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Inadimplemento reiterado de obrigação tributária e redirecionamento da execução fiscal ao sócio administrador.

Uma releitura do Enunciado nº 430 da súmula do Superior Tribunal de Justiça

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4. A responsabilidade do sócio gerente pelo não pagamento de tributos

4.1. A posição do Superior Tribunal de Justiça

Durante algum tempo pairou, em doutrina e jurisprudência, controvérsia acerca da responsabilidade dos sócios administradores decorrente não pagamento de tributos pela empresa contribuinte. Aqueles que defendiam a responsabilização afirmavam que o simples fato de não cumprir uma obrigação decorrente de lei já seria mais do que suficiente para enquadrar o sócio nos termos do disposto no art. 135, III, do Código Tributário Nacional. Em outras palavras, não pagar tributos é violar a lei, e o administrador que viola a lei deve responder pessoalmente pelos débitos da empresa.

Doutrina e jurisprudência majoritárias, no entanto, sempre se posicionaram no sentido de conferir ao art. 135, III, do CTN, uma interpretação mais humanística, que levasse em consideração critérios outros além dos estritamente legais. Não seria justo nem tampouco razoável que, independentemente da situação concreta, os administradores fossem sempre responsáveis pelos tributos não pagos pela empresa.

A verdade é que, na maioria dos casos, o não pagamento de tributos pela empresa não decorre da vontade dos mandatários e gestores, mas de uma série de fatores, como, por exemplo, a não compreensão da complexa legislação tributária, as dificuldades econômico-financeiras suportadas pela empresa e pelo país ou mesmo o descumprimento das obrigações assumidas por devedores e fornecedores. Em suma, a regra é que não se paga tributo quando não é possível, independentemente da vontade dos administradores.

Foi com base nisso que o Superior Tribunal de Justiça - STJ consolidou o entendimento – já abordado -, por meio do enunciado nº. 430 de sua súmula de jurisprudência, de que o mero descumprimento da obrigação tributária pela empresa não culmina na responsabilidade do sócio gerente. Busca-se sempre garantir a presunção de boa-fé do gestor privado. O não pagamento de tributo, à primeira vista, deve ser encarado como um dissabor, decorrente das intempéries próprias da vida negocial. No momento de julgar, o magistrado deverá levar em consideração todas as dificuldades suportadas pelo empresariado brasileiro.

Lamentavelmente, a regra acima enunciada tem sido aplicada de maneira indiscriminada pelos diversos tribunais pátrios. Mesmo quando se mostra evidente que o não cumprimento da obrigação tributária decorre puramente da vontade do sócio gerente, têm os julgadores se recusado a admitir o redirecionamento da execução, tudo com amparo no supracitado enunciado sumular. O incidente cognitivo de responsabilização dos sócios tem sido simplesmente ignorado sob o argumento da dificuldade de provar a má-fé e o dolo na conduta do administrador.

4.2. Reiterado inadimplemento voluntário da obrigação tributária da empresa. Análise da expressão “por si só” do enunciado nº. 430 da súmula do Superior Tribunal de Justiça:

Fora dos estritos casos enunciados no tópico anterior, tem sido bastante raro encontrar julgados admitindo a responsabilidade do sócio gerente por atos praticados com abuso de poder ou mesmo violação legal. Na grande maioria das vezes, os julgadores têm trazido à tona toda sorte de empecilhos, como, por exemplo: a) a dificuldade de provar o abuso na conduta do gestor privado; b) o entendimento consolidado no enunciado n. 430 do Superior Tribunal de Justiça – STJ de que os sócios não respondem pelo mero inadimplemento de tributos. Em resumo, não se tem diferenciado o mero e esporádico inadimplemento tributário do reiterado e deliberado não pagamento de tributos.

