Como regra, o direito brasileiro não admite que uma norma jurídica seja repristinada. Antes de qualquer discussão jurídica sobre o tema, criterioso valer-se da metalinguagem para fazer melhor análise:
Repristinar tem como radical o adjetivo prístino, que se refere a algo antigo ou que ocorreu em época anterior. Ou seja, repristinar é voltar ao caráter, estado ou valor primitivo.
Como parâmetro genérico, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 4.657/42, veda a repristinação de um ato normativo; permite-se exceção à regra quando houver disposição expressa em contrário. O comando legal assim dispõe:
Art. 2° Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 3° Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência [gn].
Parte da doutrina afirma que não existe repristinação no direito brasileiro[1]. Entretanto, com simples leitura do dispositivo legal é possível concluir que não se mostra de boa técnica afirmar categoricamente que o ordenamento jurídico não agasalha esse fenômeno. O § 3° do art. 2° da Lei de Introdução é claro em prever que o referido instituto não existe se – e somente se – não houver nada em contrário, haja vista conter a cláusula “salvo disposição em contrário”. Portanto, havendo qualquer disposição em sentido diverso, é de rigor reconhecer o revigoramento de uma norma anteriormente revogada. Esse entendimento é o mesmo perfilhado por Serpa Lopes, seguindo o magistério de Oscar Tenório:
Os termos do § 3° do art. 2° da nossa Lei de Introdução aparecem por demais peremptórios, de tal maneira que parecem justificar a corrente unânime dos nossos juristas, no sentido de interpretá-lo como não oferecendo margem ao renascimento da lei revogada, a menos que haja disposição legal expressa. Oscar Tenório, porém, atribui ao citado § 3° do art. 2° uma inteligência menos rigorosa e com a qual estamos de inteiro acordo. Ele admite que, com o se prescrever, no citado § 3° do art. 2° – salvo disposição em contrário – a Lei de Introdução admitiu a repristinação, de modo que o problema da repristinação se transforma numa questão de interpretação, cabendo ao intérprete considerá-lo, ao verificar se a lei anterior foi ou não revogada. Na verdade, se admitirmos a aplicação integral, fatal e intransigente da não ressurreição da lei revogada, chegaremos a conclusões absurdas, e até em contrário à ostensiva vontade do legislador[2].
Para haver repristinação é preciso que haja três atos normativos: o inicial, o segundo que revoga o anterior e, por fim, uma terceira norma que revoga a segunda; assim, nessa sucessão de revogações – conforme a regra geral – a primeira norma jurídica não volta a ter vigência. Todavia, havendo disposição expressa em contrário, fica a primeira restaurada; em tal caso, volta-se ao estado primitivo, portanto, há repristinação.
Ora, se uma lei é atingida pela repristinação, forçoso reconhecer que a mesma gerou um efeito repristinatório. Trata-se de critério de mera causa e efeito, ação e reação: a repristinação foi a causa; o efeito foi repristinatório. Do que se expôs, chega-se à primeira conclusão: toda repristinação gera efeito repristinatório.
Ocorre que a recíproca nem sempre é verdadeira, pois nem todo efeito repristinatório advém de uma repristinação. Há situações em que a lei revogadora não é expressamente revogada (ressalta-se que uma lei só é revogada por outra), perde tão somente a eficácia pelo fato de ser nula.
Como sedimentado em nosso ordenamento jurídico, tudo em desconformidade à Constituição Federal é nulo de pleno de direito. Portanto, é eivada de nulidade a lei tida por inconstitucional.
Exemplo: uma determinada lei é revogada; posteriormente, o STF reconhece a inconstitucionalidade da lei revogadora – que, destarte, é tida por nula. Ora, o que é nulo, nulo efeito produz, conforme narra a antiga parêmia jurídica (quod nullum est nullum efectum producit), ou seja, a revogação não produziu efeito algum.
Na doutrina, o escólio de Alexandre de Moraes: “a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarreta a repristinação da norma anterior que por ela havia sido revogada, uma vez que norma inconstitucional é norma nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos[3]”. Contudo, o efeito da sua revogação é nulo. Ato inconstitucional é ato nulo; ato nulo não produz efeitos jurídicos, logo, não houve efeito a revogação da primeira lei, a qual, consequentemente, volta a surtir efeitos.
Com isso, percebe-se que embora não houve repristinação, gerou-se efeito repristinatório. Inexistiu repristinação porque a lei revogadora não perdeu a vigência, mas sim a eficácia. Recorde-se que para se configurar a repristinação propriamente dita, necessário que a lei revogadora seja expressamente revogada, conforme prediz o art. 2°, § 3°, da Lei de Introdução: “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência” [gn].
