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Princípios contratuais

07/10/2013 às 08:08
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A compreensão que se tem hoje dos princípios sociais do contrato não é mais de antagonismo radical aos princípios individuais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolução do direito e do Estado moderno.


1. Transformações do contrato – 2. Princípios individuais dos contratos – 3. O direito do Estado social como fator de mudança – 4. Princípios sociais dos contratos – 5. A matéria como está prevista no novo Código Civil – 6.. Princípio da função social do contrato – 7. Princípio da equivalência material – 8. Princípio da boa fé objetiva nos contratos em geral – 9. Conclusão.

1. TRANSFORMAÇÕES DO CONTRATO

O que mudou, relativamente aos princípios fundamentais do contrato, com o advento do Código Civil de 2002?

É quase um lugar comum a afirmação de que o contrato ou o direito contratual é a parte do direito menos afetada pela mudança social ou legal. Atribui-se ao direito das obrigações (especia­l­mente o contratual) uma certa estabilidade milenar, porque, mais que os outros ramos jus­civilísticos, perpetuaria os princípios que nos legaram os romanos, assegurando a raiz comum do grande sistema jurídico romano-germânico.

Com efeito, o contrato jurisdiciza o fenômeno mais freqüente do cotidiano das pessoas, em todas as épocas. Na sociedade atual, a cada passo, o cidadão ingressa em relações negociais, consciente ou inconscientemente, para satisfação de suas necessidades e desejos e para adquirir e utilizar os bens da vida e os serviços. Até mesmo quando dormimos poderemos estar assumindo obrigações contratuais, como se dá com os fornecimentos de luz ou de água.

A sociedade de massas, neste final de século XX, multiplicou a imputação de efeitos negociais a um sem número de condutas, independentemente da manifestação de vontade dos obrigados. A globalização econômica  utiliza o contrato como instrumento de  exercício de dominação dos mercados e de desafio aos direitos nacionais, especialmente mediante condições gerais predispostas, que apenas são vertidas (quando o são) aos idiomas locais. A Administração pública tem abdicado dos clássicos instrumentos de soberania e imperium para desenvolver políticas públicas contratualizadas, como os contratos de gestão, em fenômeno que foi tido como “a fuga para o direito privado”[1]. A relação contratual de consumo, na dimensão que transcende os interesses dos figurantes e alcança a cidadania, está provocando uma das mais profundas transformações do direito, principalmente a partir da última década do século XX, no estalão da interdisciplinaridade. 

O contrato é, pois, fenômeno cada vez mais onipresente na vida de cada um. No entanto, não é e nem pode ser categoria abstrata e universalizante, de características inal­teradas em face das vicissitudes históricas. Em verdade, seus significado e conteúdo conceptual modificaram-se profundamente, sempre acompanhando as mudanças de valores da humanidade.

Os princípios contratuais refletem essas vicissitudes históricas e evolutivas.

2. PRINCÍPIOS INDIVIDUAIS DOS CONTRATOS

O direito contratual que se toma como paradigma, tanto para a formação como para a prática dos operadores do direito, é o que se desenhou durante a hegemonia do Estado liberal, corporificando nas codificações a concepção iluminista da autonomia da vontade.

De  modo geral podem ser assim agrupados os princípios que determinam a função individual do contrato:

I – Princípio da autonomia privada (ou da autonomia da vontade, ou da liberdade contratual);

II – Princípio da obrigatoriedade (pacta sunt servanda ou da intangibilidade);

III – Princípio da relatividade subjetiva (ou da eficácia relativa às partes contratantes).

No Estado liberal, o contrato converteu-se em instrumento por excelência da autonomia da vontade, confundida com a própria liberdade, ambas impensáveis sem o direito de proprie­dade privada. Liberdade de contratar e liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmãs siamesas.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, em 1789, proclamou a sacralidade da propriedade privada (“Art. 17. Sendo a propriedade um direito sagrado e inviolável...”), tida como exteriorização da pessoa humana ou da cidadania. Emancipada da rigidez estamental da Idade Média, a propriedade privada dos bens econômicos ingressou em circulação contínua, mediante a instrumentalização do contrato.