Tal situação precisa ser encarada de outra forma. Os grandes e voluntários devedores devem ser tratados de maneira diferente dos pequenos. Não é justo nem tampouco razoável que apenas a empresa sofra constrições patrimoniais enquanto seus sócios administradores enriquecem às custas do prejuízo público. A verdade é que a todos tem sido conferida uma espécie de direito - quase inatingível - de não pagar tributos.

Diante do caso concreto, deve-se levar a efeito a prática do chamado distinguishing, ou seja, deve-se realizar a necessária diferenciação entre a situação concreta e aquela analisada pelo Superior Tribunal de Justiça quando da elaboração do precedente. Nas palavras de Fredie Didier Junior:

“Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (...)

“Notando, pois, o magistrado que há distinção (distinguishing) entre o caso sub judice e aquele que ensejou o precedente, pode seguir um desses caminhos: (i) dar à ratio decidendi uma interpretação restritiva, por entender que peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação da mesma tese jurídica outrora firmada (restrictive distinguishing), caso em que julgará o processo livremente, sem vinculação ao precedente; (ii) ou estender ao caso a mesma solução conferida aos casos anteriores, por entender que, a despeito das peculiaridades concretas, aquela tese jurídica lhe é aplicável (ampliative distinguishing).”14

Apenas a título de exemplo, no Estado do Paraná, há empresas que chegam a passar 2 (dois) anos seguidos sem recolher o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação - ICMS. O mais impressionante disso é que não se tratam de pequenas sociedades em vias de extinção, mas sim alguns dos maiores conglomerados empresariais de toda a Região Sul do país. Nos moldes desse ardiloso planejamento tributário, é mais rentável deixar que o Estado realize a inscrição da dívida e posteriormente ajuíze ação judicial do que pagar o imposto no momento adequado.

Os maus administradores agem dessa maneira valendo-se, dentre outras motivos, da combalida estrutura do Poder Judiciário nacional e da facilidade encontrada para ocultar bens de quem quer que seja. De fato, incontáveis são as empresas que, mesmo possuindo faturamento anual da ordem de dezenas de milhões de reais, não têm um bem sequer a fim de garantir o crédito da Fazenda Pública. Não bastasse isso, os requerimentos de penhora on line dos montantes existentes nas contas bancárias das empresas devedoras têm-se mostrado quase sempre infrutíferos. Por maior que seja a sociedade, em regra, não se consegue localizar qualquer valor depositado.

Executivos fiscais aos montes são extintos em decorrência do advento da prescrição intercorrente. A situação agrava-se ainda mais depois do advento do arbitrário entendimento jurisprudencial de que a simples paralisação do processo por 6 (seis) anos, após diversas tentativas frustradas de localização de bens pela Fazenda Pública, acarreta a prescrição intercorrente do crédito tributário15.

Encoraja ainda as práticas narradas anteriormente a dificuldade de se conseguir a quebra do sigilo bancário das empresas devedoras e, sobretudo, de seus administradores. Como não estão no pólo passivo da relação processual, os magistrados não vêm admitindo a investigação mais detalhada das operações bancárias capitaneadas pelos maus gestores.

Mencione-se, por fim, os sucessivos programas governamentais de parcelamento de créditos tributário, em que, mediante o pagamento de uma única parcela, já é possível a obtenção de Certidões Negativas de Débitos junto à Fazenda. Muitas são as sociedades que preferem não pagar os impostos no momento certo esperando apenas o advento do benefício supracitado.

Mesmo diante desse quadro, tem-se indeferido os pleitos de redirecionamento da execução fiscal aos sócios, tudo sempre sob o argumento de que o inadimplemento da obrigação tributária não acarreta, por si só, a responsabilidade do sócio administrador. A posição omissa já consolidada na jurisprudência nacional traz péssimas conseqüências não só para o processo, mas também para toda a sociedade.

Em primeiro lugar, o reiterado e voluntário inadimplemento de tributos causa fortes desequilíbrios na concorrência. Por óbvio, uma empresa que não paga impostos terá melhor condição de se desenvolver e praticar preços mais baixos do que aquelas que seguem à risca o que determina a lei. Como consequência natural de tal conduta, após a eliminação das concorrentes, a sociedade sonegadora estará livre para elevar o preço de seus produtos.

