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A juridicidade das manifestações populares e a responsabilidade dos governos pelos danos causados ao patrimônio do Estado

11/09/2013 às 09:09

Resumo:


  • O conceito de justiça de John Rawls e a violência econômica praticada pelas instituições.

  • A formação de uma nova ordem democrática, pacífica e participativa na sociedade civil.

  • Conclusão sobre a legitimidade das manifestações e a não punição dos excessos cometidos no contexto das mesmas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É possível punir criminalmente um manifestante quando este comete, no contexto de uma manifestação contra as injustiças do poder público, um ato como o de escrever no muro da prefeitura que “R$ 3,20 é um absurdo”?

INTRODUÇÃO

Buscar-se-á no presente artigo responder a seguinte questão: é possível punir criminalmente um manifestante quando este comete, no contexto e no sentido de uma manifestação contra instituições que já há muito tempo ultrapassaram os limites da injustiça, um ato que, em circunstâncias sociais normais seria considerado um excesso de manifestação, tal como escrever no muro da Prefeitura que “R$ 3,20 é um absurdo”?


1. O significado do conceito de justiça e a violência econômica praticada pelas instituições.

Ao examinar o conceito de justiça o filósofo John Rawls sentencia que o objeto desse conceito é o modo pelo qual “as instituições mais importantes distribuem direitos fundamentais e deveres entre os cidadãos, bem como determinam a distribuição das vantagens oriundas da cooperação social”[1].

 Essas instituições mais importantes, por sua vez, foram definidas pelo ilustre filósofo como representando a Constituição política e “os principais arranjos econômicos e sociais”. Ou seja, “a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência”, os mercados competitivos”, e “a propriedade privada dos meios de produção seriam alguns exemplos  dessas instituições mais importantes. [2]

Tendo em vista essa definição do conceito de justiça, poder-se-ia afirmar que sempre que essas instituições distribuam direitos e deveres de forma desigual entre os cidadãos, estar-se-á a praticar um ato de injustiça.

Por outra parte, pode-se afirmar que todo ato de injustiça é uma forma de violência, na medida em que retira do homem seu status de pessoa, dando-se origem a um processo que forma cidadãos de segunda classe, os chamados excluídos, que são vítimas de um governo que é de Direito, mas não de justiça.

 Nesse ponto é importante ressaltar que o interesse do Estado nem sempre se confunde com o interesse dos governos. O interesse do Estado sempre é o de realizar a justiça, de modo a promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação (Constituição Federal, artigo 3°, inciso IV). Porém, não raro, o interesse dos governos está voltado a proteger os interesses privados de poucos, a exemplo dos interesses dos empresários do transporte coletivo, sendo que, quando assim atuam, cometem verdadeiro ato de violência contra o Estado.

Dentre os diversos atos de violência cometidos por esses governos, poucos causam tantos danos aos cidadãos e ao interesse do Estado como a violência econômica.  Essa nociva forma de injustiça é perpetrada normalmente em conjunto pelas grandes instituições públicas e privadas, podendo-se citar, por exemplo, o caso dos Bancos, que no seu atuar cotidiano violam direitos básicos do consumidor, sem qualquer receio de prejudicar o Estado, pois seu poder e influência no governo e no judiciário são capazes de retirar a eficácia de normas de ordem pública.  Outro exemplo de violência econômica é aquela realizada diuturnamente por instituições como o INSS contra idosos, acidentados, e pessoas pobres em geral, que são obrigados a recorrer ao judiciário para conseguir direitos básicos, cuja existência deveria ser incontestável.

 Por meio de uma política programada de negar toda sorte de benefícios, essa autarquia promove a fome, a miséria, e o desespero em diversas famílias brasileiras. Poder-se-ia mencionar ainda a violência realizada por alguns juízes trabalhistas que obrigam os trabalhadores a fazer acordos que lhe são totalmente prejudiciais, e se revestem de verdadeira esmola, ou ainda a violência da justiça criminal que penaliza a pobreza, a corrupção, o desvio de dinheiro da saúde, dentre tantas outras.

Certo é que o povo em nome das vantagens obtidas pela existência de um governo organizado, aceita, até certo ponto, sofrer essa violência por parte dessas instituições.

Por outro lado, uma questão interessante que surge no atual contexto de manifestações é saber até que ponto esses cidadãos que sempre foram tratados pelos governos como sendo “de segunda classe” devem permanecer pacificamente inertes ao seu sofrimento, em nome da preservação das instituições, e até que ponto é legítimo que resistam, inclusive, por meio de atos que num primeiro momento possam parecer agressivos?

 A declaração da independência dos Estados Unidos, um dos documentos mais importantes de direitos humanos já produzidos pela história, pode ser considerada como o marco normativo que dá uma resposta a essa questão:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objecto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colónias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo.[3]

Tal tem sido o sofrimento paciente do povo brasileiro por todas essas injustiças, que não há como censurar as manifestações que estão a acontecer no país, sendo que cabe agora aos governos praticantes da injustiça o ônus de arcar, inclusive, com alguns prejuízos econômicos que possam decorrer dessas manifestações.

 Nesse sentido é possível afirmar que os excessos eventualmente cometidos, desde que no contexto e no sentido da manifestação, não poderão ser penalizados, pois não devem ser entendidos como contrários à ordem jurídica, mas em favor do estabelecimento de uma nova ordem pacífica, democrática e participativa.