Autonomia da vontade, liberdade individual e propriedade privada, transmigraram dos fundamentos teóricos e ideológicos do Estado liberal para os princípios de direito, com  pretensão de universalidade e intemporalidade.

Considere-se o mais brilhante dos pensadores da época, Kant, especialmente na Fundamentação da Metafísica dos Costumes[2]  onde distingue o que entende por autonomia de heterono­mia. A autonomia é o campo da liberdade, porque os seres humanos podem exercer suas escolhas e estabelecerem regras para si mesmos, coletivamente ou interindividualmente. A heteronomia, por seu turno, é o campo da natureza cujas regras o homem não pode modificar e está sujeito a elas[3].

Assim, o mundo ético, em que se encartaria o direito, seria o reino da liberdade dos indivíduos, enquanto tais, porque a eles se dirige o princípio estruturante do imperativo categórico kantiano. Na fundamentação filosófica kantiana, a autonomia envolve a criação e aplicação de todo o direito. Posteriormente, os juristas deram feição dogmática estrita ao princípio da autonomia, significando o espaço de auto-regulação dos interesses privados, de onde emerge o contrato.

3. O DIREITO DO ESTADO SOCIAL COMO FATOR DE MUDANÇA

O paradigma em que se fundavam os princípios individuais do contrato era a primazia do interesse individual, corporificado no constitucionalismo liberal, que reduzia a intervenção estatal ao mínimo, e na codificação civil que tutelava essencialmente o patrimônio do indivíduo. O Código Civil de 2002, tal como o fez o Código de Defesa do Consumidor, tem como paradigma a funcionalização do contrato a fins sociais, equilibrando os interesses individuais e sociais, segundos os fundamentos ditados pelas Constituições do Estado social, inaugurado em 1934, no Brasil, e bem delineado na Constituição de 1988.

O Estado social, sob o ponto de vista do direito, deve ser entendido como aquele que acrescentou à dimensão política do Estado liberal (limitação e controle do poderes políticos e garantias aos direitos individuais, que atingiu seu apogeu no século XIX) a dimensão econômica e social, mediante a limitação e controle dos poderes econômicos e sociais privados e a tutela dos mais fracos. O Estado social se revela pela intervenção legislativa, administrativa e judicial nas atividades privadas. As Constituições sociais são assim compreendidas quando regulam a ordem econômica e social, para além do que pretendia o Estado liberal.

Para alguns, impressionados com o fenômeno crescente da globalização econômica e com a crise do Estado social, a partir da década de oitenta do século passado, já se cogitaria de um Estado pós-social[4]. Firmando posição na controvérsia, entendo que não há, rigorosamente, Estado pós-social, ao menos sob o ponto de vista jurídico. A crise do Estado social foi aguçada pela constatação dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez mais crescentes. Portanto, a crise situa-se na dimensão da ordem social insatisfeita (garantia universal de saúde, educação, segurança, previdência social, assistência aos desamparados, sobretudo), ou do Estado providência. No que respeita à ordem econômica, todavia, a crise é muito mais ideológica que real, pois dirige-se à redução do Estado empreendedor ou empresário e do garantismo legal. Mas, na medida que o Estado substitui seu papel de empreendedor para o de regulador da atividade econômica, permanece intacta a natureza intervencionista da ordem econômica constitucional, ou a “mão visível” do Estado. O Estado regulador fortalece ainda mais o processo de intervenção legislativa, administrativa e judicial nas atividades econômicas, máxime das empresas concessionárias de serviços públicos, que lidam com coletividades de adquirentes ou utentes. O paradoxo atual, que confunde tantos espíritos, pode ser assim esquematizado: a intervenção jurídica cresce na proporção da redução da atividade econômica estatal e do conseqüente aumento dos poderes privados nacionais e transnacionais.

