O conflito internacional desencadeado pelas denúncias de Edward Joseph Snowden acerca da espionagem praticada pela NSA contra cidadãos, empresas e governantes latino-americanos reabriu o debate sobre o conflito NORTE/SUL, recolocando em evidência o livro O IMPÉRIO E OS NOVOS BÁRBAROS de Jean-Christophe Rufin. A obra, que no Brasil ganhou uma edição da Bibliex em 1996, é uma ferramenta indispensável para quem quiser compreender melhor a ideologia que fomentou a espionagem ilegal praticada pelos EUA na América Latina.
Rufin, que é um especialista em relações NORTE/SUL, utilizou a História de Roma como modelo para a análise da nova ordem mundial instaurada após o fim da Guerra Fria. O conflito LESTE/OESTE deixou de existir mas isto não significou a pacificação do mundo ou o fim da história como afirmou Fukyama. A tensão ideológica que mantinha as superpotências em guarda e produzia conflitos indiretos entre EUA e URSS (Coréia, Vietnan, Afeganistão, etc.), foi substituído por outro, menos evidente e potencialmente mais perigoso.
Na abertura do livro Rufin faz uma comparação entre o NORTE pós Guerra Fria e o Império Romano à época da destruição de Cartago. A escolha não poderia ser mais feliz. Estas duas pontas da história realmente podem ser unidas, porque nestes dois momentos a construção da ideologia da fronteira é perfeitamente visível.
À abertura segue-se a primeira parte. Nesta são analisadas seis questões fundamentais diante das quais o NORTE deve posicionar-se.
A primeira questão refere-se às novas terras incógnitas. Os romanos designavam pelo termo terrea incognitae as terras fora do Império porque os bárbaros eram incontáveis, porque não se sabia exatamente o que ocorria nestas terras. O mesmo está ocorrendo atualmente na África. Vários Estados do continente negro entraram em colapso e o Ocidente não tem mais contato com extensas faixas territoriais.
A segunda é a explosão demográfica. Apesar de sua ineficiência econômica (ou exatamente por causa dela), os países do SUL tem um crescimento populacional elevado colocando em risco o NORTE. Segundo Rufin o medo da imigração (ou da invasão) está na origem da ideologia da fronteira, pois obrigou os países do NORTE a reforçar sua segurança limitando o acesso aos seus territórios e a incentivar o controle da natalidade no SUL.
A terceira é o arquipélago da miséria. O destaque aqui vai para a situação caótica das metrópoles do SUL, cuja penúria é agravada em razão de se constituírem em pólos de atração para as populações de regiões mais miseráveis ainda. Este é o caso, por exemplo, da Cidade do México e de São Paulo.
A quarta é a capacidade que o SUL tem de reinterpretar as ideologias importadas do NORTE (até mesmo o marxismo) segundo suas próprias necessidades. O senso comum, segundo Rufin, acredita que “Uma vez injetada no Sul, porém uma ideologia, uma religião, vive sua própria vida, misteriosa e surpreendente. Ao mesmo tempo em que se depaupera na Europa, encontra às vezes no Sul um vigor extemporâneo.” Ao contrário disto, o autor francês percebeu que “O Sul não se contenta em imitar mesmo quando capta as influências vindas da Europa e dos Estados Unidos; ele transforma e cria.. Utiliza os meios ideológicos recebidos do Norte para conduzir suas próprias estratégias.”
A quinta é a corrida armamentista protagonizada pelos países do SUL. Muitos dos quais desenvolveram armas nucleares (Índia e Paquistão) ou produzem e exportam armamentos convencionais (Brasil).
A última é a incapacidade dos microprojetos financiados pelo NORTE em modificar substancialmente a realidade existente nos países do SUL.
Observador arguto do que ocorria no início da última década do século XX, Rufin argumenta na segunda parte do livro que atualmente estamos diante de um novo tipo de conflito. Conflito este que marca o nascimento ou renascimento da ideologia da fronteira.
