Em dezembro de 2013, a Lei nº 10.826/03 completará uma década de vigência. Conhecida como Estatuto do Desarmamento, é exemplo de norma jurídica que, concebida sob determinada ideologia, desalinhou-se por completo da realidade social.
Apesar do grande impacto que causou na sociedade brasileira, ingressou no mundo jurídico sem a necessária discussão técnica sobre sua eficácia para a redução da violência, com debates tênues e restritos ao próprio Congresso Nacional. A promulgação da norma deu-se bem ao final da legislatura de 2003, ou, como identifica o jargão popular, no “apagar das luzes”.
Muito mais do que uma norma técnica no campo da segurança pública, a Lei nº 10.826/03 apresenta viés ideológico, mudando significativamente a tutela jurídica para a questão das armas de fogo. Com raríssimas exceções, tornou-se regra a proibição da posse e do porte destes artefatos no Brasil.
Toda a construção normativa do Estatuto do Desarmamento baseia-se nessa premissa, ex vi das disposições penais que nele se incluem, coroadas pelo teor do art. 35, que pretendia proibir o comércio de armas e munição no território brasileiro, de forma radical. Esse dispositivo teve sua vigência condicionada à aprovação popular, por meio de referendo, convocado na redação do § 1º para outubro de 2005, pouco antes de dois anos da vigência da norma.
Realizada a consulta, a proibição foi rejeitada pela maioria da população brasileira, contabilizados quase sessenta milhões de votos contra a proibição do comércio de armas de fogo e munição, marca superior às alcançadas por presidentes eleitos pelo voto democrático.
Nesse exato momento, iniciou-se o processo de deterioração da Lei nº 10.826/03. Isso porque, muito mais do que a rejeição a um simples dispositivo de vigência condicionada, o resultado do referendo evidenciou a maciça contrariedade popular a todo o alicerce ideológico sobre o qual se construiu o Estatuto. A premissa fulcral traduzida na norma jurídica, isto é, a de que as armas deveriam ser inacessíveis ao cidadão comum, revelou-se contrária ao interesse social.
Muitas são as razões que podem justificar o resultado do referendo. A maior delas, sem dúvida, é a constatação prática da ineficácia da norma na redução da criminalidade. Em todo o ano de 2004, e nos dez meses de 2005 em que as restrições à posse e ao porte de armas vigoraram, apesar da forte campanha, em que se recolheu, aproximadamente, meio milhão de armas, os índices de homicídio com arma de fogo não sofreram redução proporcional. Em 2003, de acordo com o Mapa da Violência 2011, ocorreram mais de 50 mil homicídios no Brasil, sendo 70,75% com armas de fogo, número semelhante ao verificado em 2004, que não divergiu dos seguintes.
Não há dúvida de que tais fatos foram observados na vida social, o que se confirma pelos jornais e noticiários. O resultado da consulta pública não poderia ser outro, pois, se a norma não se mostrava eficaz para a redução da violência, não haveria razão para que a população abrisse mão do seu direito de autodefesa.
Recentemente, a própria Organização das Nações Unidas, por meio do Global Study on Homicide (2011), mais amplo e profundo estudo já realizado sobre homicídios, em âmbito global, pela primeira vez reconheceu que não se pode estabelecer relação direta entre o acesso legal da população às armas de fogo e os índices de homicídio, pois não são as armas do cidadão que matam, mas as do crime organizado*, para o qual a lei não possui relevância. O estudo ainda identifica exemplos em que, se relação estatística houver entre os dois fatos, esta será inversamente proporcional.
Os números mais recentes somente reforçam essa conclusão. Após oito anos de vigência do Estatuto do Desarmamento, as ocorrências de homicídios reduziram-se em apenas sete Estados, aumentando muito nos demais, que alcançaram índices típicos de países envoltos em conflitos bélicos. Naqueles em que houve decréscimo de casos, em comum, verificou-se o investimento na atuação policial, como nos programas de repressão instituídos em São Paulo e na política de ocupação e pacificação de favelas estabelecidas no Rio de Janeiro, mas nada relacionado ao recolhimento de armas junto ao cidadão.
Considerados esses dados, aliados ao resultado do referendo promovido em 2005, haveria de se esperar que a norma brasileira de regulação das armas de fogo sofresse radical modificação e passasse a traduzir, legitimamente, o anseio popular e os aspectos técnicos hoje dominantes no campo da segurança pública. Contudo, isso não ocorreu e a norma seguiu vigente no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que construída sobre uma concepção ideológica rejeitada.
Desta forma, a Lei nº 10.826/03 passou a ser alvo de frequentes ataques, sob a crítica de especialistas que contestam seus efeitos. No campo legislativo, tornou-se alvo de projetos de lei que tentam conferir um pouco mais de legitimidade aos seus dispositivos, ainda que de forma tímida, sem que qualquer avanço significativo tenha seguido nesse sentido. As mudanças legislativas propostas, vale ressaltar, vêm se resumindo à inclusão de categorias no rol daquelas a que se permite o porte de armas de fogo, sempre pela via excepcional. De positivo, efetivamente, apenas o fato de serem sistematicamente rejeitadas aquelas proposições que visam dificultar, ainda mais, o acesso do cidadão às armas de fogo, o que comprova, apesar da ideologia ainda predominante entre os legisladores, que a técnica, felizmente, parece estar prevalecendo.
O problema, contudo, é que, a par da movimentação legislativa para promover alterações no Estatuto do Desarmamento – repise-se, ainda tímida e cujo sucesso se resume à aprovação de iniciativas destinadas à flexibilização da norma –, sua essência permanece vigente, pautada numa proposta restritiva, rejeitada há mais de seis anos.
Assim, na disciplina das armas de fogo, o Brasil é regido por uma lei maciçamente reprovada pela sociedade, que não reflete os interesses da população, não considera sua heterogeneidade e não se ampara em estudos técnicos. É uma norma que trata igualmente o cidadão residente em grandes centros urbanos, a alguns metros da unidade policial mais próxima, e aquele ruralista, sediado nos confins dos interiores, onde a polícia, por vezes, nunca chegou.
O entendimento refletido no Estatuto, vê-se, partiu de uma premissa central, de que as armas deveriam ser banidas da sociedade. Como não houve o banimento, não há sentido em manter-se vigente uma legislação cujos preceitos dele decorrem.
Desta forma, urge que se promova profunda revisão nos termos da Lei nº 10.826/03, quiçá sua integral revogação e a edição de novo modelo legislativo, voltado, não à ideia já rejeitada do desarmamento, mas tão somente ao controle das armas de fogo, conferindo ao cidadão brasileiro, conforme sua manifesta opção, o direito de mantê-las também para sua segurança, de forma responsável e dentro dos ditames legais.
Do contrário, à vista da realidade, tema tão relevante, como a proteção à vida e a possibilidade de legítima defesa, continuará tutelado por norma inegavelmente desajustada com a realidade social.
* The role played by firearms in homicide is fundamental and, while the specific relationship between firearm availability and homicide is complex, it appears that a vicious circle connects firearm availability and higher homicide levels. Firearms undoubtedly drive homicide increases in certain regions and where they do members of organized criminal groups are often those who pull the trigger
¹ Artigo originalmente publicado na revista jurídica Consulex, edição nº 362, de 15/02/2012 (http://www.mvb.org.br/userfiles/artigo_painel_leitor-RJC-362.pdf).
² Referência de data atualizada para setembro de 2013.