Pode o Ministério Público investigar diretamente infrações penais, por meio de procedimento instaurado no âmbito do órgão, sob a presidência de Promotor de Justiça/Procurador da República? Esse questionamento tem sido motivo de grande alvoroço no mundo jurídico e político.
Os que respondem SIM à pergunta acima formulada asseveram que: a) o poder de investigação é implícito e pode ser extraído da exegese do texto constitucional; b) já que o Ministério Público pode o mais (oferecer denúncia e seguir como parte no curso do processo), pode o menos (investigar com o fito de subsidiar a propositura da ação penal); c) investigar crimes não é atribuição exclusiva das polícias judiciárias.
Os que respondem NÃO ao questionamento do primeiro parágrafo deste ensaio dizem que: a) não existe teoria dos poderes implícitos do Ministério Público (o constituinte originário não incluiu a atividade investigativa expressamente entre as atribuições do MP porque não queria conferir ao órgão tal poder); b) admitir a investigação direta seria concentrar perniciosamente poder no MP (que findaria investigando e acusando); c) a investigação direta afeta a paridade de armas (no futuro processo).
Com o fito de por fim à celeuma, foi proposta a emenda à Constituição tombada sob número 37/2011, de autoria do Deputado Federal Lourival Mendes, do PT do B/MA, que inclui o § 10 no artigo 144 da CF. Eis a redação proposta:
§ 10. A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.
O Ministério Público tem criticado duramente a proposta, argumentando que impedir o órgão de investigar diretamente contribuiria para o incremento da impunidade e dos índices de crimes não solucionados. Trata-se de uma inverdade. O MP, ao receber o inquérito policial (o órgão é o destinatário final de apuratórios que investigam crimes de ação penal pública), pode requisitar materialização de diligências com o fito de aclarar os fatos e essa participação ativa não induz nenhuma nulidade, ainda que o mesmo Promotor de Justiça/Procurador da República participe ativamente (e supletivamente) da fase investigativa e após ofereça denúncia (Súmula 234 do STJ). Ora, já que todo inquérito policial necessariamente passa pelo Ministério Público e pode o órgão requisitar diligências, a tal “impunidade” e o alegado “baixo índice de solução de crimes” também é responsabilidade do órgão acusador (é no mínimo inocência pensar que o MP tem fórmulas mágicas para desvendar crimes e que o índice de solução de casos do órgão é maior que o das polícias judiciárias).
Outra falácia é comparar nosso sistema processual penal com o de países estrangeiros. Penso que nosso sistema é muito bom (passível de ajustes, mas bom na essência), justamente porque delimita de maneira clara as atribuições/competências dos órgãos estatais: o Poder Judiciário julga; MP é órgão acusador; as polícias judiciárias investigam infrações penais; a Defensoria Pública defende judicialmente os hipossuficientes acusados de crimes. Essa é a clara divisão de tarefas feita pelo legislador constituinte.
Nesta toada, é importante deixar claro que o MP não tem corpo auxiliar estruturado em carreira e treinado para investigar crimes. Apurar infrações penais não é apenas ouvir pessoas e requisitar documentos. Investigar é fazer levantamentos de campo, ouvir e analisar interceptação telefônica/telemática e quebras de sigilo judicialmente determinadas, realizar vigilâncias, materializar campanas, dentre outras atividades de difícil ou impossível execução pelo Ministério Público (a não ser que o órgão se utilize, inconstitucionalmente, da PM ou da PRF, polícias preventivas por vocação constitucional).
Ademais, e agora adentrando especificamente no tema deste ensaio, não se pode perder de vista que permitir que o MP investigue diretamente infrações penais dá ao órgão um poder descomunal: o de escolher o que investigar. Explico. As polícias judiciárias são obrigadas por lei a instaurar procedimento investigativo sempre que há notícia da prática de crime de ação penal pública incondicionada (artigo 5º, I, do CPP). Já o MP (caso se permita a investigação direta), terá a possibilidade de escolher os crimes que deseja investigar diretamente (os delitos que não “interessarem” ao órgão, serão objeto de requisição dirigida à polícia).
Outra situação muito observada na prática é a instauração de procedimento investigativo no âmbito do MP e, passado algum tempo (e se percebendo que a solução do crime não é tão simples quanto se pensava), haver a conversão do apuratório em requisição de instauração de inquérito policial (com evidente perda de precioso tempo, indispensável à elucidação do delito).
No fim das contas, pode ser que, por exemplo, o intrincado esquema de desvio de verbas públicas se transmude em procedimento investigativo tocado no âmbito do MP e a simplória prática de crime de falso testemunho no âmbito da Justiça do Trabalho vire requisição dirigida à polícia judiciária, vez que não há como controlar o tal “poder de escolher o que investigar”.
Seria verdadeiramente importante que cada órgão bem desempenhasse seu papel constitucional (o caso do “Mensalão”, AP 470, é um bom exemplo disso – houve exemplar investigação policial tocada pela Polícia Federal e, após, incansável trabalho do MPF na busca da condenação dos acusados na fase processual).
Enfim, o que a sociedade deseja, afinal, é a integração das instituições (MP e polícia) com vistas a identificar, investigar, processar e buscar a punição de criminosos (cada uma exercendo com denodo, presteza e eficiência seu mister).