Jean-Christophe lembra-nos que entre os romanos, a ideologia da fronteira foi concebida por Políbio. O historiador grego que acompanhou Cipião à Cartago foi o primeiro a opor vigorosamente de um lado a civilização (Império Romano) e de outro a barbárie (germanos, gauleses, etc.) e a afirmar que Roma tinha uma missão (civilizar as terrea incognitae e proteger-se das investidas dos povos incivilizados). Em sua nova versão, a fronteira opõe novamente civilização a barbárie, só que desta o conflito se processa entre NORTE e o SUL.
De um lado o NORTE, civilizado, tolerante, produtivo, desenvolvido e populacionalmente racional, faz tudo o que é necessário para preservar-se de seu novo inimigo. De outro, o SUL, incivilizado, intolerante, improdutivo, subdesenvolvido e superpovoado, tenta tirar proveito de suas contradições para impor ao NORTE suas próprias necessidades. Entre estes dois universos a fronteira.
Analisando o comportamento dos EUA e da Europa, o analista francês chegou à conclusão de que o NORTE só se importa com o SUL quando tem que defender suas fronteiras territoriais e econômicas.
A fronteira territorial é fixa porque geográfica. Em razão disto os Estados que estão do outro lado não podem ser ignorados e sempre se beneficiarão da proximidade. Isto parece óbvio. Contudo, não é sempre que um cidadão do primeiro mundo tem coragem de admitir que os EUA não pode deixar de “ajudar” o México porque ele está a algumas braçadas, que é mais fácil e menos dispendioso conter os mexicanos do outro lado do Rio Grande do que mobilizar efetivos militares ao longo da fronteira. Mas se a situação do México é privilegiada, o mesmo não ocorre com os outros Estados.
Em razão de sua distância, a América Latina, África, Ásia e Oceania, somente despertam interesse quando o podem, de alguma maneira, afetar a estabilidade do outro lado da fronteira. Os romanos distinguiam entre bárbaros segundo sua proximidade do império. O NORTE faz o mesmo na atualidade, distribuindo ajuda financeira de maneira seletiva. O colapso de vários países Africanos (Libéria, Congo, Sudão, Burundi, Angola etc.) no final da década de 80 do século passado despertou apenas indiferença nos EUA e Europa. A tragédia que ocorria na África não podia ser comparada em termos humanos e políticos à invasão do Kuwait pelo Iraque. Entretanto, para punir o Iraque, apoiado pelo resto do mundo civilizado os EUA desencadeou a maior operação militar desde a Guerra do Vietnan:- tudo para preservar o fornecimento de petróleo.
A ação dos EUA naquele incidente provaram que a distância faz com que a fronteira econômica seja móvel, ajustando-se aos interesses imediatos do NORTE. Quando e enquanto for necessário, o NORTE “intervirá” militarmente em qualquer ponto além da fronteira. Quando a intervenção for desnecessária, o NORTE “ajudará” o Estado do SUL que servir aos seus interesses abandonando-o à própria sorte no momento oportuno. O Paquistão é um exemplo típico deste fenômeno. Durante a guerra civil no Afeganistão, o Paquistão recebia “ajuda” internacional. Findo o conflito, os paquistaneses foram abandonados à própria sorte. Isto só mudou quando os norte-americanos precisaram combater o Talibam no Afeganistão e a Al-Qaeda no território do próprio Paquistão.
Como bem nota Rufin, a política de manter a estabilidade na fronteira revela toda a ambigüidade do NORTE:- democrático, se apóia em regimes autoritários que atendem seus interesses no SUL (Irã antes da Revolução Islâmica; Iraque de Saddan Hussein; Honduras, Paraguai e Colômbia neste momento); defensor da liberdade, fomentou o controle estatal da natalidade (China); civilizado, admite a fome, a guerra fratricida e a peste desde que estas ocorram do outro lado da fronteira (Libéria, Congo, Sudão, Burundi, Angola etc. ao tempo que o livro foi escrito; Síria na atualidade).
