Apesar da clássica e pedagógica divisão do direito em dois grandes ramos (o direito público e o direito privado) e em vários sub-ramos (direito constitucional, direito administrativo, direito penal, direito tributário, direito civil etc.), há muito se entende que ele (o direito) – assim como o poder estatal – é (ou, melhor, deve ser) um sistema uno, indivisível e obediente as leis da lógica.
Neste sentido, na seara penal, o professor e ministro da Suprema Corte Argentina Eugenio Raul Zaffaronni desenvolveu a teoria do direito conglobante, sustentando, entre outras coisas, que o estrito cumprimento do dever legal tem o condão de excluir a tipicidade da conduta e não apenas a ilicitude, já que o direito não pode, ao mesmo tempo, exigir um comportamento e tipificá-lo como crime.
Entretanto, não é difícil encontrar na legislação brasileira disposições afrontando a lógica, o bom senso e o espírito de unidade do ordenamento, sem, contudo, causar alarme, polêmica ou revolta. Apesar de conhecidas, essas contradições parecem ter se consolidado entre os brasileiros, que as vivenciam diariamente sem submetê-las à crítica.
Muitas destas familiares e gritantes incongruências abrigam-se entre as nossas normas de trânsito.
O artigo 64 do Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, tutelando a vida e a incolumidade física das crianças, salutarmente determina que as pessoas “com idade inferior a dez anos devem ser transportadas nos bancos traseiros”. Tal dispositivo foi regulamentado pela resolução n. 277, de 28 de maio de 2008, do Conselho Nacional de Trânsito, que determina que as crianças com menos de 1 ano sejam transportadas no equipamento chamado “bebê conforto”, as com mais de 1 ano e menos de 4 anos em “cadeirinhas” e as com idade entre 4 anos e 7 anos e meio utilizando “assentos de elevação”.
Os dispositivos normativos acima apresentados reconhecem que o cinto de segurança, apenas, não protege as crianças em casos de acidentes, sendo necessário transportá-las, mais a salvo, nos bancos traseiros, nos “bebês conforto”, nas “cadeirinhas” e nos assentos elevatórios.
Ocorre que o mesmo artigo 64 do Código de Trânsito Brasileiro, assim como o artigo 65, admite a possibilidade do transporte de pessoas, inclusive de crianças, sem cintos de segurança. O artigo 1º, § 3º, da resolução n. 277 do Conselho Nacional de Trânsito expressamente exclui de sua incidência os veículos de transporte coletivo, os de aluguel, os de transporte autônomo de passageiro (táxi), os veículos escolares e aos demais veículos com peso bruto total superior a 3,5 toneladas.
Acentuando as contradições, o inciso I do artigo 105 do Código de Trânsito Brasileiro tolera que, excepcionalmente, veículos transitem com pessoas – vale o reforço, inclusive crianças – em pé e, naturalmente, sem cinto de segurança.
A exceção, entretanto, não é tão excepcional assim. Todos a conhecemos. O inciso I do artigo 41 do Decreto Presidencial n. 2.521, de 20 de março de 1998, autoriza o transporte de passageiros em pé nas linhas de características semi-urbanas. A exceção, portanto, são os ônibus urbanos que transportam milhões de pessoas todos os dias.
As contradições acima apresentadas chamam atenção para outra contradição.
O Estado Brasileiro tem, beneficamente, intensificado a fiscalização dos automóveis particulares, verificando o uso de cintos e de outros equipamentos de segurança e o teor alcoólico sanguíneo dos motoristas. Os ônibus, entretanto, têm passado ao largo das fiscalizações e perambulam lotados e, não poucas vezes, desgovernados.
Evidentemente, a despeito do que sugerem as contradições, num Estado que tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, os usuários dos transportes coletivos também têm direito a um serviço seguro, higiênico e digno.
Parece óbvio, mas não é o que se vê nas ruas.