4. PRINCÍPIOS SOCIAIS DOS CONTRATOS

O firme propósito de trazer o novo Código Civil ao contexto e à ideologia da terceira fase histórica do Estado Moderno (as três fases corresponderiam às do Estado absolutista, do Estado liberal e do Estado social) foi sempre destacado pelos autores do projeto, nomeadamente por Miguel Reale, quando se refere à diretriz de “socialidade”[5], que o teria informado.

Esse breve pano de fundo contribui para esclarecer a força crescente dos princípios contratuais típicos do Estado social, os quais, de um modo ou de outro, comparecem nos códigos brasileiros referidos. São eles:

a) princípio da função social do contrato;

b) princípio da boa-fé objetiva;

c) princípio da equivalência material do contrato.

Os princípios sociais do contrato não eliminam os princípios individuais do contrato, a saber, o princípio da autonomia privada (ou da liberdade contratual em seu tríplice aspecto, como liberdades de escolher o tipo contratual, de escolher o outro contratante e de escolher o conteúdo do contrato), o princípio de pacta sunt servanda (ou da obrigatoriedade gerada por manifestações de vontades livres, reconhecida e atribuída pelo direito) e o princípio da eficácia relativa apenas às partes do contrato (ou da relatividade subjetiva);  mas limitaram, profundamente, seu alcance e seu conteúdo.

5. A MATÉRIA COMO ESTÁ PREVISTA NO NOVO CÓDIGO CIVIL

O novo Código Civil traz menção expressa à “função social do contrato” (art. 421) e, nesse ponto, foi mais incisivo que o Código de Defesa do Consumidor. Também fica consagrado, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva, exigível tanto na conclusão quanto na execução do contrato (art. 422). A referência feita ao princípio da probidade é abundante uma vez que inclui-se no princípio da boa-fé, como abaixo se demonstrará. No que toca ao princípio da equivalência material o Código o incluiu, de modo indireto, nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesão (arts. 423 e 424), ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente (interpretatio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cláusula que implique renúncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negócio (cláusula geral aberta, a ser preenchida pela mediação concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso).

Os princípios sociais adotados aproximam, muito mais do que se imaginava, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. A tendência, portanto, é o desaparecimento progressivo da distinção dos regimes jurídicos dos contratos comuns e dos contratos de consumo, ao menos no que concerne a seus princípios e fundamentos básicos.

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A utilização de princípios e cláusulas gerais sempre foi vista com muita reserva pelos juristas, ante sua inevitável indeterminação de conteúdo e, no que concerne ao hegemônico individualismo jurídico do Estado liberal, o receio da intervenção do Estado nas relações privadas, por meio do juiz. Todavia, para a sociedade em mudanças, para a realização das finalidades da justiça social e para o trato adequado do fenômeno avassalador da massificação contratual e da parte contratante vulnerável, constituem eles ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis.

6. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.

Para Miguel Reale o contrato nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida”[6].

No período do Estado liberal a inevitável dimensão social do contrato era desconsiderada para que não prejudicasse a realização individual, em conformidade com a ideologia constitucionalmente estabelecida; o interesse individual era o valor supremo, apenas admitindo-se limites negativos gerais de ordem pública e bons costumes, não cabendo ao Estado e ao direito considerações de justiça social.

A função exclusivamente individual do contrato é incompatível com o Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, como já vimos, pela tutela explícita da ordem econômica e social na Constituição. O art. 170 da Constituição brasileira estabelece que toda a atividade econômica – e o contrato é o instrumento dela – está submetida à primazia da justiça social. Não basta a justiça comutativa que o liberalismo jurídico entendia como exclusivamente aplicável ao contrato[7]. Enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado social; enquanto houver Estado social haverá função social do contrato.

Com exceção da justiça social, a Constituição não se refere explicitamente à função social do contrato. Fê-lo em relação à propriedade, em várias passagens, como no art.170, quando condicionou o exercício da atividade econômica à observância do  princípio da função social da propriedade. A propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular. 

