No dia 5/6/2013, o Plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou, por unanimidade, o projeto de lei estadual nº 21/2013, que trata da intitulada “ficha suja” de motoristas.
O projeto do Deputado estadual Cauê Macris (PSDB), nos termos de sua ementa, “torna obrigatória a publicação, no Diário Oficial do Estado, pelo Departamento Estadual de Trânsito do Estado de São Paulo – DETRAN, da relação dos condutores de veículos automotores punidos com a perda da carteira de habilitação por dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa, que cause dependência, conforme regulamentação do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN”.
Nos termos do referido projeto, a relação dos condutores infratores deverá vir preenchida com o nome completo do infrator, o respectivo número do registro da carteira de habilitação e a fundamentação da punição administrativa.
O ato normativo, apesar de bem intencionado, padece de vícios de inconstitucionalidade e, indiretamente, contribuirá para o aumento de demandas judiciais, com prejuízos, assim, à maltratada celeridade judicial.
Inicialmente, deve-se observar que o projeto padece de inconstitucionalidade em razão da matéria nele tratada. Como se pode extrair diretamente de seu texto, o referido projeto trata de matéria de trânsito e esse tema está entre os da competência privativa da União, nos seguintes termos da Constituição de 1988:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XI – trânsito e transporte.
Trata-se, dessa forma, de matéria de competência privativa da União, versada por lei estadual, o que acarreta inegável inconstitucionalidade formal, na modalidade orgânica.
Sobre esse vício de inconstitucionalidade, preleciona Elival da Silva Ramos[1], in verbis:
Tradicionalmente, inclui-se no conceito de vício formal a chamada inconstitucionalidade orgânica, consistente na falta de competência do agente de produção normativa. Nesse sentido, Alfredo Buzaid alude à inconstitucionalidade formal subjetiva, ao apontar que “os requisitos formais concernem, do ponto de vista subjetivo, ao órgão competente, de onde emana a lei; e, do ponto de vista objetivo, à observância da forma, prazo e rito prescrito para a sua elaboração.
Nesse ponto, importante mencionar o conteúdo do parecer nº 693/2013, da Comissão de Constituição, Justiça e Redação, de relatoria do Deputado estadual Fernando Capez, sobre o Projeto de Lei nº 21/2013. Nesse parecer, o Deputado Relator identifica o projeto de lei estadual como de matéria procedimental processual, o que qualificaria o conteúdo como de competência concorrente (e não de competência privativa da União), nos termos do art. 24, XI, da Constituição:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XI – procedimentos em matéria processual.
Com todo respeito ao Nobre Deputado estadual, a matéria tratada pela lei estadual paulista da “ficha suja” de motoristas é de trânsito, e não procedimental processual.
Essa discussão encontra paralelo recente na história legislativa paulista. A lei estadual paulista nº 11.819/2005, que versava sobre a utilização do sistema de videoconferência no Estado de São Paulo, aprovada pela Assemleia Legislativa sobre a fundamentação de que tratava de matéria procedimental processual (matéria de competência concorrente, nos termos do art. 24, XI, da CF88, como visto), foi declarada formalmente inconstitucional pelo STF, na modalidade orgânica, por tratar de matéria processual penal, que é de competência privativa da União (art. 22, I, CF88).
A semelhança entre os atos normativos, em seus vícios orgânicos de inconstitucionalidade, é evidente e o futuro da lei estadual paulista da “ficha suja” dos motoristas deverá ser o mesmo da pretérita lei estadual da videoconferência. Esse vício é insanável.
Mas não é apenas esse o vício de inconstitucionalidade da lei paulista da “ficha suja” dos motoristas.
Como se extrai de seus próprios termos, a lista publicada envolverá todos os motoristas punidos administrativamente com a perda da carteira de habilitação.
O pressuposto da comunicação é, então, a simples existência de sanção administrativa, a qual, no Estado Democrático de Direito brasileiro, não é definitiva. Essa decisão administrativa, como se sabe, poderá ser questionada judicialmente, sendo certo que todas essas situações serão igualmente apuradas em processo judicial penal, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, por se tratar, em tese, de crime previsto no art. 306 da lei federal nº 9.503/97.
Assim, em segundo lugar, a lei estadual é também inconstitucional porque atribui efeitos típicos penais (efeitos gerais de reprovação[2]) a pessoas não condenadas por decisão judicial definitiva, em violação frontal ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Além disso, a referida divulgação parece inconveniente, da forma prevista pela denominada lei estadual da “ficha suja” dos motoristas, pois eventual absolvição, em processo judicial, poderá gerar situação de danos morais à pessoa envolvida, o que, indubitavelmente, contribuirá para o aumento de demandas judiciais, com prejuízos à já maltratada celeridade judicial.
Ao contrário da inconstitucionalidade orgânica anteriormente tratada, esse vício material não é insanável.
A correção a esse vício de inconstitucionalidade seria a previsão de inclusão na lista apenas daqueles condenados definitivamente em processo judicial penal. Nesse caso, contudo, a lei estadual continuaria incorrendo em inconstitucionalidade, mas, novamente, na modalidade orgânica, isso porque, com a alteração proposta, a lei estadual passaria a dispor, claramente, de matéria penal, que é, nos termos do art. 22, I, da CF88, mais uma vez, matéria privativa da União. O vício de inconstitucionalidade será, igualmente, insanável.
Em conclusão, considerando que os vícios de inconstitucionalidade orgânica analisados são insanáveis, a sorte da denominada lei estadual da “ficha suja” dos motoristas deverá ser a sua extirpação da ordem jurídica paulista.
Notas
[1] Cf. A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção. São Paulo, Saraiva, 1994, p.150.
[2] Cf. Rogério Greco. Curso de direito penal – volume 1: parte geral. 10ª ed., Niteroi, Impetus, 2008, p.489-491.