3 O efeito vinculante na jurisdição constitucional
A autoridade ínsita às decisões das Cortes Constitucionais nas matérias que lhe são afetas, bem como o imperativo de que tais decisões sejam observadas pelos órgãos do Poder Público, são próprios à natureza da jurisdição constitucional e à própria natureza abstrata do processo objetivo, livre de interesses subjetivo-individuais[21]. Nesse sentido, como bem destaca Gilmar Ferreira Mendes, desempenhando o Tribunal, em um Estado Democrático de Direito, a função de guardião da Constituição, é de rigor reconhecer que se faz de todo legítimo impor às decisões proferidas sobre controvérsia constitucional especial proteção e estabilidade processual.[22]
Com efeito, a eficácia geral e a vinculação decorrem do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais[23]. Mecanismos como a eficácia erga omnes e o efeito vinculante obstam a perpetuação de controvérsias interpretativas sobre a Constituição, induzindo à unificação da prática e da interpretação constitucionais. Nesse sentido, resulta que a sujeição das diversas autoridades do Estado à mesma solução constitucional comporta a própria concretização do princípio da unidade da Constituição.[24]
No âmbito dos processos de controle de constitucionalidade concentrados, portanto, apresentam-se como importantes institutos de garantia da estabilidade das decisões a eficácia erga omnes e o efeito vinculante.
Como já destacado, a definição de tais mecanismos, levada a cabo pela doutrina e pela jurisprudência, mostra-se nebulosa, imprecisa. Os institutos são, não raras vezes, tratados (a nosso sentir equivocadamente) como sinônimos, ou ainda como complementares, no sentido de que o efeito vinculante seria um plus em relação à eficácia geral das decisões em sede de fiscalização normativa abstrata.[25]
Uma análise mais aprofundada e cautelosa do instituto do efeito vinculante, porém, destaca seus verdadeiros contornos. Deveras, a investigação do instituto, à luz da experiência das Cortes Constitucionais da Europa Continental, bem como da sua gênese no sistema jurídico brasileiro (quando e por que fundamentos introduzido através da Emenda Constitucional n. 3/1993), revela-nos que o efeito vinculante representa, para a jurisdição constitucional, um acréscimo eficacial sobremaneira distinto da eficácia erga omnes.
Isso porque, pelo efeito vinculante, propõe-se não a reforçar o óbvio: que, por força da eficácia geral, a parte dispositiva das decisões em sede de controle concentrado deva ser respeitada por todos[26]; mas sim destacar que a vinculação dos poderes e órgãos do Estado abrange também os fundamentos determinantes (tragende gründe) das sentenças proferidas no exercício da jurisdição constitucional. Como bem destaca Roger Leal[27]:
Em alguns países europeus, não afeitos propriamente à prática construtivista do stare decisis, percebeu-se a necessidade de reforçar a eficácia das decisões prolatadas no âmbito da jurisdição constitucional, de modo que os demais poderes do Estado, inclusive os tribunais e a administração pública, estivessem vinculados não só à parte dispositiva da sentença, mas também aos motivos, princípios e interpretações que lhe serviram de fundamento (...). A imposição da ratio decidendi que presidiu a decisão (...) teria como efeito normativo necessário a proibição do uso do expediente da reiteração do comportamento julgado inconstitucional (...). Este acréscimo eficacial denominou-se efeito vinculante (Bindungswirkung)
E ainda Gilmar Mendes[28]:
Nesses termos, resta evidente que o efeito vinculante da decisão não está restrito à parte dispositiva, mas abrange também os próprios fundamentos determinantes.
Como se vê, com o efeito vinculante pretendeu-se conferir eficácia adicional à decisão do STF, outorgando-lhe amplitude transcendente ao caso concreto. Os órgãos estatais abrangidos pelo efeito vinculante devem observar, pois, não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado
Deve-se compreender o efeito vinculante, destarte, como vinculação aos motivos, princípios e interpretações acolhidos pelos órgãos de jurisdição constitucional em suas decisões, e não tão-somente à sua parte dispositiva. A práxis do controle de constitucionalidade nas Cortes européias (nas quais o constituinte derivado buscou inspiração para introdução do efeito vinculante em terrae brasilis) enfatiza tais aspectos. É o que se pretende destacar adiante.
