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Aplicabilidade dos institutos da transação penal e do sursis processual nos feitos da Justiça Militar da União envolvendo acusados civis

28/05/2013 às 08:02
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A caracterização do crime militar, que desloca a competência do julgamento dos civis para a Justiça Militar da União, não pode constituir obstáculo para a incidência dos benefícios penais a que o agente faria jus em outra instância penal.

Constantemente, são submetidas à apreciação do Superior Tribunal Militar (STM) questões afetas à inconstitucionalidade parcial da disposição contida no art. 90-A da Lei nº 9.099/95, especificamente no que diz respeito à impossibilidade de incidência dos institutos da transação penal e do sursis processual, em relação aos civis, nos feitos desta daquela justiça especializada.

As discussões são suscitadas, geralmente, em sede de preliminar de recurso de apelação, onde fica consignado o pedido da defesa, com fundamento no princípio da isonomia, no sentido de fazer valer o direito ao acusado civil do gozo daqueles benefícios legais.

A transação penal e o sursis processual são institutos despenalizadores inseridos no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais no âmbito dos Estados, cumprindo a determinação constante do art. 98 da Constituição da República.[1]

A transação penal, em linhas gerais, consiste na proposta por parte do Ministério Público de uma pena não privativa de liberdade ao agente indicado como suposto autor de infração penal de menor potencial ofensivo, assim considerada aquela cuja pena máxima não exceda a 2 (dois) anos[2]. Se aceita pelo suposto autor do fato, a transação é homologada pelo juiz e o processo penal não é deflagrado[3].

O sursis processual, também de iniciativa do Ministério Público, consiste na proposta de suspensão condicional do processo ao acusado da prática de crime cuja pena mínima não exceda a 1 (um) ano. A proposta é feita por ocasião do oferecimento da denúncia, a teor do que dispõe o art. 89 da referida lei. Se aceita pelo acusado, o processo é suspenso por 2 (dois) a 4 (quatro) anos e, após o cumprimento das condições, é declarada a extinção da punibilidade do agente[4].

As propostas de transação penal e de sursis processual, de acordo com a Lei nº 9.099/95, estão inseridas nas atribuições do Ministério Público, o que permite inferir que a atuação ministerial, nesse caso, é discricionária.

No entanto, há quem defenda que ambos os institutos configuram direito subjetivo do acusado. Para essa corrente, preenchidos os requisitos legais, aquela proposta se torna obrigatória e sua inobservância poderia ser suprida pelo juiz, de ofício[5] ou mediante provocação do interessado[6].

Posição interessante sobre a proposta de sursis processual adotou o Supremo Tribunal Federal, revelando que incumbe ao Ministério Público a palavra final sobre o assunto, mesmo quando o magistrado discorda de seu posicionamento. É o que se depreende do enunciado da Súmula nº 696, in verbis:

Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do Processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.

No âmbito do STM, sempre prevaleceu o entendimento contrário à adoção dos dispositivos da Lei nº 9.099/95 aos crimes militares, muito embora o Supremo Tribunal Federal, antes da publicação da Lei nº 9.839/99[7], reconhecesse a possibilidade de incidência daqueles institutos despenalizadores nos feitos da Justiça Militar, inclusive abrangendo os crimes propriamente militares, in verbis:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. MILITAR. HOMICÍDIO CULPOSO. CPM, ART. 206. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO: LEI 9.099/95, ART. 89. I. - Aplica-se ao processo militar o art. 89 da Lei 9.099/95, que prevê a suspensão condicional do processo (ou sursis processual). Precedentes: RHC 74.547-SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, "DJ" 20/05/97; HC 75.706-AM, Min. Maurício Corrêa, "DJ" 19/12/97. II. - HC deferido (Habeas Corpus nº 77.037/AM, Relator Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, 16/06/1998. DJ de 14/08/1998)

A posição do STM ganhou força a partir da publicação da Lei nº 9.389/99, que acrescentou o artigo 90-A à Lei nº 9.099/95, determinado a vedação  da incidência desta Lei aos crimes militares, nos seguintes termos: as disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.

Como o mencionado art. 90-A não excepciona o crime militar praticado por civis, o STM firmou o posicionamento segundo o qual aquela determinação legal obsta, de forma genérica, a aplicação dos institutos da transação penal e do “sursis” processual no âmbito da Justiça Militar da União, independentemente da situação jurídica do agente (militar ou civil) e da natureza do crime praticado (propriamente militar ou impropriamente militar).