Tampouco o Código de Defesa do Consumidor o explicitou, mas não havia necessidade porquanto ele é a própria regulamentação da função social do contrato nas relações de consumo.

No Código Civil de 2002 a função social surge relacionada à “liberdade de contratar”, como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos “exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (art. 421).

O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o novo Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social.

O princípio da função social do contrato harmoniza-se com a modificação substancial relativa à regra básica de interpretação dos negócios jurídicos introduzida pelo art. 112 do Código Civil de 2002, que abandonou a investigação da intenção subjetiva dos figurantes em favor da declaração objetiva, socialmente aferível, ainda que contrarie aquela.

7. PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA MATERIAL

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.

No novo Código Civil o princípio teve introdução explícita nos contratos de adesão. Observe-se, todavia, que o contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada relação jurídica como a de consumo.

Esse princípio abrange o princípio da vulnerabilidade jurídica de uma das partes contratantes, que o Código de Defesa do Consumidor destacou.

O princípio da equivalência material rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a concepção liberal do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes, formalmente iguais, pouco importando o abuso ou exploração da mais fraca pela mais forte.

O princípio da equivalência material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes.

8. PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EM GERAL

A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam[8]. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento.

A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída[9], mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador.

O novo Código Civil brasileiro (art. 422) refere-se a ambos os contratantes do contrato comum civil ou mercantil, não podendo o princípio ser aplicado preferencialmente ao devedor, neste caso segundo a regra contida no art. 242 do Código Civil alemão. Nas relações de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 4º do CDC cuide de aplicá-lo a consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impõe, principalmente, em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que concerne à informação o princípio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor.

Além dos tipos legais expressos de cláusulas abusivas o Código de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cláusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51 a boa-fé, contudo, a boa-fé está associada ou alternada com a eqüidade (“...com a boa-fé ou a eqüidade”), a merecer consideração. No que respeita aos princípios do contrato a eqüidade não se concebe autonomamente, mas como critério de heterointegração tanto do princípio da boa-fé quanto do princípio da equivalência material. O juízo de eqüidade conduz o juiz às proximidades do legislador, porém limitado à decidibilidade do conflito determinado na busca do equilíbrio dos poderes contratuais. Apesar de trabalhar com critérios objetivos, com standards valorativos, a eqüidade é entendida no sentido aristotélico da justiça do caso concreto. O juiz deve partir de critérios definidos referenciáveis em abstrato não os podendo substituir por juízos subjetivos de valor.

Por seu turno, o art. 422 do Código Civil de 2002 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade (“... os princípios da probidade e boa-fé”).  No direito público a probidade constitui princípio autônomo da Administração Pública, previsto explicitamente no art. 37 da Constituição, como “princípio da moralidade” a que se subordinam todos agentes públicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva ao lado dos princípios da confiança, da informação e da lealdade. Pode dizer-se que não há boa-fé sem probidade.

Outro ponto relevante, em que se nota certa aproximação entre os dois códigos, é o dos limites objetivos do princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva  são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).

O novo Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando se refere amplamente à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa fé aos comportamentos in contrahendo  e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em  se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos. 

9. CONCLUSÃO

Os princípios sociais dos contratos ingressaram no novo Código Civil uma década após o advento do Código de Defesa do Consumidor e quase um século de concepção e vigência do anterior Código Civil, cuja ideologia liberal e oitocentista tornou-se incompatível com a ideologia constitucionalmente estabelecida desde a Carta de 1934, quando se inicia o Estado social brasileiro. Ao longo do século XX a convivência da Constituição social com o Código liberal gerou impasses e contradições, cujo fosso foi aprofundado com o Código de Defesa do Consumidor, com a distinção que se impôs entre contratos comuns civis e mercantis e contratos de consumo (a grande maioria). Aos primeiros, a difícil aplicação dos princípios sociais dos contratos deveu-se ao esforço argumentativo de parte da doutrina voltada à constitucionalização do direito civil, cujo principal postulado reside na eficácia imediata e prevalecente das regras e princípios constitucionais sobre o direito infraconstitucional, que melhor reproduzem os valores existentes na sociedade no seu momento histórico.

