“Cuida de no perder a sustancia por agarrarte a la sombra.” ESOPO
Parece que há poucas dúvidas de que, em tema de concursos públicos, estamos experimentando, com raras exceções, a era da denominada lei geral do espetáculo que hoje impera e alcança seu auge através dos cursos preparatórios com suas aulas on-line, via satélite, telepresenciais, dos vídeos-aula... Massivas doses de lições enlatadas servidas com eficiência e assombrosa rapidez e estudantes que se esforçam como robôs para copiar, “aprender” e assimilar tudo o que “ensina” o mestre.
O suposto básico consiste em vender a ideia de que a parte fundamental do aprendizado é realizada através de um “terceiro”, o professor. Pois bem: este ponto não está de todo claro. De fato, é muito provável que esse tipo de prática não constitua o meio mais eficaz, nem uma condição necessária e suficiente, para tornar efetiva a plena e adequada formação e qualificação intelectual para concursos públicos.
Dos costumes arcaicos que ainda exercem uma enorme influência sobre o ensino jurídico, poucos há mais traiçoeiros que as chamadas aulas magistrais (não é brincadeira, se chamam assim). Dizemos arcaico porque a denominada aula magistral era um veículo adequado de transmissão do saber na época anterior à invenção da imprenta. Foram originalmente a expressão de um saber não depositado ainda em textos, em particular em textos impressos. Com a imprensa e a difusão dos livros essas aulas magistrais se transformaram em algo distinto, conservando só excepcionalmente (no caso dos grandes mestres) o caráter de discursos originais. (J.R. Capella).
Assim que o desenvolvimento dessas aulas responde a um modelo cuja expressão reflete o suposto (que raramente corresponde à verdade) de que quem as dita é um verdadeiro mestre em sua especialidade que não dispôs por escrito o saber que publica verbalmente. Por outro lado, a origem medieval do método se adverte claramente no pomposo termo que se utiliza para designá-la. A lição (lectio) era uma leitura que o ajudante realizava e que depois o mestre (magister) comentava de forma oral. O mesmo esquema que ainda utilizam as missas dos católicos: as ovelhas do Senhor lêem fragmentos da Bíblia e logo o sacerdote os comenta. Apesar de que tal sistema ainda encontre alguma justificativa quando se trata de um texto sagrado cujo sentido ortodoxo há que predicar-se como dogma, perde toda a função quando se trata de uma disciplina racional, argumentativa e científica, cujo significado há que compreender e sobre o qual há que reflexionar, debater, criticar e deliberar.
Quer dizer, ainda que este método para a “transmissão do saber” conforme o modelo único adotado por muitos cursos preparatórios, não deveríamos criar ilusões acerca da utilidade desse tipo de aula e nem tão pouco das anotações que dela extraímos para efeito de concursos. Há que ter muito claro que ao estudar – e particularmente ao estudar Direito – uma coisa é aprender e outra muito distinta é assistir aulas. Não perceber essa “pequena” diferença pode provocar uma espécie de dissonância cognitiva característica: que não só é importante estudar para aprender, senão que, ademais, há que assistir aulas para “aprender a aprender”.
Mas não somente isso. O problema se agrava de forma extraordinária, preocupante e irremediável quando essas aulas são expostas por meio de cursos on-line, via satélite, internet, vídeos-aula ou outras truculências pelo estilo. Por quê?
Pois pelo simples fato de que embora as coisas tenham cambiado substancialmente nos últimos anos, que os livros (bons e maus) deixaram de ser uma raridade, que o professor é não passa de um trabalhador intelectual corrente e que o acesso a qualquer tipo de informação parece carecer de limites, o pervertido método dessa forma “telemagistral” (ou “vídeomagistral”) de ensino segue sendo extremadamente alienante e enganoso: (1) um monólogo ininterrupto ministrado a um coletivo despersonalizado, anônimo e distante; (2) um tipo de aula unidirecional cuja principal característica é o distanciamento físico e psicológico da comunicação; (3) uma forma de assistência inteiramente passiva por parte dos alunos que, como meros espectadores, assumem deliberadamente o papel de uma platéia repleta de dóceis e silenciosos assistentes; (4) um sistema de ensino em que o professor, “descorporificado”, se erige como único protagonista com voz ativa, isto é, como exclusivo detentor e soberano transmissor do saber; (5) um modelo de ensino/aprendizado baseado na repetição “papagaiesca” de informação, em formato de explicações (super) atualizadas, dicas, ditados e anotações como fontes prioritárias e predominantes de conhecimento; (6) tudo isso agravado pela exigência de abordar, mediante uma espécie de “diálogo de surdos” ou intercâmbios medíocres, o máximo de conteúdo no mínimo período de tempo de que se dispõe. Por isso a verborréia é o baluarte mais forte da aula “telemagistral” (ou “vídeomagistral”); o conservante mais duradouro de todas as estupidezes e necedades.
