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Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova

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12/06/2013 às 08:46
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8.Convenções sobre o ônus da prova

O artigo 333, parágrafo único do CPC restringe a inversão do ônus da prova convencionada pelas partes quando: a) recair sobre direito indisponível da parte; b) tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

Conforme comenta João Batista Lopes, a possibilidade de convenção pelas partes do encargo probatório enseja o desvirtuamento da índole dispositiva do CPC, porquanto a iniciativa probatória é das partes, mas a condução do processo deve estar sob a égide do juiz.[29]

Todavia, o artigo 51 do CDC impõe nulidade na convenção que incumba o consumidor do ônus da prova de suas alegações.

 A meu ver, sou favorável a convenção das partes sobre ônus da prova, mas com as restrições do código..


9.Ônus da prova de fato negativo

A doutrina atual já não mais adota o brocardo negativa non sunt probanda, porquanto todo fato negativo tem correlação com um fato positivo e vice-versa. Todavia, é necessário fazer a distinção ente negativa absoluta da negativa relativa.

A negativa absoluta é indefinida no tempo e no espaço, ao passo que a negativa relativa define-se com a delimitação temporal e espacial. Tal distinção verifica-se no singelo exemplo: nunca estive em Salvador é diverso do que afirmar na noite de 31 de dezembro do ano de 2011 eu não estava em Salvador, mas sim no Rio de Janeiro. A assertiva de um fato positivo subsequente impõe ao que alega o fato a respectiva prova de sua ocorrência.

Arruda Alvim sustenta que nos casos de negativas relativas o ônus da prova é bilateral, qual seja, a prova incumbe a ambas as partes.[30]

Fredie Didier Jr. Já afirma que o ônus da prova é sempre unilateral, porquanto o ônus compartilhado não funciona como regra de julgamento.[31].

Concordo com o jurista baiano, pois, o ônus da prova de determinado fato deve ser de uma das partes, justamente em razão da regra de julgamento. Se no momento de decidir não houver elementos suficientes para a prolatação da sentença, o juiz norteará seu julgamento com base do ônus da prova de determinado fato a uma das partes.


10.A prova diabólica

A impossibilidade ou a grande dificuldade da realização da prova que permita uma formação plena do juízo de fato que acarreta violação ao direito fundamental à prova traz em si mesma a análise de outra figura que se mostra incompatível com o exercício do direito de ação e com a ampla produção de provas: a chamada prova diabólica.

Danilo Knijnik leciona que a dificuldade ou a impossibilidade da produção da prova equivale à vedação do direito ao acesso à justiça e à tutela jurisdicional.[32]

 Tal dificuldade ou impossibilidade na produção da prova não se verifica só da parte autora, como ordinariamente acontece nas ações decorrentes das relações de consumo, em que se transfere do consumidor ao fornecedor o encargo probatório, nos termos previstos no artigo 6º, inciso VIII do CDC.

Arthur Carpes exemplifica o caso que tramitou na Justiça do Rio Grande do Sul no qual o juízo de primeiro grau havia incumbido do ônus da prova empresa de telefonia móvel quanto ao fato alegado pelo consumidor da inexistência de cancelamento da linha telefônica celular. A prova de tal fato negativo mostra-se inexequível. Logo, entendeu a Décima Oitava Câmara Cível daquele Tribunal que a prova havia sido diabólica para o apelante.[33]

O segundo exemplo dado pelo autor de prova diabólica é aquela decorrente da alegação de impenhorabilidade do único imóvel residencial do executado. É mais fácil para o exequente provar que o executado possui outros imóveis do que o executado provar que não os possui, porquanto a prova de fato negativo quando não mensurado no tempo e no espaço revela-se impraticável. Neste sentido aponta o autor ser a atual orientação do Superior Tribunal de Justiça.[34]

Por fim, é pertinente mencionar o último exemplo dado pelo autor, qual seja, do erro médico. Aponta o autor as enormes dificuldades da parte autora de provar os fatos constitutivos, como o dano, a culpa o nexo de causalidade neste tipo de erro, porquanto os dados relativos ao histórico da enfermidade estão nos prontuários médicos de posse do profissional que fez a cirurgia e não do paciente.

Enfim, todos estes casos de prova diabólica sé denotam a clara necessidade de uma reformulação do regramento do ônus da prova.


11.O surgimento e aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova no Mundo

Conforme já visto, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova teve origem na concepção do jurista Jerémie Bentham,segundo a qual o ônus da prova incumbe à parte que tem melhores condições de produzi-la. Todavia, o grande propagador desta teoria é o jurista argentino Jorge Walter Peyrano. Coube a ele difundir a teoria, a partir de 1981.

Não obstante, há uma diferença entre a concepção original de Bentham e a divulgada por Peyrano. Enquanto Bentham adota a teoria da distribuição dinâmica como regra geral, Peyrano a propaga como exceção à regra estática do ônus da prova, isto é, a dinamização só ocorrerá quando a prática ortodoxa se mostrar ineficiente em face do caso concreto e da desigualdade patente entre as partes na possibilidade da produção da prova.