Com efeito, se o povo, em nome da segurança jurídica, é obrigado a conviver com os danos que lhe são causados por aquelas instituições públicas e privadas que são protegidas pelos injustos governos de Direito, então, em nome da democracia e da preservação do direito à manifestação, esses governos injustos também devem eventualmente arcar com os danos que são causados pelo povo, sobretudo, quando este sai a protestar em defesa dos interesses do Estado. 

Em outros termos, se a violência econômica pode, em certos casos, ser considerada pelo Direito como injusta mas jurídica[4], então os eventuais excessos decorrentes das manifestações também podem ser considerados jurídicos, ainda que aparentemente injustos, desde que, por óbvio , sejam realizados no contexto e no sentido das manifestações, o que exclui furtos e demais atos desprovidos de sentido.

Outro argumento que pode ser usado para desaconselhar a punição dos excessos decorrentes das manifestações é a regra da proporcionalidade[5], pois não há necessidade de punir alguém por um comportamento praticado contra um governo injusto no interesse do Estado, principalmente quando não se está num contexto de normalidade social.


2. A formação de uma nova ordem democrática, pacífica e participativa.

  O que está acontecendo neste momento no país é a formação de uma nova sociedade civil participativa, fundada na força do diálogo, e de caráter suprapartidário, que está voltada exclusivamente para a concretização da solidariedade social.

De igual modo, delineia-se o surgimento de um novo modelo de Estado e de governo, muito próximo àquele que o filósofo alemão Jürgen Habermas denominou de procedimental:

 "O paradigma procedimental distingue-se dos concorrentes, não apenas por ser formal, no sentido de vazio ou pobre de conteúdo. Pois a sociedade civil e a esfera pública política constituem para ele pontos de referência extremamente fortes, à luz dos quais, o processo democrático e a realização do sistema de direitos adquirem uma importância extremamente forte"[6]

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Nesse novo contexto a esfera pública passa a ser a principal fonte normativa para o Direito, de modo a tornar possível a construção de uma nova comunidade política e jurídica que “se organiza a si mesma”. Ou seja, o modelo vertical do Estado está cedendo à horizontalidade das forças democráticas.


CONCLUSÃO

Por todo o exposto, conclui-se que mesmo os excessos eventualmente cometidos no contexto e no sentido das manifestações não podem ser punidos criminalmente pelos atuais governos injustos, pois estes não possuem no atual contexto social legitimidade para punir. A falta de legitimidade decorre dos atos diuturnamente por eles praticados em detrimento dos interesses do Estado.

Portanto, eventuais danos ao patrimônio público, provocados no contexto e no sentido das manifestações, excluindo-se furtos e demais atos destituídos de sentido, devem ser reparados pelos governantes.

Nesse sentido, tendo por base a declaração de independência dos Estados Unidos, é possível afirmar que esses governos injustos devem ceder às manifestações populares, sob pena de legitimar as massas a promover uma revolução.

Nos termos da referida declaração, uma revolução pode ser considerada legítima, do ponto de vista do Direito internacional, sempre que os governos “perpetuem uma série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, no sentido de destituir os cidadãos de seus direitos e garantias fundamentais”.   


Notas

[1] RAWLS, John. A Theory of Justice. Massachusetts: Harvard University Press, 1971 p. 7/8. 

[2] RAWLS, 1971, loc.cit.

[3]  Declaração da independência dos Estados Unidos, versão portuguesa. Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vport.html acesso em: 18/06/2013.

[4] Afirmação clássica nesse sentido é a do jurista alemão Gustav Radbruch que considerava que ao Direito bastaria preservar um mínimo de justiça para que não deixasse de ser Direito: “o conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser bem resolvido do seguinte modo: o direito positivo, assegurado pela legislação e pelo poder, tem prioridade mesmo quando o seu conteúdo é injusto e não beneficiar as pessoas, a menos que o conflito entre a lei e a justiça chegue a um grau intolerável em que a lei, como uma “lei defeituosa”, deva clamar por justiça”. RADBRUCH, Gustav. Statutory lawlessness and supra-statutory Law. Oxford J Legal Studies (Spring 2006) 26 (1): 1-11.

[5] A aplicação da regra da proporcionalidade é um processo complexo, que deve ser criterioso, conforme leciona Luis Virgílio Afonso da Silva: “Se simplesmente as enumeramos, independente de qualquer ordem, pode-se ter a impressão de que tanto faz, por exemplo, se a necessidade do ato estatal é, no caso concreto, questionada antes ou depois da análise da adequação ou da proporcionalidade em sentido estrito. Não é o caso. A análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da proporcionalidade em sentido estrito. SILVA, Luis Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos tribunais. n. 798, 23-50.,  2002. p. 35. 

[6] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol. II. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 189.

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Sobre o autor
Fernando dos Santos Lopes

Advogado. Instrutor no Setor de Processos Disciplinares da OAB/PR. Sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico IBDPE. Pós graduando em criminologia e política criminal no ICPC/Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Fernando Santos. A juridicidade das manifestações populares e a responsabilidade dos governos pelos danos causados ao patrimônio do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3724, 11 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25261. Acesso em: 22 dez. 2024.

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