O fundamento constante das decisões do STM reside na especificidade da natureza dos bens jurídicos tutelados na órbita penal militar, em especial a hierarquia e a disciplina, incompatíveis com os referidos institutos despenalizadores. Nesse sentido é o conteúdo do julgado abaixo transcritos:

HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. CRIME PRATICADO POR CIVIL CONTRA MILITAR EM SERVIÇO. OCUPAÇÃO DO EXÉRCITO EM MISSÃO DE PACIFICAÇÃO. INCOMPATIBILIDADE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS (LEI Nº 9.099/1995) COM OS PRECEITOS DA HIERARQUIA E DISCIPLINA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. (...) Os dispositivos contidos na Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995) são incompatíveis com os princípios da hierarquia e da disciplina, os quais se fazem presentes nos bens jurídicos tutelados pela norma penal castrense (...)Ordem denegada. Decisão unânime. (HC n° 4-30.2012.7.00.0000 UF: RJ, Rel. Min. Ten Brig do Ar WILLIAM DE OLIVEIRA BARROS, julgado em 15/2/2012).[8]

A questão até então adormecida volta à discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal. É o que depreende do registro que ficou consignado incidentalmente nos autos do HC nº 99.743/RJ, (Relator Min. Marco Aurélio). De acordo com a declaração obiter dictum dos Ministros Luiz Fux, Ayres Britto e Celso de Mello, foi reconhecida a inconstitucionalidade da norma que veda a aplicação da Lei n. 9.099 ao civil processado por crime militar.

É certo que aquela vedação legal está em consonância com as peculiaridades da vida na caserna, pois não é possível vislumbrar uma transação penal ou outra proposta tendente a mitigar os princípios norteadores das atividades militares – hierarquia e disciplina. No entanto, é necessário discutir a razoabilidade do afastamento da incidência daqueles benefícios legais dos civis, uma vez que estes não se subordinam às exigências que a condição de militar impõe. Sua situação jurídica é diferente!

A isonomia está presente de forma reiterada em nosso texto constitucional. Como princípio norteador da atividade legislativa, ela obriga o legislador à elaboração de normas iguais para as pessoas que se encontram na mesma situação jurídica.

Interessante, nesse sentido, as lições de Canotilho, destacando o seguinte:

quando não houver motivo racional evidente, resultante da natureza das coisas, para desigual regulação de situações de fato iguais ou igual regulação de situações de fato desiguais, pode considerar-se uma lei, que estabelece essa regulação, como arbitrária[9]

Com efeito, na hipótese em que um civil pratica desacato contra um militar das Forças Armadas que exerce atividade voltada para a garantia da ordem pública, deveria ser conferido àquele civil o mesmo tratamento que teria na hipótese de ter dirigido suas ações contra um policial civil ou federal, sob pena de lesão ao princípio da isonomia.

Mas não é isso que vem ocorrendo, em razão da restrição genérica imposta pelo art. 90-A da Lei nº 9.099/95 e acatada pelo Superior Tribunal Militar. Tratar genericamente de situações que demandam tratamento individualizado caracteriza inequívoca ofensa ao princípio da isonomia, com reflexos diretos e significativos sobre a almejada proporcionalidade.

Exemplificando: se em determinada operação conjunta realizada no complexo do Alemão estivessem presentes um militar do Exército, o Secretário de Segurança Pública e o Chefe de Polícia Civil, e um civil resolvesse, deliberadamente, desacatar somente aquelas autoridades civis do Estado do Rio de janeiro, seria lavrado um termo circunstanciado pelo crime previsto no art. 331 do Código Penal (com dispensa da formalização do flagrante delito, em razão da pena aplicada ao crime, de 6 meses a 2 anos), que seguiria para o Juizado Especial Criminal, onde seria possível a proposta de transação penal (em razão da pena máxima igual a 2 anos) e, posteriormente, a proposta de sursis processual (em razão da pena mínima menor que 1 ano). Se o desacato fosse dirigido ao militar, independente de seu posto ou graduação, o civil seria preso em flagrante delito, sem direito à transação penal e ao sursis processual.