Peyrano passou a demonstrar que, em determinados casos, em circunstâncias específicas, a regra convencional do ônus da prova, que atribui o encargo da prova à parte em face da posição processual e da natureza dos fatos a serem provados, mostra-se insuficiente na coleta de provas que permita uma avaliação absoluta e justa pelo juízo de fato.

A teoria difundida por Peyrano procura desatrelar a produção da prova com a posição processual da parte, assim como da natureza dos fatos alegados em juízo. Aquela ideia inflexível de que quem alega deve fazer sempre a prova passa a ser modificada pela ideia que a prova de determinada alegação, quando não for possível ser feita pela distribuição estática do ônus da prova, deve ser feita pela parte que está em melhores de condições de produzi-la.

Com isto procura-se na condução do processo afastar da parte a prova diabólica, qual seja, a prova inexequível, de modo aproximar a sentença de uma decisão justa e não apenas sob a égide da segurança jurídica.

Frise-se, contudo, que, na concepção de Peyrano, a dinamização não substitui a distribuição estática do ônus da prova. Ela é supletiva e não substitutiva.

Mas, outra questão que surge da ideia da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova é saber como se chega à conclusão de que deve, por exemplo, o réu e não o autor fazer a prova de fato constitutivo.

O juiz pode obter esta ilação, no inicio da fase probatória, em razão de vários aspectos: i) quando verificar que a parte desempenhou papel preponderante no fato que deu origem à controvérsia; ii) de possuir a parte coisas ou documentos essenciais à instrução do processo; iii) de ser apenas aquela parte a única que detém a prova sobre o fato controvertido; e iv) em razão de aspectos técnicos profissionais ou jurídicos que a parte está imbuída com elação ao caso concreto.

Com a distribuição dinâmica do ônus da prova, estabelece-se o equilíbrio de forças entre as partes, de tal forma que o juiz terá melhores condições de formar um convencimento que norteie uma sentença não só com segurança jurídica mas, sobretudo, justa.

Neste contexto,Paulo Rogério Zaneti cita o comentário de Héctor E. Leguisamón:

“O conceito de ônus da prova tem evoluído no direito processual, aceitando-se um sentido mais flexível e facilitador de colaboração e boa-fé ao direito de provar. Assim aparece o novo conceito de ônus probatório compartilhado, como manifestação de uma nova cultura no processo judicial, caracterizada pela vigência do princípio da solidariedade e o dever de cooperação de todos na procura de um rendimento do serviço de justiça mais eficiente que o atual, no qual se encontra aceitável que, em boa medida, a tarefa probatória seja comum a ambas as partes.”[35]

A Teoria da carga dinâmica da prova propagada na Argentina, por Peyrano, vem sendo também utilizada em outros países como Uruguai e Espanha.

No Uruguai, o artigo 139. do CPC pátrio preceitua:

139.1 Incumbe provar a quem pretende algo,os fatos constitutivos de sua pretensão; quem contradisser a pretensão de seu adversário terá o ônus de provar os fatos modificativos, impeditivos ou extintivos daquela pretensão;139.2 A distribuição do ônus da prova não impedirá a iniciativa probatória do tribunal nem a sua apreciação, conforme as regras da melhor doutrina, das omissões ou deficiências da prova.[36]

Na Alemanha, o Supremo Tribunal alemão(BGH) admite a aplicação da dinamização probatória em casos como de responsabilidade médica, responsabilidade nas relações de consumo, nas relações de trabalho,meio ambiente e contratos financeiros.

Na Espanha, a teoria da carga dinâmica da prova foi adotada no direito positivo daquele país na Lei de Enjuiciamiento Civil( Lei 1/2000)., no artigo 217.

Na Argentina, o berço da teoria, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova vem sendo aplicada nos casos de acidentes de trânsito, concursos, contrato de depósito, contratos de financiamento, contratos de trabalho, criminal correicional, danos e prejuízos, direito bancário, entidades financeiras, falsificação de cheques, lesão subjetiva, locação de obra, imprensa, responsabilidade contratual, responsabilidade extracontratual, responsabilidade médica, seguridade social, simulação e títulos de crédito.[37]

Enfim, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova pode ser conceituada como a atribuição do encargo da prova à parte que tem melhores condições de produzi-la, independentemente de sua posição processual e da natureza dos fatos a serem provados, de modo a permitir uma avaliação absoluta e justa dos fatos pelo juiz da causa.


12.Aplicação da Teoria no Brasil

No Brasil, a teoria já vem sendo estudada pela doutrina e também pragmatizada pelos Tribunais em situações que a distribuição estática do ônus da prova mostra-se insatisfatória na coleta de provas que redunde em um convencimento judicial com absoluta apreensão da veracidade dos fatos e via, de consequência, numa sentença justa.

