custódia preventiva (em sentido lato) e ampliarem-se os casos de liberdade provisória. É o que nos parece indicar a boa política criminal.”
(NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 1969, p. 195.)
[11]O termo ‘liberdade provisória’ poderia ter sido eliminado, já que provisória é sempre a restrição da liberdade e não a sua concessão. Para PACELLI: “Eis, então, a primeira crítica às novas regras: não é porque o constituinte de 1988, desavisado e desatualizado com a legislação processual penal de sua época, tenhase referido à liberdade provisória, com e sem fiança, que a nossa história devepermanecer atrelada a este equívoco. O que é provisório é sempre a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares, que sempre implicarão restrições a direitos subjetivos. A liberdade é a regra; mesmo após a condenação passada em julgado, a prisão eventualmente aplicada não será perpétua, isto é, será sempre provisória.” PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de processo penal. 14. Ed – Caderno de Atualização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 06.
[12] A pena tem uma função retributiva que lhe é inerente. Desde as primeiras formas de direito penal, usa-se a pena como castigo (vinganças privada e pública); sendo certo que o caráter punitivo nunca se desvinculou da sanção penal.Com a valorização do ser humano, que passa a assumir protagonismo no ordenamento jurídico e orientar a estruturação do Direito Penal, a função preventiva afigura-se como o 'outro lado da moeda'.Se, de um lado, é inegável a função retributiva da pena; no cenário atual, impõe-se a busca por tornar eficaz a sua função preventiva. Prevenção essa que se divide em especial-positiva (ressocialização), especial-negativa (segregação), geral-positiva (reafirmação de valores) e geral-negativa (intimidação).
[13]“HABEAS CORPUS. CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMAS. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA PRISÃO PREVENTIVA. ALEGAÇÃO. EXCESSO NO ARBITRAMENTO DA FIANÇA. ACOLHIMENTO. MINORAÇÃO DO QUANTUM POR CONSIDERÁ-LO EXORBITANTE. APLICAÇÃO DE OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES. COMPARECIMENTO PERIÓDICO EM JUÍZO E PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DA COMARCA.
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA, APENAS NO SENTIDO DE REDUZIR O VALOR APLICADO. DECISÃO UNÂNIME.”
(HABEAS CORPUS Nº 1020/2011, 2ª Vara Criminal de Itabaiana, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, DES. LUIZ ANTÔNIO ARAÚJO MENDONÇA , RELATOR, Julgado em 31/10/2011)
[14] "Concederam parcialmente aordem de habeas corpus, para converter a imposição de fiança em exigência decomparecimento semanal do paciente em Juízo, para informar e justificar suasatividades, nos termos do artigo 282, inciso II, §6º e artigo 319, I, ambos do CPP,sem prejuízo da obrigação de comparecer a todos os atos do processo-crimeoriginário. Expeça-se o alvará de soltura clausulado, na origem, e colha-se ocompromisso. v.u." (Habeas Corpus nº 0041521-08.2012.8.26.0000, São Paulo, 14 de maio de 2012. - Relator Márcio Bartoli)
[15] AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. LIBERDADE PROVISÓRIA.
AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP. EXIGÊNCIA DE FIANÇA.CONSTRANGIMENTO ILEGAL.
1. É bem verdade que o enunciado da Súmula n.º 691 do STF, observado também por esta Corte, preceitua que não cabe habeas corpus contra indeferimento de pedido liminar em outro writ.
2. Contudo, impunha-se, na espécie, o abrandamento do enunciado, pois o paciente somente foi mantido preso cautelarmente por não ter condições de prestar a fiança arbitrada pelo Juiz de primeiro grau, embora ausentes os requisitos da custódia cautelar.
3. Ademais os coinvestigados já haviam obtido, nesta Corte, a liberdade provisória, situação objetiva que deveria ser estendida ao paciente.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no HC 131.418/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 01/03/2012, DJe 12/03/2012)
[16] Habeas Corpus n° 0003190-54.2012.8.26.0000, 10 de maio de 2012; Habeas Corpus nº 0045535-35.2012.8.26.0000, 22 de maio de 2012; Habeas Corpus nº 0030737-69.2012.8.26.0000, 22 de maio de 2012; Habeas Corpus n.° 0184211-94.2011.8.26.0000, 01 de setembro de 2011.