3.1 A experiência do efeito vinculante no Direito Comparado
3.1.1 O efeito vinculante na prática constitucional alemã
A concepção de efeito vinculante consagrada pela EC n. 3/1993 está estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31(1) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht – BverfG).[29]
Conforme explica Leonardo Martins[30], as decisões prolatadas em sede de controle normativo têm, além do efeito da força de lei do § 31(2) da BVerfGG (Bundesverfassungsgerichtsgesetz – Lei de Organização do Tribunal Constitucional Federal Alemão), o efeito de vincular os demais órgãos, conforme previsto no § 31(1) BVerfGG, e este, o efeito vinculante, vai além daquele, a força de lei. O vínculo dos demais órgãos à decisão prolatada em controle normativo ganha significado autônomo justamente em face das “razões fundamentais” (tragende Gründe). Ao contrário dos dois demais efeitos (coisa julgada e força de lei), deduzidos exclusivamente do teor da parte dispositiva (Entscheidungsformel) da decisão, o efeito do vínculo às decisões avançou, segundo a jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional tedesco, estendendo-se às razões fundamentais, definidas como tais aquelas que não podem ser dispensadas sem que se comprometa o sentido da decisão (“norma decisória concreta”[31]). Os limites objetivos do parâmetro da vinculação, portanto, são ampliados.
A jurisprudência do TCF, já em seu primeiro ano de atuação, deixou bastante claro que uma decisão sua que declara a inconstitucionalidade de lei vincularia com suas “razões fundamentais” todos os órgãos constitucionais da União, com esteio no § 31(1) BVerfGG. Nos termos da decisão proferida pelo Tribunal[32]:
Uma decisão que declara uma lei nula não tem apenas força de lei (§ 31 II BVerfGG), como também vincula, nos termos do § 31 I BVerfGG, conjuntamente com os fundamentos da decisão, todos os órgãos constitucionais da União, de tal sorte que uma lei federal de mesmo teor não possa ser promulgada novamente (grifo nosso)
Em outra oportunidade[33], pronunciou-se a Corte em sentido semelhante:
O § 31 BVerfGG vincula, de forma geral, todos os tribunais situados dentro do campo de aplicação da lei às decisões do Tribunal Constitucional Federal. Quando o Tribunal Constitucional Federal declara a nulidade ou validade de um dispositivo legal, sua decisão tem força de lei nos termos do § 31 II BVerfGG. Mas, também em outros casos, as decisões do Tribunal Constitucional Federal desenvolvem, segundo § 31 I BVerfGG, um efeito vinculante que vai além do caso particular, já que princípios decorrentes do dispositivo e dos motivos que fundamentam a decisão devem ser considerados pelos Tribunais, em todos os casos futuros, na interpretação da Constituição (grifo nosso)
Em decisão do início da década de 70, o Bundesverfassungsgericht chegou a apontar para a vinculatividade de todos os fundamentos que sustentaram a decisão – BVerfGE 36, 1. Tratava-se de julgado envolvendo o controle de constitucionalidade de tratado internacional (Grundlagenvertrag), firmado entre as antigas RDA e RFA. Esse procedimento de declarar todas as razões de decisão como necessárias, ou seja, como parte das razões fundamentais da decisão e, portanto, vinculantes, não se repetiu mais na jurisprudência da Corte, havendo sido amplamente criticada pela doutrina.[34]
Segue, assim, que o efeito vinculante praticado na Alemanha tem por objeto, fundamentalmente, a ratio decidendi constante da motivação de seus julgados, destinando-se aos demais órgãos e Poderes do Estado – exceto ao próprio TCF.[35]
3.1.2 Efeito vinculante: outras experiências estrangeiras
Roger Leal[36], investigando a praxis do efeito vinculante no Direito Comparado, informa que, em essência, tal efeito, na ordem constitucional espanhola, não difere da realidade observada na Alemanha. A Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Ley Orgánica del Tribunal Constitucional), ao definir os efeitos das sentenças proferidas pela Corte no exercício da jurisdição constitucional, estabelece, no art. 38(1), a aplicação do efeito vinculante a todos os poderes públicos. Ademais, a incidência do efeito vinculante em relação aos tribunais submete a jurisprudência destes à doutrina derivada das decisões que dirimam questões constitucionais, nos termos do art. 40(2), in verbis:
Artículo cuarenta
(...)