Ao comentar a insuficiência da aplicação do artigo 333 do CPC em face de determinadas peculiaridades no caso concreto, Arruda Alvim, leciona que:

Casos haverá em que se poderá ter dúvida a respeito da distribuição, in concreto, do ônus da prova.Um dos critérios preconizados é o de, então, atentar-se, para a facilidade com que um litigante faria a prova do fato que lhe interessa e, correlatamente, a extrema dificuldade que essa mesma prova acarretaria se fosse feito pelo outro litigante.”[38]

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Antonio Janyr Dall’Agnol Jr, em artigo publicado na Revista dos Tribunais, assim define a teoria em comento:

“Pela teoria da distribuição dinâmica dos ônus probatórios, portanto, (a) inaceitável o estabelecimento prévio e abstrato do encargo; (b) ignorável é a posição da parte no processo; (c) e desconsiderável se mostra a distinção já tradicional entre fatos constitutivos, extintivos etc. Relevam, isto sim, (a) o caso em sua concretude e (b) a natureza do fato a provar - imputando-se o encargo àquela das partes que, pelas circunstâncias reais, se encontra em melhor condição de fazê-lo.”[39]

 Danilo Knijnik realça a função da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova para afastar a figura da prova diabólica, nos seguintes termos:

A invocação do ônus dinâmico entraria em jogo quando a aplicação daquelas regras iniciais conduzisse a uma probatio diabólica, vindo a inutilizar a ação judiciária e o acesso útil ao Estado-jurisdição.[40]

 Antonio Jeová Santos enfatiza a função instrumental da teoria ao asseverar:

 “a doutrina da carga dinâmica das provas surge exatamente como precioso ferramental jurídico para aliviar o peso que a parte carrega para efetuar a prova diabólica. Esta doutrina visa a flexibilizar a regra geral insculpida no art. 333 do CPC. Diz respeito ao ônus da prova, ao ônus probandi.”[41]

Elizabeth de Castro Lopes e João Batista Lopes lecionam que a teoria da carga dinâmica da prova compatibiliza-se plenamente com a Constituição Brasileira quando se coteja a teoria com os princípios constitucionais do acesso à justiça( artigo 5º, XXXV) do devido processo legal(art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa(art. 5º, LIV).[42]

A teoria da distribuição do ônus da prova, embora ainda não positivada no Código de Processo Civil brasileiro, já vem sendo aplicada em determinados casos por nossos Tribunais, justamente tendo como porta de entrada o sistema constitucional que visa não só a segurança jurídica, mas também a efetividade da tutela jurisdicional.

Neste sentido, João Monteiro de Castro afirma que:

“A jurisprudência, dando mostras de flexibilizar o entendimento tradicional, em homenagem ao principio da efetividade da tutela jurisdicional, na medida em que esta objetiva garantir o direito a quem realmente o titule, já agrega esta teoria, que encontra campo no panorama do direito positivo brasileiro, sem, contudo, com ele conflitar”[43]

Todavia, não é apenas a Constituição que assegura a aplicação da teoria no Direito brasileiro. Ao lado do artigo 5º, caput e inciso I, da CF, a isonomia alçada em nível processual é prevista expressamente no artigo 125, inciso I do CPC.

Neste contexto, quando a aplicação do artigo 333 do CPC mostrar-se ineficiente para assegurar às partes a igualdade na produção da prova, o artigo 125, inciso do CPC poderá ser aplicado para corroborar a distribuição dinâmica do ônus da prova.

Fredie Didier Jr. aponta outros artigos do CPC que corroborariam também a distribuição dinâmica do ônus da prova, como os artigos 14, 16, 17,18 e 125, III, que tratam da lealdade, boa fé e veracidade processual, os artigos 339, 340, 342,345 e 355, que tratam sobre a cooperação das partes com o magistrado na elucidação dos fatos controvertidos.[44]

Mas, ainda não é só.Pode-se extrair da interpretação sistemática dos artigos 333, parágrafo único, inciso II, 130 e 339, todos do CPC a possibilidade legal da dinamização do ônus da prova.

O artigo 333, parágrafo único, do CPC, dispõe que:É nula a convenção que dispõe de maneira diversa o ônus da prova quando: I - recair sobre o direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma das partes o exercício do direito.

O artigo 130 preceitua: Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

O artigo 339, por sua vez expressa: Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.

Esta conjugação de preceitos vai de encontro à possibilidade da dinamização do ônus da prova, na medida em que se procura afastar a prova diabólica, assegurar a paridade instrumental entre as partes, conferir amplos poderes ao juiz na condução probatória, podendo se imiscuir quando a distribuição estática do ônus da prova tornar-se inexequível, e ainda, impor-se o dever de colaboração das partes com a descoberta da verdade, ainda que para uma delas não seja interessante a produção da prova.

Apenas para registro, impende mencionar que o artigo 232 do Código Civil brasileiro de 2002 dispõe que a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia com a obtenção do exame. Vale concluir que se o réu, numa ação de investigação de paternidade se negar ao exame do DNA, caberá a ele provar que não é o pai.

Em suma, a dinamização do ônus da prova pode ser aplicada atualmente, ainda que não tenha positivação expressa, mediante a aplicação supletiva dos preceitos constitucionais e processuais acima indicados.

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Sobre o autor
Fernando Luiz Vicentini

Mestrando em Processo Civil pela PUC –SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTINI, Fernando Luiz. Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3633, 12 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24683. Acesso em: 29 mar. 2024.

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