Os exemplos indicam que a opção pelo desacato àquelas autoridades civis traz para o agente uma gama de benefícios penais que ele não teria se a vítima do desacato fosse o militar do Exército, em razão das restrições impostas pelo artigo 90-A da Lei nº 9.099/95. Nesse caso, fica evidente que o tratamento dispensado pelo legislador infraconstitucional para situações muito semelhantes é totalmente distinto e desproporcional.

Imaginemos ainda a hipótese de uma operação conjunta supervisionada pelo Ministro da Defesa: enquanto um simples soldado aborda um civil, este resolve demonstrar seu descontentamento por meio do desacato. Se tivesse frieza e perspicácia no momento de optar por sua vítima, a quem dirigiria suas ofensas, considerando a restrição da incidência dos institutos da Lei nº 9.099/95 aos crimes militares?

A problemática envolvendo o princípio da isonomia em relação aos aspectos da Lei nº 9.099/95 já foi objeto de calorosos debates entre os operadores do Direito, e guarda relação com os exemplos acima citados, o que culminou em outra alteração daquela Lei. Isso porque a redação original do art. 61 estabelecia que as infrações de menor potencial fossem assim consideradas quando a pena máxima não excedia a 1 (um ano), in verbis:

Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. (grifei)

Por ocasião da criação dos Juizados Especiais Federais, a Lei nº 10.259/01 estabeleceu o seguinte conceito para as infrações de menor potencial ofensivo no âmbito da justiça federal:

Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.

Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa. (grifei).

A partir de 2001, portanto, o ordenamento jurídico passou a conviver com dois conceitos de infração de menor potencial: aquele do artigo 61 da Lei nº 9.099/95, para as infrações penais com pena máxima até 1 (um) ano; e aquele do artigo 2º da Lei nº 10.259/01, para as infrações penais com pena máxima até 2 (dois) anos. Com efeito, para o agente que praticava crime de competência da justiça comum, o alcance da norma era menor, ao passo que o agente que cometia crime de competência da justiça federal tinha mais possibilidade de ser contemplado pelos benefícios penais.

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O problema, nesse caso, residia na distinção de tratamento prevista no art. 2º da Lei nº 10.259/01, ocasionando algumas aberrações jurídicas, considerando que estabeleceu uma definição legal diversa daquela já sedimentada na jurisprudência e na doutrina acerca do conceito de infração de menor potencial ofensivo.

Exemplificando: um desacato praticado contra um policial civil sujeitava o agente à prisão em flagrante sem direito ao benefício da transação penal, ao passo que o desacato contra um policial federal gerava o simples registro de um termo circunstanciado, com dispensa do flagrante delito e com a possibilidade do benefício da transação penal.

À época, antecipou-se a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer, por unanimidade, que deveria ser ampliado o conceito de infração de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça Estadual, em isonomia às regras estabelecidas para os Juizados Criminais Federais, in verbis:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 16 DA LEI DE TÓXICOS. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL LESIVO. TRANSAÇÃO PENAL. LEI Nº10.259/01 E LEI Nº 9.099/95. I – Com o advento da Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2º, parágrafo único, ampliou-se o rol dos delitos de menor potencial ofensivo, por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito. II – Desse modo, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei n. 9.099/95, aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. Ordem concedida[10].

Com a publicação da Lei nº 11.313/06, estabelecendo um conceito único para as infrações penais de menor potencial ofensivo, findaram-se aquelas discussões. A nova redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 assim passou a dispor: consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa[11].

Com o tempo, a jurisprudência foi se consolidando no sentido de reconhecer que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo (infração penal com pena máxima até dois anos) deveria ter incidência também no âmbito dos juizados estaduais, com fundamento nos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

A partir desse histórico, que culminou com a alteração da Lei nº 9.099/95 no tocante à definição das infrações de menor potencial ofensivo, é possível estabelecer uma linha de raciocínio coerente e pertinente para os feitos submetidos à justiça castrense envolvendo os civis. Aqui, o princípio da isonomia também deve ser o farol, sinalizando para a conclusão segundo a qual a restrição genérica estabelecida por meio na Lei n° 9.389/99, que acrescentou o art. 90-A à Lei nº 9.099/95, deve sucumbir diante da Constituição da República.