2. En todo caso, la jurisprudencia de los tribunales de justicia recaída sobre leyes, disposiciones o actos enjuiciados por el Tribunal Constitucional habrá de entenderse corregida por la doctrina derivada de las sentencias y autos que resuelvan los procesos constitucionales.
Ainda segundo Roger Leal[37], também no sistema de controle de constitucionalidade francês, embora com peculiaridades próprias, apresenta-se consolidado o mesmo perfil do efeito vinculante. Efeito vinculante que encontra lastro diretamente no texto constitucional (e não em leis orgânicas) – trata-se do art. 62[38]. Segundo o autor, com fundamento nesse preceito constitucional, o Conselho Constitucional admitiu, a partir da decisão Loi d’orientation agricole, de 16 de janeiro de 1962, que a autoridade das decisões, por essa norma, vincula não somente a sua parte dispositiva, mas também os motivos que lhe servem de apoio necessário, constituindo o seu próprio fundamento.
Nelson de Sousa Sampaio[39], a seu turno, destaca os elementos do efeito vinculante existentes na Argentina (Constituição Argentina de 1949, não mais em vigor, em seu art. 95) e no México. Neste último, consoante o disposto no art. 107, XIII da Constituição de 1917, impõe-se a observância das teses jurídicas veiculadas pelo Tribunal.[40]
Outrossim, como bem destaca Luiz Guilherme Marinoni, também nos Estados Unidos – com as nuances que são peculiares ao sistema de common law – fez-se presente a idéia de decisão obrigatória e vinculante, binding para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública, concepção essa que passou a ser conhecida como stare decisis em sentido vertical. É que, malgrado a doutrina americana tenha demorado para individualizar os precedentes constitucionais – isto é, os precedentes que tratam de questões constitucionais – diante dos demais precedentes de common law e de interpretação legal, consoante frisado por Michael Gerhardt, o certo é que o stare decisis também se impôs diante dos precedentes constitucionais. No caso Cooper v. Aaron, de 1958, por exemplo, a Suprema Corte decidiu que a interpretação da Décima Quarta Emenda era a supreme law of the land e vinculava os demais estados.[41]
Nota-se, portanto, que o efeito vinculante, instituto presente em diversos países, deve ser entendido como vinculação aos fundamentos determinantes (ratio decidendi) das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, e não somente ao dispositivo do decisum. A compreensão do instituto, tal como positivado no ordenamento jurídico brasileiro, deve seguir essa mesma orientação. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do processo concentrado de constitucionalidade, tem evoluído nesse sentido.
3.2 A experiência do efeito vinculante no sistema constitucional brasileiro
A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, introduziu, no esquema de controle de constitucionalidade praticado no país, a ação declaratória de constitucionalidade (ADC). Às decisões definitivas de mérito em sede de ADC, a Emenda atribuiu, além da eficácia erga omnes, efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.