Outra nefasta consequência do voluntário e reiterado não pagamento de tributos por parte das grandes empresas, levado a efeito via de regra por decisão seus sócios administradores, é o aumento do número de demandas judiciais no já abarrotado Poder Judiciário nacional. Centenas de milhares de execuções fiscais proliferam graças ao ilícito perpetrado pelos maus administradores. Com isso, resta prejudicada a qualidade dos serviços prestados àqueles que realmente necessitam da ajuda do Estado.

Em que pese isso tudo, o maior problema decorrente da prática ora versada é, sem dúvidas, a diminuição da arrecadação tributária.

Num país em que a desigualdade social alcança elevados patamares, como o Brasil, a distribuição de renda e a prestação dos serviços básicos à comunidade depende sobremaneira do valor arrecadado pelos entes federados junto aos contribuintes. Não se dá educação, saúde, segurança e outros direitos fundamentais básicos àqueles que precisam sem a necessária fonte dos recursos.

Em resumo, o lesivo planejamento tributário praticado por determinados sócios gerentes, baseado no voluntário e reiterado inadimplemento de tributos causa prejuízos à toda sociedade, sobretudo àqueles que mais necessitam dos serviços prestados pelo Estado.

Ora, se no caso de dissolução irregular da empresa se admite o redirecionamento ao sócio gerente por ter sido ele culpado pela impossibilidade de pagamento de tributos por parte do contribuinte, nada mais natural do que aplicar o mesmo entendimento no caso de voluntário e planejado inadimplemento de tributos. Aqui, a empresa não paga o que deve pura e simplesmente por culpa do sócio gestor. Tanto é assim que já há até mesmo alguns julgados admitindo o redirecionamento em caso de empresa inadimplente que distribui lucro entre seus sócios16.

4.3. A dificuldade do redirecionamento em caso de tributo declarado e não pago voluntariamente

Em momento anterior deste trabalho comentou-se acerca da dificuldade de inclusão do sócio administrador no pólo passivo da ação de execução fiscal. Conforme visto, só se tem admitido que o gestor seja, desde o início, réu no processo executivo quando seu nome constar também na Certidão de Dívida Ativa. Trata-se de concretização do princípio do contraditório. De fato, é bastante razoável que apenas àquele a quem fora dada chance de se defender na esfera administrativa possa ser imputada a responsabilidade pelo pagamento dos tributos devidos pela empresa.

O problema surge no caso dos tributos sujeitos ao chamado lançamento por homologação, em que, na maioria das vezes, o contribuinte declara os fatos jurídicos tributários e o Fisco apenas concorda com a declaração efetuada, não havendo necessidade de verdadeiro processo administrativo de lançamento. Aqui, não há como se aferir a prática de infração de lei, contrato social ou mesmo estatuto por parte do sócio gestor.

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Sobre o tema, confira-se trecho do voto da Ministra Eliana Calmon, relatora do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Agravo Regimental em Recurso Especial n. 1.104.109, julgado em 03 de setembro de 2009:

“Nesse sentido, correta a jurisprudência quando entende prescindível a formação do processo administrativo se a Administração concorda com a declaração do contribuinte ou responsável porque a declaração expressa sua responsabilidade e a ocorrência do fato gerador. Porém, nessa declaração não há elementos que configurem a responsabilidade tributária de terceiro, principalmente por ato ilícito, ou contrário ao estatuto ou contrato social [...]

“Do mesmo modo, a declaração do contribuinte em que reconhece seu débito tributário não vincula senão ele próprio ao Fisco. Para que o terceiro tenha sua eventual obrigação de responder pelo tributo formalizada, faz-se indispensável a verificação também do pressuposto específico de tal obrigação, a indicação do seu objeto próprio (nem sempre coincidente com o da obrigação do contribuinte) e a identificação do seu particular sujeito passivo[...]