A esfera jurisdicional não pode servir de critério determinante para a incidência dos institutos despenalizadores. O discrimen, nesse caso, deve levar em conta a situação do agente e não da natureza do crime (militar ou civil). Aceitar tratamento distinto para situações muito semelhantes configura verdadeira agressão à isonomia constitucional, por permitir que o status de militar da vítima possa influir nos benefícios legais que serão alcançados pelo agente civil. Diante dessa evidente contradição legislativa, cabe ao intérprete afastar a incidência da indesejada discriminação. Nesse sentido, destaca-se o oportuno registro de LUIZ FLAVIO GOMES:

Não se pode admitir o disparate de um desacato contra policial federal ser infração de menor potencial ofensivo (com todas as medidas despenalizadoras respectivas) e a mesma conduta praticada contra um policial militar não o ser. Não existe diferença valorativa dos bens jurídicos envolvidos. O valor do bem e a intensidade do ataque é a mesma. Fatos iguais, tratamento isonômico. [12]

Assim, pelos mesmos fundamentos invocados nas discussões que culminaram na alteração do conceito de infração de menor potencial ofensivo, não existe razão plausível para a exclusão dos civis da incidência dos institutos da Lei nº 9.099/95. A caracterização do crime militar, que desloca a competência do julgamento dos civis para a Justiça Militar da União, seja pela natureza das atividades desempenhas, por exemplo, no complexo do Alemão ou pelo contexto fático de outras ações praticadas em tempo de paz, não pode constituir obstáculo para a incidência dos benefícios penais que o agente faria jus em outra instância penal.

Nesse sentido, interessante as observações de GERALDO PRADO, quando aborda a questão do réu que goza do foro por prerrogativa de função e, por essa razão, não pode ser julgado no âmbito do Juizado Especial Criminal, in verbis:

Se o réu gozar de foro por prerrogativa de função e, portanto, tiver de ser processado e julgado originariamente por um tribunal, neste tribunal terão de ser aplicadas as “vantagens” assim concebidas, no caso a conciliação civil com efeitos penais, a transação penal e a suspensão condicional do processo.[13]

Sustentar que as disposições da Lei nº 9.099/95 não se aplicam no âmbito da Justiça Militar, seja qual for a situação do agente, militar ou civil, configura tendenciosa interpretação destacada do contexto do Estado Democrático de Direito, pois aquela vedação deve incidir somente nos feitos envolvendo acusados militares, diante das especificidades da carreira militar.

Ademais, corolário do princípio da isonomia é o postulado constitucional da individualização da pena, previsto no inciso XLVI do art. 5º da Constituição da República. Em breve síntese, dessa norma constitucional extrai-se que as sanções impostas aos infratores devem ser personalizadas e particularizadas, não só de acordo com as circunstâncias dos crimes praticados, mas, especialmente, à luz das características pessoais do agente.

O princípio da individualização da pena consiste em tornar individual uma situação genérica, no intuito de distinguir alguém dentro de um contexto. Nesse sentido, são as lições de EDGAR MAGALHÃES NORONHA, afirmando que:

O julgador não se pode limitar à apreciação exclusiva do caso, mas tem de considerar também a pessoa do criminoso, para individualizar a pena. (...) A pena não tem mais em vista somente o delito. Ao lado da apreciação dos aspectos objetivos que ele apresenta, há de o Juiz considerar a pessoa de quem praticou, suas qualidades e defeitos, fazendo, em suma, estudo de sua personalidade sem olvidar sobretudo a possibilidade de tornar a delinqüir, ou a periculosidade.[14]

Por essas razões, a restrição imposta por meio da Lei nº 9.839/99, que alterou a Lei nº 9.099/95, impedindo a incidência dos benefícios despenalizadores no âmbito da Justiça Castrense, deve alcançar tão somente os militares acusados da prática de crime militar, uma vez que não existe razão para excepcionar o civil que comete crime militar.

Levando em conta os momentos previstos nas disposições da Lei nº 9.099/95 para as propostas dos benefícios legais objeto do presente estudo, mas com os olhos postos nas especificidades do processo penal militar e nas disposições da Lei de Organização Judiciária Militar, poder-se-ia esboçar o modus  operandi da sistemática a ser observada nos feitos da Justiça Militar no tocante à aplicação daqueles benefícios aos civis:

- quanto à transação penal, uma vez proposta pelo Ministério Público Militar e aceita pelo acusado, esta poderia ser homologada pelo Juiz-Auditor, sem a necessidade de convocação dos Conselhos de Justiça, por representar medida que antecede à instauração do processo penal;

- em relação ao sursis processual, considerando que o momento da proposta coincide com o oferecimento da denúncia e pressupõe a instauração de processo criminal, com recebimento da denúncia e efetivação da citação do acusado, esta somente poderia ser homologada por decisão do Conselho de Justiça;

- no tocante às atribuições da polícia judiciária militar, em se tratando de crime praticado por civil que se amolde ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, poderia ser adotada a sistemática do termo circunstanciado, conforme as diretrizes estabelecidas pelo artigo 69 da Lei nº 9.099/95, in verbis:

A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança (...).

