Nas últimas semanas, a sociedade brasileira mobilizou-se como não se via há tempos. A última vez que tantas pessoas tomaram as ruas foi no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo.
Agora, o objetivo era pleitear melhorias nos serviços públicos. A voz emanada dos protestos questiona investimentos públicos, garantia de sua execução eficaz e o combate à corrupção.
O que parcela dos manifestantes talvez não saiba é que a resolução das reivindicações passa obrigatoriamente por modelo eficaz de licitações públicas. Se o serviço de ônibus é ruim, é porque o edital de licitação para escolha das operadoras foi mal elaborado ou porque a fiscalização não é adequada. Precisamos aproveitar esse importante momento democrático para corrigirmos as falhas da atual Lei nº 8.666/1993, a chamada Lei de Licitações.
Grande parte da péssima administração de recursos públicos está escorada em um tripé negativo: desatualização da legislação vigente, interpretação errônea das normas e falta de qualificação dos agentes públicos. A corrupção resulta de dispositivos defasados da Lei de Licitações, cujas formas de burla já são amplamente conhecidas: cartel, direcionamento, superfaturamento, desvios, entre outras tantas práticas condenáveis.
Isso não significa que a legislação atual seja desprovida de méritos. Existem inúmeros artigos a serem mantidos na nova lei. Alguns apenas foram distorcidos por interpretações que modificaram o intuito original da regra.
Erro na jurisprudência e descumprimento de artigos
Diariamente presenciamos casos de hospitais recém-erguidos que não podem ser inaugurados porque falta a instalação de equipamentos de ar-condicionado ou de um circuito de câmeras. Pela ineficiência de apenas uma empresa, atrasa-se toda a obra. Isso jamais ocorreria se o certame fosse realizado como empreitada, em vez de optar-se pelo parcelamento do objeto.
A jurisprudência, no entanto, passou a obrigar o "picadinho" de licitações para favorecer um maior número de concorrentes. O resultado disso são certames com valores de R$ 30, que nem compensam os gastos com toda a documentação. Além disso, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC mostrou que o valor final da obra realizada por uma única empresa é bem inferior que nos casos do "picadinho".
A costumeira prática de orçar três propostas também é fruto de uma interpretação incorreta, já que a Lei de Licitações não traz nenhum artigo contendo tal exigência. Hoje, as comissões de licitações levantam preços com empresas atuantes do mercado, o que fere o Princípio da Isonomia. Quem foi consultado sai na frente dos demais.
A solução para esse problema já existe: o Sistema de Preços Praticados – SISPP. Apesar de pouco conhecido, essa ferramenta do governo permite preços praticados nas compras de bens e serviços no âmbito da Administração Pública Federal. Permite, também, consultar os resultados das licitações encerradas para servir de referencial para futuros certames. Simples e justo com todos os licitantes.
A Constituição Federal estabelece que a suspensão de contratos federais, ato jurídico perfeito, é competência privativa do Congresso. Apesar disso, descumpre-se a norma por meio de constantes paralisações diretas – órgãos de controle – ou indiretas, com a suspensão do pagamento. Os prejudicados são os atores mais frágeis: o empresário honesto, que investe tempo, dinheiro e não tem garantia de fluxo de caixa – em alguns casos quebra e jamais recebe pelo serviço; perde também a sociedade, cujas demandas ficam sem as devidas respostas.
Aspectos que precisam ser melhorados
Por ter sido construída em um momento turbulento da história sociopolítica do país, a Lei de Licitações exagera na burocracia e no engessamento dos procedimentos.
Para começar, não há necessidade de tantas modalidades, quatro já seriam suficientes. O pregão nos mostrou a necessidade de permitir ao gestor estender a inversão de fases para todas as demais modalidades sem acarretar qualquer ônus. A autoridade administrativa deve decidir quando inverter as fases.
É preciso também acabar com a prática de pagar primeiro os amigos e depois os inimigos – ou dar "calote" aos não apoiadores do governo. Se executei o serviço primeiro, devo obrigatoriamente receber o valor devido antes dos demais. A Lei de Licitações atual manda efetuar os pagamentos em ordem cronológica, o que raramente ocorre. É necessário estabelecer punição para os descumpridores.
Uma das propostas que defendemos é a sistematização integral das normas em uma consolidação de princípios e regras. Um ótimo exemplo é o Código de Licitações e Contratos do Estado do Maranhão. Esse conjunto de leis que ajudei a criar trouxe maior especificação e ordenamento nos procedimentos, além de esclarecer pontos discricionários da lei federal. Em muitos casos a discricionariedade pode gerar corrupção.
Em vigor há 20 anos, a Lei nº 8.666/1993 jamais foi plenamente aplicada – curiosamente, ela foi aprovada no ano seguinte ao movimento dos Caras-Pintadas. Ao longo desse tempo, tivemos 19 leis e 61 medidas provisórias modificando o texto original. Existem, ainda, mais de 180 normas federais em vigor que interferem na Lei de Licitações.
Tantas minúcias exigem uma qualificação adequada do agente público operante. Certa vez, conversei com o presidente de uma comissão de licitações que desconhecia a Lei nº 8.666/1993 – ele achava que o edital era a norma máxima. Se esse servidor tivesse sido qualificado, jamais teria cometido engano tão basilar. São essas falhas básicas que levam às constantes paralisações e suspensões de certames licitatórios.
No Maranhão, inserimos na legislação a obrigatoriedade de qualificar previamente os agentes públicos, que recebem um treinamento de no mínimo 20h e são avaliados posteriormente. Se o servidor não for aprovado, mas o responsável quiser colocá-lo para trabalhar na área, o superior hierárquico passa a responder solidariamente pelos erros do subordinado. Uma solução simples, responsável pelo salto de qualidade nas licitações locais.
Por uma nova lei geral de licitações
Está na hora de o povo brasileiro descobrir que gestão eficiente e qualidade dos serviços estão intimamente ligados a uma boa lei e ao preparo de agentes públicos. Licitação é assunto presente no cotidiano das pessoas. Precisamos somar forças à pretensão da comissão do Senado responsável por atualizar e modernizar a atual Lei nº 8.666/1993, que está sob a presidência do Senador Vital do Rego, tem como relatora a Senadora Kátia Abreu e está encerrando seus trabalhos.
Para o Congresso resgatar os valores republicanos nessa norma será preciso instrumentalizá-la para o combate à corrupção. Dessa forma, os parlamentares estarão assumindo sua condição de porta-vozes do povo brasileiro. Será que, assim como em 1992, teremos uma nova legislação de licitações e contratos aprovada pouco tempo depois de a população tomar as ruas?