A introdução explícita dos princípios sociais do contrato no novo Código Civil chega com atraso de várias décadas e, por ironia da história, quando se fala em crise do Estado social. Parece, contudo, que a regulação da atividade econômica, para conter ou controlar os abusos dos poderes privados, é uma conquista que as sociedades organizadas não pretendem abrir mão. Sobretudo quando se assiste ao crescimento da concentração empresarial e de capital e da vulnerabilidade das pessoas que não detêm poder negocial, principalmente ante a utilização massiva de contratos de adesão a condições gerais unilateralmente predispostas.

Os princípios individuais ou liberais do contrato (liberdade de contratar, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva) afirmaram a liberdade individual, contribuindo para o controle dos poderes públicos, mas foram insuficientes para controlar os abusos dos poderes privados.

Por essa razão, assumiu de importância no Estado social a consideração da vulnerabilidade em que se encontram as pessoas em certas situações negociais. A vulnerabilidade jurídica vai além da debilidade econômica da parte contratante, pois interessa o poder negocial dominante, ou seja, aquela que se presume em posição de impor sua vontade e seu interesse à outra. A presunção é definida em lei, como se dá com o consumidor, no CDC, e com o aderente, no novo é Código Civil. A presunção é absoluta e não pode ser contrariada pela consideração do caso concreto. O consumidor e o aderente, ricos ou pobres, são juridicamente vulneráveis, pois submetidos ao poder negocial da outra parte.

Os três princípios sociais dos contratos (função social, equivalência material e boa-fé objetiva) são comuns a todos os contratos, ainda quando não se configure o poder negocial dominante. Porém, nas hipóteses em que há presunção legal de sua ocorrência, alguns princípios complementares adquirem autonomia e com eles se equiparam. Tal se dá com os princípios da vulnerabilidade e da informação, nas relações de consumo, os quais, no plano geral, desdobram os princípios da equivalência material e da boa-fé. No direito do consumidor ainda se cogita do princípio da razoabilidade que atuaria como condição e limite dos princípios da equivalência material e da vulnerabilidade; a defesa do consumidor e a interpretação favorável vão até os limites da razoabilidade.

A compreensão que se tem hoje dos princípios sociais do contrato não é mais de antagonismo radical aos princípios individuais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolução do direito e do Estado moderno. No Estado social os princípios individuais são compatíveis quando estão limitados e orientados pelos princípios sociais, cuja prevalência se dá quando não são harmonizáveis.


NOTAS

[1] Título da obra de Maria João Estorninho, Coimbra: Almedina, 1996.

[2] KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986.

[3] Em suas próprias palavras (p.94): “A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo o efeito era só possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse à causalidade a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois a liberdade da vontade senão autonomia, isto é a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?”

[4] Cf. ARNAUD, André Jean. O direito entre modernidade e globalização. Trad. Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Habermas reage, com fina ironia, contra os que já vêem “pós” quando estamos em pleno “ainda”. Cf. The New Conservatism. Cambridge: MIT Press, 1990, p. 3-5.

[5] O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 9. Miguel Reale prefere denominar a autonomia privada de “poder negocial” que dá origem ao contrato, como expressão peculiar do normativo, que não é apenas legislativo, na seqüência do que ministrou Kelsen.

[6] Op. cit. p. 10.

[7] Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido. Cf. Liberalismo: Palestras e Trabalhos. Trad. Karin Strauss, São Paulo: Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51. Em visão claramente maniqueísta, diz que “ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’”. Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado.

[8] Para Menezes Cordeiro (Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 1.234) a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.

[9] Cf. MENGONI, Luigi. Spunti per una teoria delle clausule generali. In: Il principio de buena fede. Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Princípios contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25359. Acesso em: 2 nov. 2024.

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