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Novos (?) rumos da política criminal brasileira: a corrupção como crime hediondo

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28/06/2013 às 10:25
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A maior constatação das manifestações populares é a evidente crise de legitimidade das instituições. Nesse contexto, a proposta de equiparar o delito de corrupção (ativa ou passiva) a “crime hediondo” ganhou pleno apoio dos mais diversos setores.

Talvez a maior constatação que se pode extrair das manifestações populares que ecoam Brasil afora seja a evidente crise de legitimidade das instituições. E, neste rumo, o Direito Penal parece estar novamente no foco das atenções.

A resposta política aos clamores insurgentes foi imediata e veio obrigatoriamente em face da reiteração e da organização dos movimentos. A presidente Dilma Roussef anunciou uma série de “pactos” para acelerar antigos projetos até então “adormecidos” em detrimento de interesses públicos supostamente mais relevantes, tais como os gastos com a tão aclamada Copa do Mundo. 

Ao largo dessas discussões, algo que, de imediato, deve ter chamado a atenção dos estudiosos das Ciências Criminais é a proposta de equiparar o delito de corrupção (ativa ou passiva) a “crime hediondo”, o que logo ganhou pleno apoio dos mais diversos setores. Rapidamente, ressuscitou-se o PLS 204/2011, de autoria do Senador Pedro Tasques (PDT-MT), agora aprovado (“por votação simbólica”) no plenário do Senado Federal, “em resposta à sociedade”. Mais uma vez, a Política Criminal nacional vê-se diante da casuística e mais uma vez somos obrigados a afirmar o simbolismo deste discurso retórico e demagógico que tem imperado no Brasil.

Não é de hoje que as questões de Política Criminal vem sendo relegadas a um segundo plano pelos operadores do Direito. Assiste-se a uma Política Criminal transmutada em política de segurança[1].

A carência de políticas públicas que visem efetivamente à repressão da criminalidade faz com que a população se depare com índices exorbitantes, para os quais são-lhe apresentadas unicamente medidas penais, capazes de satisfazer momentaneamente seus anseios, tendo, ainda, grande efeito eleitoreiro. No âmbito político, o Direito Penal tornou-se, então, uma arma eficaz, já que atende àsaspirações populares – e sua ancestral ideia de vingança[2] – e, ao mesmo tempo, garante um resultado positivo aos autores de tais leis em eleições futuras[3].

Nos últimos anos, o Direito Penal tem experimentado um fenômeno de crescimento e endurecimento que não é consequência dos desmandos de regimes totalitários, mas, pelo contrário, surgem em muitas ocasiões da vontade política de dar resposta às reivindicações da cidadania, dentro do próprio Estado de Direito. O trabalho da Política Criminal frente a este cenário é mais complexo, em face do distanciamento do paradigma tradicional. Suas novas funções recebem impulso da opinião pública e são executadas por um poder político que conta com plena legitimidade democrática.

Os programas dos políticos em suas plataformas eleitorais oferecem uma série de medidas com o fim de brindar “segurança” aos cidadãos, com medidas que vão desde o aumento das penas, passam pelo cumprimento em regime integral fechado, e chegam às restrições de garantias penais e processuais em geral[4]. FIERRO observa, no entanto, que muitos destes legisladores desconhecem as limitações do Direito Penal e, em virtude dessa ignorância, acabam depositando nele expectativas infundadas[5].

Invocadas com caráter de excepcionalidade, medidas que relativizam (ou negam completamente) garantias (supostamente invioláveis, partindo-se da perspectiva racionalista) acabam por se converter em técnicas de governo, transformando de modo muito perceptível “a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”[6].

Não é infrequente que a expansão do Direito Penal se apresente como produto de uma espécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de princípios, que tranquiliza a opinião pública) o que deveria resolver-se no nível de instrumentalidade (da proteção efetiva)[7].

Essa demanda por mais proteção é a característica principal de uma sociedade composta majoritariamente por “sujeitos pacientes”, cria dileta do Estado Social. Pensionistas, bolsistas, aposentados, servidores públicos, beneficiários e assistidos por serviços sociais em geral, fomentam uma cultura da insegurança e exigem que o Estado se encarregue de debelar toda e qualquer percepção de risco possível. A vivência subjetiva dos riscos em um Estado responsável pela segurança em todas as áreas da vida é, claramente, superior à própria existência objetiva dos mesmos. Expresso de outro modo, existe uma elevadíssima sensibilidade ao risco na sociedade de sujeitos passivos[8].

A esse Estado intervencionista interessa muito mais a conquista de condições mínimas de subsistência material, moral e cultural dos indivíduos (com o pretenso objetivo de assegurar-lhes que sua liberdade possa ser real e efetiva) do que o respeito às liberdade fundamentais do cidadão reconhecidas formalmente em lei. O único compromisso deste modelo é com o progresso da comunidade, e não com a tutela formal dos direitos humanos.