“Note-se que quem não foi notificado para o procedimento do lançamento não poderá juridicamente figurar no Termo de Inscrição em Dívida Ativa, que decorre daquele procedimento, e nem na CDA, que reproduz os dados desse mesmo termo”.(STJ, AgRg no REsp 1.104.109/RS, Relatora Ministra Eliana Calmon, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/09/2009, Dje 21/09/2009)

Não se quer aqui contradizer ou mesmo desmerecer o posicionamento exarado no julgado supra, pelo contrário, reconhece-se tratar de clara manifestação de lógica jurídica e valorização dos princípios que regem o ordenamento jurídico nacional. O que não pode ser admitido é que sócios gestores imbuídos de má-fé utilizem-se de tal entendimento com o fim único e exclusivo de lesar o Fisco.

Se é verdade que o nome do sócio não intimado em processo administrativo disciplinar não pode constar da Certidão de Dívida Ativa, é certo também que, após o ajuizamento da execução fiscal aparelhada com quantidade significativa de certidões de dívida decorrentes de tributos declarados e não pagos, deverá o magistrado reconhecer válido o incidente cognitivo de redirecionamento da execução ao gestor. Aqui, deve ser aberto prazo ao responsável tributário para que se manifeste e explique o real motivo dos reiterados inadimplementos.

É importante que a petição da Fazenda Pública traga elementos que demonstrem de maneira clara e inequívoca que o inadimplemento reiterado por parte da empresa decorre pura e simplesmente da vontade de seus administradores. Nas palavras de Leonardo Carneiro da Cunha:

“Estando o nome do sócio-gerente ou do diretor da empresa na Certidão de Dívida Ativa, a execução fiscal pode ser, desde logo, contra ele redirecionada, cabendo-lhe argüir a impossibilidade de redirecionamento em embargos do devedor ou em exceção de pré-executividade. Não estando, porém, seu nome na CDA, o redirecionamento somente será possível, se for, previamente, comprovado que o tributo não foi recolhido por dolo seu, em razão de fraude ou de exceção (sic) de poderes, com infringência da lei ou do estatuto social. (...)

“A responsabilidade do administrador, diretor ou sócio-gerente é, enfim, subjetiva, devendo ser comprovada a atitude dolosa, fraudulenta, culposa, irregular. Cumpre ao menos, ser imputada ao sócio-gerente uma conduta que denote sua responsabilidade subjetiva.”17

Isso pode ser feito mediante demonstrativo do número de novas filiais abertas no período referente ao não pagamento de tributos ou mesmo mediante análise da evolução do faturamento empresarial no período correspondente à prática ilícita. Deve ainda a Fazenda Pública, a quem incumbe o ônus da prova, demonstrar a relevância do sócio para o capital social da empresa (seu percentual de participação), a existência de distribuição de lucros entre os dirigentes das empresas inadimplentes ou mesmo o possível desequilíbrio de concorrência causado pelo reiterado e voluntário não cumprimento da obrigação tributária.

Tem-se sempre que conferir ao incidente cognitivo de redirecionamento da execução ao sócio gestor a importância que ele merece. Não importa o momento em que a prática ilícita foi verificada, mas sim o momento em que foi praticada. Assim, nada obsta que inclua o sócio administrador malicioso no polo passivo da execução fiscal.

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Sobre o autor
Eduardo M.L. Rodrigues de Castro

Procurador do Estado do Paraná Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC Especialista em Direito e Processo Administrativo pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR Mestrando em Direito do Estado (Direito Tributário) pela Universidade Federal do Paraná - UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Eduardo M.L. Rodrigues. Inadimplemento reiterado de obrigação tributária e redirecionamento da execução fiscal ao sócio administrador.: Uma releitura do Enunciado nº 430 da súmula do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3652, 1 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24836. Acesso em: 19 abr. 2024.

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