Em resumo, um modelo de docência medieval com matizes tecnológicos de (pós) modernidade que serve fundamentalmente para entreter, que não permite ao aluno analisar, pensar criticamente e reflexionar sobre a (quantidade de) informação que é transmitida, que a relacione com algo que já sabiam e/ou que formem associações mentais significativas e permanentes. Um tipo de “espetáculo intelectual” profundamente antipedagógico e vicioso, em que não se debate nada senão que se emitem opiniões, que não implica nenhum esforço ou participação ativa por parte dos alunos e que, por sua própria natureza, não garante a mínima possibilidade de que o conteúdo será recordado quando for realmente necessário.
Como explica o neurologista Richard Restak, enquanto as mãos se dedicam a atuar, a tomar anotações e a mudar ou substituir páginas, os olhos respondem ao fluxo constante de imagens e textos e se deixam arrastar por hipervínculos que distraem a atenção de seu objetivo original. Entretanto, os ouvidos estão atentos aos sinais auditivos que anunciam a matéria, a chegada de um novo tópico, uma “boa dica” ou alguma informação importante. “Todos esses estímulos sensoriais competem entre si pelos limitados recursos de atenção que possui o cérebro. [...] A quantidade é mais valiosa que a qualidade: se incita ao cérebro a assimilar toda a informação que possa conectando-se com tantas fontes externas como seja possível. O que não há aqui é assimilação, integração e compreensão da informação obtida”.
Provavelmente para muitos isso não constitua nenhum problema. Mas as debilidades reunidas nesse tipo de atividade acadêmica são tantas como as aberrações práticas que encobre, alenta ou justifica. Daí se nutre a tentação que nos pede prestar a mesma atenção ao “solilóquio televisado” de um professor local que a Ronald Dworkin, Robert Alexy, Luigi Ferrajoli, Hans Kelsen..., ou, já que estamos, igual reputação ao bruxo que ao doutor em medicina. É uma das pragas propaladas pelo espetáculo acadêmico do momento para alcançar a ilusória certeza de aprender, entender e ser entendidos. E ainda que tudo isso, dirão alguns, se trate de um “mal menor”, não deveríamos olvidar com tanta rapidez que quem escolhe o “mal menor” está escolhendo o “mal” (H. Arendt).
Aprender, não está demais dizer, é uma experiência que vive como própria o aluno, que lhe exige participar ativamente, impulsar e potenciar distintas competências e habilidades com a finalidade de que este seja capaz de desenvolver múltiplos aspectos de sua capacidade cognitiva, intelectual, crítica e emocional. É uma aventura do pensamento destinada a afiançar a liberdade da leitura e a praticar a autonomia do conhecimento. Não tendo estas finalidades, o melhor será evitar cuidadosamente as aulas que não servem nem para aprender e nem para aprovar e, dessa forma, deixar de investir uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos (cognitivos e emocionais) em uma atividade cuja utilidade é de duvidosa valência e/ou meramente aparente[1].
Do contrário, continuaremos sendo vítimas da quimera de que é possível, por exemplo, escutar o “som de uma só mão aplaudindo”.
REFERÊNCIAS
Baumeister, R. F. & Tierney, J. (2011). Willpower. Rediscovering the Greatest Human Strength, New York: The Penguin Press.
Blakemore, Sarah-Jayne & Frith, Uta (2005). The learning brain, Oxford: Blackwell Publishing Ltd.
Capella, J. R. (2009). El aprendizaje del aprendizaje, Madrid: Editorial Trotta.
DiSalvo, D. (2011). What Makes your Brain Happy and why you Should do the Opposite, NY: Prometheus Books Publishers.
Fernandez, A. e Fernandez, M. “Concurso público e o inimigo interior. Fracasso, vontade e resistência”, São Paulo: Editora Biblioteca24horas, 2013.
Fernandez, A. Filosofia Jurídica, Moral e Política:
https://www.facebook.com/pages/Filosofia-Jur%C3%ADdica-Moral-e-Pol%C3%ADtica/209272899228321
Haba, E. P. Pedagogismo y "mala fe": De la fantasía curricular (y algunas otras cosas) en los ritos de la programación universitaria: Un cuadro clínico que no es "constructivo", San José: IJSA, 1995.
Jensen, E. (1996) "Brain-Compatible Learning” International Alliance for Learning, Summer 1996, Vol. 3 #2. IAL, Encinitas, CA.
Restak, R. (2012). The Big Questions: Mind, Simon Blackburn (Editor), London: Quercus Publishing Plc.
Nota
[1] Daí a necessidade de afrontar firmemente a desagradável responsabilidade de não aceitar as opiniões dos que propõem tomar o caminho mais fácil do aprendizado e se orgulham de estar tão “atualizados” que podem transmitir e ensinar, de forma rápida, todo tipo de lixo intelectual; de rechaçar resolutamente as promessas de todos aqueles que pensam que sabem mais do que de fato sabem, que não dispõem da humildade intelectual necessária para reconhecer e saber valorar a enorme quantidade de informação que lhes resulta impossível obter e que não sentem nenhuma necessidade de questionar continuamente os limites do próprio conhecimento. Já sabem: “A ignorância costuma engendrar maior confiança que o conhecimento” (Charles Darwin).