O Estado Social pretende reduzir as desigualdades sociais entre os indivíduos e os grupos que eles integram, a fim de alcançar a “paz social” e conseguir a coexistência harmônica e livre entre os cidadãos integrantes da sociedade civil. Entende-se que, sem igualdade e sem justiça social, não é possível desfrutar das liberdades e dos direitos daqueles que não estiverem em condições de exercê-los por falta de recursos econômicos e culturais. Tampouco seria possível atingir uma convivência em paz e liberdade se setores inteiros da população não chegam a adquirir os bens mínimos que lhes garantam poder manter sua própria dignidade humana. Isso justificaria a necessidade da intervenção estatal nos mais diversos campos como a economia, a educação, a saúde, a assistência social, a cultura, etc[9].

A principal consequência dessa política criminal assistencialista é, na concepção de BORJA JIMÉZES, a aparição de delitos de omissão, na medida em que, se o Estado passa a ser um agente de desenvolvimento social, passa a necessitar da colaboração dos cidadãos para cumprir essa finalidade, precisamente o oposto do Estado Liberal, onde cada indivíduo goza de sua absoluta liberdade dentro dos limites da lei e, fora deles, pode agir como bem entender. No Estado Social, exige-se algo a mais do cidadão, uma conduta positiva em favor de certos interesses individuais ou coletivos[10].

A crescente produção legislativa em matéria penal demonstra claramente que a norma incriminadora deixou de representar o poder coercitivo estatal voltado indistinta e igualmente aos membros do grupo social, a partir de uma vontade soberana, para materializar a hegemonia de interesses de grupos de pressão sobre o poder público. As diversas contrariedades técnicas e vícios teóricos verificados nesses diplomas penais extravagantes não permitem falar de harmonia ou qualquer pretensão unitária da legislação especial.

A fim de conferir uma resposta célere à insegurança, tem-se a proliferação desenfreada de leis penais que adotam técnicas legislativas assumidamente casuísticas, que tendem a considerar o Direito Penal um instrumento de controle acessório ao Direito Administrativo. Assim, os tipos penais distanciam-se dos requisitos clássicos da generalidade e da abstração, transformando-se em ferramentas de administração de situações particulares, de “emergências” concretas.

No plano estritamente legislativo, as leis penais assumiram a função de mensagens de reafirmação do poder virtual dos políticos impotentes e precipitados, dirigidas à população com a intenção de renormalizar situações que não podem ser resolvidas no plano dos fatos reais. Pretende-se regular o que não há poder que regule e elabora-se uma legislação inaplicável na prática, porque o poder político não está em condições de evitar.

Administrativiza-se a legislação penal ante à ineficácia da legislação administrativa, o que, em realidade, constitui uma banalização da lei penal, tida como útil para qualquer objeto. Nunca na história a legislação penal abarcou um número tão amplo de condutas e, a cada dia, há menos ilícitos administrativos que não são, ao mesmo tempo, ilícitos penais.

  A esse Direito que busca dar uma resposta “simbólica” à sociedade em demandas por ela consideradas emergenciais podemos denominar “Direito Penal de Emergência”[11],cujos predicados mais marcantes são a perda do caráter subsidiário e fragmentário e a missão de servir como instrumento político de segurança[12].

As emergências sociais não são novas nos discursos legitimantes do poder punitivo. A elas se agrega o defensismo (discurso de defesa), o simplismo conceitual e a renúncia a preceitos fundamentais e qualquer doutrina que os legitime. Tais características são típicas dos “Estados de Polícia”, e não houve lei nazista, fascista ou stalinista que não tenha adotado a bandeira de defesa ou proteção de algum valor social[13].

As normas elaboradas a partir dos discursos de emergência integram o que comumente se convencionou chamar de “Direito Penal simbólico”, que tem por objetivo, antes da busca por soluções, a demonstração da especial importância outorgada pelo legislador a aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação social das normas correspondentes. Isso quer dizer que determinados agentes políticos tão só perseguem o objetivo de dar a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido, ou seja, que predomina uma função latente sobre a manifesta ou, dito em uma nova formulação, que há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legislador e a “agenda real” oculta sob aquelas declarações expressas[14].

O atrativo desta prática é que, quando os efeitos afirmados pela legislação não são os realmente esperados, o legislador obtém, pelo menos, o ganho político de ter respondido aos medos sociais e às catástrofes de grandes proporções com prontidão e com os meios mais radicais que são os jurídico-penais.

Desta forma, simbólico é aquele Direito Penal em que as funções virtuais predominam sobre as manifestas. É aquele Direito Penal que carece de capacidade instrumental de prestar eficazmente à sociedade e aos indivíduos que a integram segurança frente aos novos riscos. Por isso, mesmo ciente desta incapacidade, o legislador vê-se instigado a criar novos tipos penais que, embora não tenham aplicação, têm o único fim de produzir no meio social um efeito aparente, isto é, simbólico[15].

Existe uma generalizada sensação subjetiva de insegurança no cidadão, potencializada pelos meios de comunicação, que não corresponde ao nível de risco objetivo. Esta circunstância constitui, sem dúvida, uma marca da expansão dessa legislação puramente simbólica[16].