Apesar de adotar uma perspectiva crítica do conflito NORTE/SUL, ao longo do livro Rufin comete alguns equívocos. Ao analisar a situação do Brasil em 1989, por exemplo, o autor considera Lula um marxista e Collor uma esperança. Lula não só não era um marxista como presidia um partido dividido e dominado por uma ala moderada solidamente apoiada por setores Igreja Católica. A esperança “collorida” acabou no mar de lama como todos sabem. Alguns anos depois, Lula cumpriu dois mandatos muito bons: incentivou a indústria nacional, pagou a dívida externa e implementou programas sociais que pacificaram e aperfeiçoaram a sociedade brasileira (Bolsa Família, Prouni, Enem, etc...).
A comparação entre a história romana e o momento em que a obra foi escrita (início da última década do século XX) dá um sabor especial ao livro. Mas nem por isto a tese de Rufin deixa de apresentar problemas.
Como ele mesmo lembra no final da obra, a expansão de Roma teve êxito porque a cidade eterna colonizou as regiões conquistadas e romanizou os povos bárbaros submetidos pela força. Ao doar aos novos territórios seu sangue, sua língua, sua cultura e os benefícios da civilização romana, Roma criou laços profundos e quase indissolúveis entre a capital a e periferia da República e, depois, do Império. Samnitas, volscos, etruscos, germanos, gauleses, espanhóis, etc., todos os povos romanizados ajudaram a defender e a ampliar as fronteiras de Roma, cuja principal causa de desagregação teria sido, segundo alguns historiadores, a “pax romana” e a adoção do cristianismo como religião oficial do Império.
Nesse sentido, a comparação entre Roma e o NORTE é problemática. Mesmo apoiando-se na ideologia da fronteira de Políbio, Roma procurou expandir territorialmente e incluir os povos submetidos dentro de sua cultura. O NORTE isola-se. Os benefícios do novo Império são distribuídos cada vez mais seletivamente. Se em 212 dC Caracalla concedeu a cidadania romana a todos os habitantes livres dentro do Império, os Estados do NORTE reservam cada vez mais o título de cidadão aos americanos, europeus, russos e japoneses.
Ao analisar a capacidade que o SUL tem de reinterpretar as ideologias importadas do NORTE Rufin omite o fato de que isto ocorreu várias vezes na Europa. Stalin serviu-se do marxismo para construir um império tão centralizado e violento quanto a Russia Czarista. Os ideais republicanos e anticlericais da Revolução Francesa acabaram desaguando num verdadeiro anacronismo:- Napoleão coroado imperador pelo Papa. O neoliberalismo provocou a ruína das economias do NORTE após 2008. No presente momento os países do SUL apresentam performances econômicas melhores que os do NORTE justamente porque não adotaram o neoliberalismo (ideologia ainda predominante ao NORTE da fronteira imaginária de Rufin).
Várias das características atribuídas por Rufin aos movimentos de ruptura existentes no SUL (maniqueísmo, legitimação da violência, negação dos direitos humanos e da democracia) podem muito bem ser atribuídos aos movimentos políticos surgidos na Europa no início do Século XX. Mas devemos perdoar o autor. Realmente deve ser difícil para um europeu conviver com o fato de que a bem pouco tempo a Europa concebia os dois maiores exemplos de civilidade européia:- o Nazismo e o Fascismo.
Além destes problemas, a obra não suporta uma crítica de natureza histórica. Afinal, enquanto o NORTE estava mergulhado nas trevas da Idade Média, as obras dos filósofos gregos eram preservadas e traduzidas pelos islâmicos no SUL. Além disto, se portugueses e espanhóis não tivessem aprendido com os árabes a navegar pelas estrelas, e, por isto mesmo, em mar aberto, provavelmente os europeus não teriam chegado à América e o novo ciclo de colonização que acarretou a acumulação primitiva que permitiu o surgimento do capitalismo seria apenas uma quimera.
Ao comentar as ameaças que vem do SUL, o autor afirma que “Os Estados do Terceiro-Mundo estão malequipados demais para um terrorismo realmente ameaçador, isto é, na dimensão das sociedades tecnologicamente desenvolvidas.” Infelizmente Rufin estava enganado. Recentemente os terroristas do SUL provaram que são capazes de utilizar criativamente os meios fornecidos pelo próprio NORTE para atingir seus objetivos. Foi o que ocorreu quando do ataque ao WTC.