A declaração de inconstitucionalidade, por si só, não tem o condão de revogar a lei inconstitucional, sob pena de estar adentrando em terreno que é mister do Poder Legislativo, porém, retira a eficácia do ato normativo operando efeitos vinculantes contra todos desde o momento em que a norma inconstitucional passou a ter existência jurídica (erga omnes et ex tunc), a não ser que o próprio STF restrinja os efeitos da declaração, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Todavia, se não houver ressalva, impõe-se o reconhecimento da existência de efeitos repristinatórios. A causa, aqui, é a declaração de inconstitucionalidade. A propósito, esse entendimento não só é amparado pela doutrina e jurisprudência como também pelo ordenamento jurídico, sendo isso o que prevê a própria Lei 9.868/99, ao disciplinar os efeitos jurídicos da medida cautelar em ADI:
Art. 11. Omissis
§ 2° A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário [gn].
Nos tribunais, destacam-se os acórdãos relatados pelo Ministro João Otávio de Noronha, dentre os quais os seguintes embargos declaratórios:
[...] 3. A declaração de inconstitucionalidade em tese, ao excluir do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida, conduz à restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional.
4. Sendo nula e, portanto, desprovida de eficácia jurídica a lei inconstitucional, decorre daí que a decisão declaratória da inconstitucionalidade produz efeitos repristinatórios, que irão atingir, inclusive, a cláusula de revogação, seja ela expressa ou implícita, a não ser que o STF, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restrinja os efeitos da medida.
5. O chamado efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade não se confunde com a repristinação prevista no artigo 2º, § 3º, da LICC, sobretudo porque, no primeiro caso, sequer há revogação no plano jurídico[4].
Na jurisprudência do STF, o Ministro Celso de Mello já deixou consignado que é de se reconhecer a existência de efeito repristinatório nas decisões proferidas pelo Supremo em sede de controle de constitucionalidade. A respeito, trecho de ementa de acórdão relatado pelo Ministro no julgamento da ADI nº 652/MA (Questão de Ordem):
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – NATUREZA DO ATO INCONSTITUCIONAL – DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – EFICÁCIA RETROATIVA – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO LEGISLADOR NEGATIVO – REVOGAÇÃO SUPERVENIENTE DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO – PRERROGATIVA INSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE EFEITOS RESIDUAIS CONCRETOS – PREJUDICIALIDADE
– O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio de que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade.
Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.
– A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito.
– A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional – que extrai a sua autoridade da própria Carta Política – converte o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo [...][5].
A existência de repristinação e efeito repristinatório, bem como as discussões que causam no meio jurídico não passariam de mera literatura se não fossem, de fato, aplicáveis e perceptíveis na prática. Aos exemplos:
No ordenamento jurídico federal, verifica-se repristinação em disposições da Lei 8.213/91: o art. 122 da referida norma jurídica foi revogado expressamente pelo art. 8° da Lei 9.032/95. Posteriormente, porém, foi sancionada a Lei 9.528/97, cujo art. 2° restabeleceu (ou repristinou) a vigência do art. 122, dantes revogado: “Ficam restabelecidos o § 4º do art. 86 e os arts. 31 e 122 [...] da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 [...]”. Nessa seara, houve expressa disposição legal restabelecendo a vigência de norma jurídica já revogada, o que não é outra coisa senão a existência de repristinação.
Ainda pode-se valer da legislação previdenciária para exemplificar a existência de efeito repristinatório sem haver prévia repristinação, citando-se, para tanto, a Medida Provisória nº 242/05, cujo art. 3° revogou o parágrafo único do art. 24 da Lei 8.213/91. Entretanto, por meio de decisão proferida nas ADIs nº 3467 e 3505 o STF suspendeu a eficácia da MP. Portanto, a concessão da medida cautelar tornou aplicável a legislação anterior (art. 11, § 2°, da Lei 9.868/99), ou seja, houve apenas efeito repristinatório.
Toda a repristinação, portanto, gera efeito repristinatório, mas nem todo efeito repristinatório advém de uma repristinação, uma vez que pode ser originário de declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Referências
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 19. ed. rev. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: introdução, parte geral e teoria geral dos negócios jurídicos. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: 2000, v. I.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 32. ed. São Paulo, Saraiva, 2003, v. 1.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
Notas
[1] Cf. MONTEIRO, W. de B. Curso de direito civil, p. 28, v. 1; DINIZ, M. H. Direito civil brasileiro, p. 98, v. 1.
[2] LOPES, M. M. de S. Curso de direito civil, p. 110, v. I. Itálicos no original.
[3] MORAES, A. de. Direito constitucional, p. 626. Pede-se vênia para discordar, em parte, porque não existiu repristinação propriamente dita. No caso, a lei revogadora não foi revogada; ainda continua no plano jurídico, porém, perdeu sua eficácia pelo fato de ter sido declarada sua inconstitucionalidade. Ressalte-se, todavia, que a ideia central defendida por Alexandre de Moraes é a mesma que se expõe neste trabalho.
[4] STJ, EDcl no REsp 445.455/BA, 2ª Turma, relator: Ministro João Otávio de Noronha, DJU 15/9/2003.
[5] STF, ADI 652/MA (QO), Plenário, relator: Ministro Celso de Mello, DJU 2/4/1993.