Manifestando-se sobre os limites do efeito vinculante, decidiu inicialmente o STF no sentido de que seus limites objetivos estariam limitados à parte dispositiva da decisão. Consoante entendimento esposado no voto do Min. Moreira Alves, no bojo da ADC-QO 1[42]:
a) – se os demais órgãos do Poder Judiciário, nos casos concretos sob seu julgamento, não respeitarem a decisão prolatada nessa ação, a parte prejudicada poderá valer-se do instituto da reclamação para o Supremo Tribunal Federal, a fim de que este garanta a autoridade dessa decisão;
b) essa decisão (e isso se restringe os dispositivo dela, não abrangendo – como sucede na Alemanha – os fundamentos determinantes, até porque a Emenda Constitucional n. 3 só atribui efeito vinculante à própria decisão definitiva de mérito), essa decisão, repito, alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu origem a ela mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos como constitucionais ou inconstitucionais (...) (grifos acrescidos)
A orientação fixada pelo Min. Moreira Alves, contudo foi aos poucos superada pela jurisprudência da Corte. De fato, importante destacar que, mesmo na justificativa da proposta de Emenda Constitucional, apresentada pelo deputado Roberto Campos, destacou-se que a introdução do efeito vinculante na jurisdição constitucional tinha por propósito justamente alcançar os fundamentos determinantes, e não apenas a parte dispositiva do decisum – cuja vinculatividade pode ser extraída já da qualidade de coisa julgada e da eficácia erga omnes. Conforme foi destacado por Roberto Campos na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 130/92:
Além de conferir eficácia erga omnes às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, a presente proposta de emenda constitucional introduz no Direito brasileiro o conceito de efeito vinculante em relação aos órgãos e agentes públicos. Trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito processual alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe).
A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua realização, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada como a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Conseqüência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma lei do Estado A, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante no estado B ou C (...) (grifos nossos)
Resulta, mesmo em virtude dos objetivos visados com a introdução do efeito vinculante no Brasil, que o instituto, também no âmbito do processo constitucional brasileiro, é voltado/vocacionado a tornar obrigatória parcela da decisão diversa do dispositivo. Seu objeto transcende o decisum em sentido estrito, alcançando os seus fundamentos determinantes, a ratio decidendi subjacente ao julgado.[43]
Com efeito, se já sob uma perspectiva lógica, o efeito vinculante tem autonomia semântica/conceitual própria (decorrente da exclusão dos aspectos alusivos à coisa julgada e à eficácia contra todos), por outro, as próprias razões que levaram o constituinte derivado a introduzir o efeito vinculante conduzem ao acatamento da tese da transcendência dos motivos determinantes. Pensar de outra maneira é ignorar a própria racionalidade do processo legislativo constitucional.
Pois bem. A jurisprudência do STF, como já afirmado, fugiu à orientação fixada inicialmente pelo Min. Moreira Alves. Na Reclamação n. 1.987/DF[44], o Plenário da Corte teve oportunidade de se manifestar no sentido de que, por força do efeito vinculante, os Poderes Públicos estão submetidos aos fundamentos que sustentam as decisões do Tribunal nas ações do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Naquela assentada, assim se manifestou o Min. Maurício Corrêa, destacando o aspecto da vinculatividade dos fundamentos determinantes:
A questão fundamental é que o ato impugnado não apenas contrastou a decisão definitiva proferida na ADI 1.662, como, essencialmente, está em confronto com seus motivos determinantes. A propósito, reporto-me à recente decisão do Ministro Gilmar Mendes (RCL 2.126, DJ de 19/08/02), sendo relevante a consideração de importante corrente doutrinária, segundo a qual a ‘eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os Tribunais e autoridades nos casos futuros’, exegese que fortalece a contribuição do Tribunal para preservação e desenvolvimento da ordem constitucional
Nessa mesma senda, pronunciou-se o Min. Gilmar Mendes, nos autos da Reclamação n. 5.470/PA[45]:
A reclamação constitucional – sua própria evolução o demonstra – não mais se destina apenas a assegurar a competência e a autoridade de decisões específicas e bem delimitadas do Supremo Tribunal Federal, mas também constitui-se como ação voltada à proteção da ordem constitucional como um todo. A tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes da decisão no controle abstrato de constitucionalidade, já adotada pelo Tribunal, confirma esse papel renovado da reclamação como ação destinada a resguardar não apenas a autoridade de uma dada decisão, com seus contornos específicos (objeto e parâmetro de controle), mas a própria interpretação da Constituição levada a efeito pela Corte. Esse entendimento é reforçado quando se vislumbra a possibilidade de declaração incidental da inconstitucionalidade de norma de teor idêntico a outra que já foi objeto de controle abstrato de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal.
Faz-se patente, portanto, a mudança de orientação do STF. Orientação essa que confere ao efeito vinculante os seus verdadeiros limites.