A propósito, creio que o ataque às torres gêmeas com aviões civis inaugurou e justificou um novo ciclo do terrorismo do NORTE civilizado no SUL indefeso. As guerras norte-americanas no Afeganistão e Iraque e os constantes ataques com drones realizados no Paquistão, com todos seus excessos de violências contra civis (inclusive crianças), provam satisfatoriamente que o NORTE civilizado sabe apelar para a barbárie e a espalhar pelo SUL quando lhe interessa.
Ao tratar do tráfico de drogas e da poluição, dois outros perigos que, segundo ele, viriam do SUL, o autor omite duas coisas importantes. O tráfico de drogas existe porque existe um mercado no NORTE. A poluição é um fenômeno global e os maiores responsáveis pela degradação ambiental são os 7 Grandes, todos no NORTE.
Mesmo quando coloca o leitor diante de três saídas para o apartheid mundial Rufin reforça a ideologia da fronteira. Todas as soluções que ele sugere (defesa intransigente da fronteira à Marco Aurélio, superação da ideologia da fronteira à Cleber e rebelião diante do inexorável à Von Ungeln) desconsideram o fato de que do outro lado da fronteira também existem leitores e cidadãos. Apesar de se confessar um defensor apaixonado da superação do conflito NORTE/SUL Jean-Christophe Rufin reserva para “os novos bárbaros” apenas o papel de espectadores.
A obsessão governamental dos EUA de espionar todo mundo em todos os países - mediante o uso da internet - também provocou imensas rachaduras nos fundamentos ideológicos da obra de Rufin. Nas últimas semanas a imprensa noticiou que a NSA também espionou governantes da França, Espanha e Alemanha. Isto provocou uma imensa onda de reações diplomáticas indignadas que podem acarretar a expulsão dos diplomatas norte-americanos de vários países europeus. Os três grandes da Europa, aliados tradicionais dos EUA, estão no NORTE e mesmo assim foram tratados pela NSA como se estivessem ao SUL da fronteira.
O segredo revelado por Edward Joseph Snowden, a ambição dos EUA de espionar e dominar o planeta inteiro dissolveu o conceito de uma fronteira entre o NORTE e o SUL, cada bloco ocupando campos antagônicos. Neste momento a América Latina está diplomaticamente mais próxima da Europa do que jamais esteve nos últimos 50 anos.
Mas nem por isto a leitura de O IMPÉRIO E OS NOVOS BÁRBAROS é dispensável. Ao contrário, ela é essencial. Afinal, as ocupações do Afeganistão e Iraque e os ataques com drones no Paquistão são desdobramentos práticos da teoria do conflito NORTE/SUL. A única diferença é que desta vez "os novos bárbaros" tornaram-se eficientes o bastante para demonstrar o quanto o NORTE é frágil e tocável (além de atacar o WTC, a Al Qaeda também realizou atentados bem sucedidos na Espanha e na Inglaterra). Desde a II Guerra Mundial é a primeira vez que o medo ideológico (conflito LESTE/OESTE, NORTE/SUL) passou a ser real. Agora não são apenas as fronteiras móveis que devem ser defendidas, mas as fronteiras fixas. Na verdade o próprio conceito de fronteira fixa entre o NORTE e o SUL foi colocada em xeque em virtude da espionagem massiva e mundial realizada pela NSA.
O terrorismo desconsidera a fronteira e se aproveita das confusões que ocorrem dos dois lados da mesma. A obsessão dos EUA por espionar todo mundo em todos os países minou a coesão do NORTE, empurrou a Europa para o SUL da fronteira. É bem provável que isto venha a prejudicar a capacidade dos EUA e da Europa de se defenderem contra as infiltrações daqueles que pretendem vingar as barbáries que norte-americanos e europeus tem praticado no SUL (tal como foi descrito em O IMPÉRIO E OS NOVOS BÁRBAROS). Novos atentados terroristas nos EUA e na Europa podem ocorrer no futuro, recolocando em marcha a mesma lógica NORTE e SUL preconizada por Jean-Christophe Rufin. Vem daí o interesse pela releitura de sua obra.