- a exemplo do que ocorre no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, aquele termo circunstanciado evitaria a formalização da prisão em flagrante e dispensaria a instauração de inquérito policial militr. Como estas providências integram as atividades secundárias das Forças Armadas, de polícia judiciária, desonerá-las desses encargos viabiliza a realização de suas atividades principais.

Sobre a dispensa do inquérito policial militar, assim dispõe o § 1º do artigo 77 da Lei nº 9.099/95:

Para o oferecimento da denúncia, que será elaborada com base no termo de ocorrência referido no art. 69 desta Lei, com dispensa do inquérito policial, prescindir-se-á do exame do corpo de delito quando a materialidade do crime estiver aferida por boletim médico ou prova equivalente.

Diante do exposto, com fundamento no princípio da isonomia, conclui-se pela inconstitucionalidade parcial do artigo 90-A da Lei nº 9.099/95, acrescentado pela Lei nº 9.839/99.

Com efeito, em sede de apelação, devem ser desconstituídas a sentença e o processo desde o recebimento da denúncia, e determinada a remessa dos autos ao órgão ministerial de 1ª instância, para que possa se manifestar em relação à providência contida no artigo 76 da Lei nº 9.099/95 (proposta de transação penal) e, posteriormente, se for o caso, quanto à providência constante do artigo 89 da referida Lei (proposta de “sursis” processual), devendo ser observado, também, se for o caso, o estabelecido no enunciado da Súmula nº 696 do Supremo Tribunal Federal.


Notas

[1] Art. 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

[2] Assim dispõe o artigo 61 da Lei nº 9.099/95: consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa  (Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006).

[3] É a previsão do art. 76 da Lei nº 9.099/95: havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.(...) § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

[4] Sobre o sursis processual, dispõe o artigo 89 da Lei nº 9.099/95: nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II - proibição de freqüentar determinados lugares; III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.(...)§ 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.

[5] Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover. Juizados Especiais Criminais - Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 210.

[6] Nesse sentido: GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 169; e BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. Porto Alegre: 1995, p. 118.

[7] A Lei nº 9.839/99 incluiu o art. 90-A na Lei nº 9.099/95, com os seguintes termos: as disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.

[8] No mesmo sentido, a Decisão proferida nos autos do (HC n° 5-15.2012.7.00.0000/RJ, Rel. Min. Gen Ex LUIS CARLOS GOMES MATTOS, julgado em 14/2/2012).

[9] CANOTILHO, JOSÉ JOAQUIM GOMES, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 382.

[10] Habeas Corpus nº 25195/SP. Relator Min Felix Fischer, 5ª Turma, Julgamento em 27/05/2003, DJ de 30/06/2003, p. 274

[11] Redação dada pela Lei nº 11.313/06.

[12] GOMES, Luiz Flávio. Lei dos Juizados Especiais Federais (10.259/2001): Aspectos Criminais (Wunderlich, Alexandre. org. Escritos de Direito e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 223/235).

[13] PRADO, Geraldo. Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 132.

[14] NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 250.

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Sobre o autor
Marcelo Ferreira de Souza

Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais, Mestre em Direito Público e Evolução Social, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, autor da obra Segurança Pública e Prisão Preventiva no Estado Democrático de Direito (Editora Lumen Juris), professor de Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) e de cursos preparatórios para concurso público, presidente e membro de várias bancas de concurso público, em especial, os concursos para o cargo de Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro e para Oficial da Marinha do Brasil integrante do Sistema de Assessoria Jurídica Consultiva daquela Força.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Marcelo Ferreira. Aplicabilidade dos institutos da transação penal e do sursis processual nos feitos da Justiça Militar da União envolvendo acusados civis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3618, 28 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24543. Acesso em: 21 nov. 2024.

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