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A arte da decisão e o caso dos fetos anencefálicos: uma abordagem sociológica

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5. Interpretação das normas como mecanismo de evolução social: a teoria sistêmica de NiklasLuhmann

Completando-se o pensamento dos autores já citados, com o objetivo de explicar o que torna a decisão judicial legítima, mesmo quando se trata de questões políticas, e de reiterar o pensamento de Bourdieu acerca da possibilidade sempre presente de arbitrariedade judicial, passa-se à análise do caso sob a ótica da teoria sistêmica de NiklasLuhmann.

A teoria sistêmica tem origens na biologia. Luhmann a aplica às ciências sociais, bem como ao direito, para dizer que os sistemas se autoproduzem a partir da diferenciação funcional do seu ambiente, criando uma estrutura que é relativamente independente de todo o resto, e estão conectados uns aos outros na medida em que se comunicam cognitivamente. O sistema surge para organizar as múltiplas possibilidades (complexidade) e incertezas (contingências) da vida, simplificando-as através do código binário por meio do qual opera, respondendo sim ou não. Assim, a sociedade é um sistema, bem como a moral, a política, o direito, etc.

A questão do código binário é de extrema importância para a análise da legitimidade da decisão em questão. Tudo o que entra no sistema, por mais variado e incerto que seja, vai sair determinado com uma certeza, que é dada pelas duas únicas possibilidades de resposta que o sistema tem a dar. No caso do direito, o código binário por meio do qual ele simplifica a vida, contém unicamente as respostas: lícito ou ilícito. Assim, todos os problemas que são levados ao Judiciário são respondidos com uma dessas possibilidades. O direito comunica-se cognitivamente com outros sistemas e evolui com a própria evolução da sociedade e de suas complexidades. “O princípio do desenvolvimento são as crescentes complexidades e contingência da sociedade. É a partir daí que as estruturas da sociedade, entre elas o direito, sofrem pressões no sentido de mudança”.[14].

Com o desenvolvimento da complexidade social,

um número maior de comportamentos variados torna-se juridicamente possível. Diminui a dependência do direito de sentidos concretamente fixados e da amalgamação com outras esferas funcionais [...]; por outro lado cresce a dependência de um mecanismo especial de seleção do direito vigente e de tudo aquilo que esses dispositivos complementares e amparadores pressupõe.[15]

Esse mecanismo especial de seleção é justamente o que determina quais situações são jurídicas, quais não são; quais problemas o direito pode resolver. Ou seja, é a organização da complexidade crescente. E quanto mais a sociedade se desenvolve, mais comportamentos entram na esfera do direito, porquanto as normas tornam-se mais abstratas. É isto que caracteriza a evolução dos sistemas, que ocorre, segundo, Luhmann, pela ação conjunta de três mecanismos:

1) Primeiro, uma superprodução de possibilidades, que, no campo do direito, se traduz numa superprodução de projeções normativas, cada vez mais divergentes.

2) Segundo, essas diversas possibilidades são selecionadas pelo sistema jurídico, através do processo: o processo determina quais questões podem ser levadas ao Judiciário, e qual das duas possibilidades de respostas (lícito ou ilícito) será dada a elas.

3) Por fim, o terceiro mecanismo é o da estabilização e manutenção das possibilidades selecionadas pelo sistema, através da abstração do sentido normativo.

Trazendo este arsenal teórico para o caso concreto, pode-se entender que a superprodução de possibilidades se dá a partir do momento em que muda a concepção de significado acerca da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, que não é mais interpretada como aborto pela categoria médica. Surgem, então, outras possibilidades de interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal. Tais possibilidades foram selecionadas por diversos tribunais, que proferiam seus julgamentos nos termos próprios do código binário do sistema, tomando a questão ora como lícita, ora como ilícita. Tal situação gerava uma enorme insegurança jurídica, até que a questão foi estabilizada pelo STF quando do processo de julgamento da ADPF nº 54, que decidiu a questão como lícita e que, por meio do estabelecimento de súmula vinculante sobre o assunto, abstraiu as possibilidades de interpretação da “lei do aborto”, estabilizando-as. Desta maneira explica-se a legitimidade da decisão do Supremo, a partir da teoria sistêmica de Luhmann.

O que tornou a questão polêmica, porém, não foi o tribunal ter decidido ou não além do que seu código binário permite, mas o fato de a questão analisada ter um forte cunho político, fazendo surgir o risco de que o Judiciário estaria invadindo o espaço do poder Legislativo. Ora, tal possibilidade não deixa de existir, há sempre uma parcela de arbitrariedade presente na decisão do juiz, como foi explicitado com Bourdieu, mas, de acordo com a teoria sistêmica, pode-se afirmar que, na medida em que a questão dos anencefálicos nunca foi resolvida pelo Legislativo, apesar da demanda social existente, e foi bater às portas do Judiciário, este, regulado pelo princípio do non liquet, não poderia deixar de decidir. Assim, a questão dos fetos anencefálicos entrou no sistema jurídico como uma contingência, uma incerteza, de cunho fortemente político, mas que foi respondida pelo sistema dentro das possibilidades de resolução que lhe são legítimas. O risco de invasão de poderes não deixa de existir, e só o tempo dirá quais serão as consequências de tal decisão, mas é um risco que é previsto pela própria Constituição brasileira[16], e que é englobado pelo sistema Judiciário por meio de sua estrutura. Tal risco, porém, não tira a legitimidade da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal.