O parâmetro de análise é sempre o dos efeitos reais das leis penais. Simbólico se associa, assim, tanto em sentido transitivo, como reflexivo[17].

Tem-se afirmado que, a partir desse modelo de Política Criminal, ou de política de segurança, consentâneo a uma ciência jurídica voltada exclusivamente à eficácia, cria-se um sistema jurídico tecnocrático, tendente à destruição das propostas de solução estrutural dos problemas sociais[18].

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A criação das novas incriminações se desenvolve na medida em que a ampliação do poder sancionador não possa, por si mesmo, através dos processos de sua justificação, garantir a estabilidade da norma. Assim, tratando do princípio da estabilidade da norma como fundamento simbólico de poder, o descompasso entre essa pretendida estabilidade e os problemas que a realidade apresenta força necessariamente a adoção de soluções normativas para esses problemas. Os conflitos que a realidade social oferece deixam de ser resolvidos por meio de mecanismos de atuação real e passam a servir de motivo para acentuar-se a sanha legislativa. JUAREZ TAVARES observa que “Não é surpreendente, portanto, que se procedam reformas quase que diárias das leis penais e a elaboração de novos diplomas, com novas incriminações.”[19]

A cultura de emergência e a prática da exceção são, então, responsáveis pela involução do ordenamento jurídico-penal, que se expressa na reedição, talvez em novos trajes, dos velhos modelos próprios da tradição penal pré-moderna, como a adoção de práticas inquisitivas e métodos de intervenção típicos da atividade da polícia.

Chega-se, assim, a um “Estado policialesco”, no qual, por detrás de um pretenso aumento da criminalidade, em verdade emerge uma forte campanha de “lei e ordem”, aplaudida pela sociedade influenciada pelo clima de insegurança[20].

Ocorre que, se, na linha funcionalista, o Direito Penal cumpriria a função de garantir a estabilidade da ordem jurídica, não se pode aceitar um emaranhado de leis desproporcionais, incoerentes e excepcionais ao próprio ordenamento jurídico penal e constitucional, pena de se macular a manutenção desse sistema normativo pela perda de sua eficácia, que redundará fatalmente na perda de sua credibilidade e força. Por isso, é precisa a observação de SILVEIRA FILHO no sentido de que “O emergencialismo penal surge ao lado do efeito sedativo, cuja função é perpassar na opinião pública a sensação de tranquilidade diante da insegurança urbana”[21].

A ânsia dos homens, com um certo peso contributivo para a opinião formada pelo mass media para se repreender quaisquer condutas, induz a uma desvaliosa medida de incriminação a todo custo. Um ato simbólico, o qual, muito embora satisfaça alguns, não condiz com a busca equilibrada dos preceitos e requisitos do Direito Penal[22].

O socorro ao Direito Penal faz parte, nessa esteira, de uma macro-politização do jurídico, esperando-se que este sistema forneça respostas prestacionais à sociedade. O resultado disso é nefasto: o Direito ameaça perder sua autonomia, confundindo-se com a política, que, por sua vez, também padece de uma crise de legitimação. Portanto, o Direito, mesmo o constitucional, não consegue impor limites claros ao político, apesar de boa parte da doutrina constitucionalista acreditar no sonho racional do controle[23].

A multiplicação legislativa e sua correlata penalização reduz o sistema jurídico ao absurdo, porque, ao exigir dele o que não pode dar, direciona-o a um caminho equivocado, que termina em impotente crueldade e em desprestígio como instrumento insubstituível de convivência humana[24].

ZAFFARONI, com sua postura crítica, afirma não ser possível pensar uma Política Criminal racional onde não haja uma política racional, mas apenas a uma total degradação que acaba em um “Estado espetáculo”. “La política criminal del estado espectáculo no puede ser otra cosa que un espectáculo”[25].

Assentou-se, pois, uma Política Criminal prática, de orientação intimidatória e inocuizadora, em um contexto geral presidido pela oportunidade e o populismo. Seguramente não é exagerado afirmar que, com isso, a situação do Direito Penal está se tornando insustentável[26]. Agora, mais do que nunca, deve-se enfatizar a necessidade de orientar a Política Crimina conforme os princípios que derivam da ideia de dignidade da pessoa.

Por isso, não é crível que um manifesto que tem por objetivo a legítima ruptura com toda a deturpação sistêmica que se estabeleceu até então possa ratificar de forma tão acrítica o mesmo persistente erro do recurso ao Direito Penal simbólico, que apenas perpetuaa retrógrada forma de “fazer política” neste País, ou seja, o mero apelo ao discurso criminalizante, a fim de obter o apoio das massas.

Os rumos da Política Criminal nacional parecem se encaminhar pelas mesmas vias já tantas vezes trilhadas, o que ao menos evidencia uma conclusão certa: o que falta ao Brasil é educação. Só ela é capaz de abrir os olhos do povo e fazê-lo despertar de suas sonolências.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Carlo Velho Masi

Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. Novos (?) rumos da política criminal brasileira: a corrupção como crime hediondo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3649, 28 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24819. Acesso em: 18 nov. 2024.

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