Conclusão

Através da análise do caso concreto à luz das teorias de Max Weber, Pierre Bourdieu e NiklasLuhmann, conclui-se que o ativismo judicial, da maneira como foi tratado neste trabalho, é uma característica própria do Judiciário, embora o termo seja de criação recente. Pode-se perceber, através dos textos estudados, que o direito não é um conjunto de normas abstratas, mas, antes, interpretação e aplicação destas.

Como foi visto em Weber, o direito não é criado somente na esfera legislativa, mas também pelo Judiciário, quando este dá novos significados às normas já existentes, atendendo às expectativas normativas geradas pelas novas formas de ação social. Porém, o poder criacionista do juiz está atrelado à norma, e, como bem ensina Bourdieu, o aplicador do direito não pode decidir qualquer coisa afirmando ser interpretação da norma. A aplicação da norma ao caso concreto sempre vai possuir uma parcela de arbitrariedade, uma vez que as normas criadas no Legislativo não podem prever todos os casos possíveis e o juiz tem que aplica-las à realidade, porém tal parcela está limitada pelo ordenamento jurídico. O julgamento da ADPF nº 54 certamente provocou as convicções subjetivas dos ministros, porém, a sua decisão foi limitada pelas normas do Código Penal e da Constituição e nelas embasada. O fato de a questão ter um cunho fortemente político não deslegitima a decisão proferida pela corte, uma vez que, como foi visto com Luhmann, todo assunto pode ser levado ao Judiciário, que o selecionará através de sua estrutura e dele extrairá uma resposta dentro do código binário lícito ou ilícito. O caso, porém, entra como uma contingência no sistema jurídico, é englobado por ele apesar de também ser de competência do poder Legislativo, na medida em que o Judiciário é comandado pelo non liquet.

Os riscos de invasão de poderes, de arbitrariedade ou de erro humano estão sempre presentes no Judiciário, mas, com Bourdieu, pode-se afirmar que eles são minimizados pelas normas, e, com Luhmann, que só o tempo dirá quais são as consequências da decisão para o sistema jurídico e para a sociedade, que é seu ambiente. Tais riscos, porém, não deslegitimam a postura ativista dos tribunais que, como foi visto com Weber, é legítima e necessária.

Conclui-se, deste modo, que as críticas feitas aos ministros do STF, acusando-os de estarem invadindo um poder que não lhes diz respeito, revelam tão somente um risco que sempre estará presente em qualquer decisão judicial. Entretanto, ao contrário do que afirmam os críticos, o ativismo judicial não é uma aberração do direito, mas uma característica que lhe é própria, inclusive garantida constitucionalmente, que possui tanto riscos quanto benefícios.


Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. ______ IN: O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (português de Portugal). 2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF : Senado, 1988.

LUHMANN, Niklas. O direito como estrutura da sociedade. _____IN: Sociologia do Direito I. Traduzido por Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

RIO DE JANEIRO. Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 12 de abril de 2013.

TOURINHO, Saul. Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. 2008, 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) - Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília. P. 92.

WEBER, Max. Sociologia do Direito. ______ IN: Economia e Sociedade. 1ª edição. 2ª reimpressão. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Vol. 02. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, 2009 (reimpressão).


Notas

[1]RIO DE JANEIRO. Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 12 de abril de 2013.

“Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

00I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

0II - se a  gravidez  resulta  de  estupro  e  o  aborto   é precedido de consentimento da gestante  ou,  quando  incapaz,  de  seu representante legal.”

[2] Saul Tourinho, Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal, p. 92.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF : Senado, 1988.

“Art. 102 . Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993). [...]

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§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (Transformado em § 1º pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93)

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.

[4]Max Weber, Economia e Sociedade, p. 67.

[5]Max Weber, Economia e Sociedade,p. 71.

[6]Ibidem, p. 71.

[7]CHAGAS, Ângela. Anencefalia: quanto tempo é possível sobreviver sem cérebro? Terra Notícias.11 de Abril de 2012. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/educacao/voce-sabia/anencefalia-quanto-tempo-e-possivel-sobreviver-sem-cerebro,a5fa00beca2da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em 20 de fevereiro de 2013.

[8] Todos os votos de ministros do Supremo Tribunal Federal transcritos neste trabalho foram retirados da seguinte notícia eletrônica: SANTOS, Débora.Supremo decide por 8 a 2 que aborto de feto sem cérebro não é crime. G1 Brasil. Brasília, 12 de abril de 2012. Disponível em:<http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-que-aborto-de-feto-sem-cerebro-nao-e-crime.html>. Acesso em 12 de abril de 2013.

[9]PierreBourdieu, O poder simbólico, p. 210.

[10]Pierre Bourdieu, O poder simbólico,p. 209.

[11]Ibidem, p. 212.

[12]Pierre Bourdieu, O poder simbólico, p. 214.

[13]Pierre Bourdieu, O poder simbólico, p.222-223.

[14]NiklasLuhmann,Sociologia do Direito, p. 172.

[15]Ibidem, p. 174.

[16]Ver referência 3.


Abstract: This article explains about the legitimacy, the benefices and the risks of judicial activism, considering it as interpretation and application of law, under a sociological focus, using the theories of Max Weber, Pierre Bourdieu e NiklasLuhmann. For this, it’s used as reference the judgment of the ADPF nº 54, that talks about the interruption of the pregnancy of babies without brain.

Key-word: judicial activism, interpretation and application of law, social action theory, social field theory, system theory.

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Sobre as autoras
Lícia Mayra Coelho Ferreira

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Piauí

Dafne de Araújo Alves

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Lícia Mayra Coelho ; ALVES, Dafne Araújo. A arte da decisão e o caso dos fetos anencefálicos: uma abordagem sociológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3635, 14 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24699. Acesso em: 16 abr. 2024.

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