Conclusão
Como procuramos demonstrar, existe um movimento de progressiva consolidação do Estado republicano no Brasil, no qual se institucionalizam mecanismos descentralizados de controle da Administração Pública.
A respeito da consolidação do Estado republicano, o estudo da Ouvidoria colonial contribuiu imensamente para desenvolvermos nosso trabalho. A descrição histórica apresentada por Mello (2009) permitiu-nos observar o surgimento de arranjos locais como forma embrionária dos movimentos de emancipação que viriam a seguir: proclamação da independência e proclamação da república. Mas, sejamos francos, nem uma e nem a outra provocaram considerável ruptura com o modelo de dominação patriarcal que herdamos do período colonial. No entanto, representaram os primeiros passos de um lento e progressivo movimento de transformação da sociedade brasileira, ainda em fase de consolidação.
Diante do que foi exposto, podemos intuir que a ruptura de paradigmas sociais não ocorre da noite para o dia. Em muitos casos, rupturas lentas e quase imperceptíveis produzem mais efeito do que transformações bruscas de grande impacto imediato. Até mesmo as revoluções, com todo o impacto destruidor (racional e irracional) que as acompanha, não ocorrem de imediato como pode supor a intensidade da força lançada contra o inimigo. A ruptura de um paradigma assemelha-se ao rompimento de um dique. Neste momento, percebemos a força da água furiosa demolindo estruturas com sua infantaria composta por uma turba de ondas gigantes que tudo leva e tudo destrói. Barulho e confusão que amedrontam diante do futuro incerto por vir.
A consolidação do Estado republicano brasileiro parece seguir a toada de uma revolução silenciosa de longa duração. Com o movimento brusco das águas, existem transformações sociais em forma de avulsão[1]. O caso brasileiro nos remete a outra imagem, se a metáfora permitir. A transformação da esfera pública em nosso país parece seguir o movimento lento, gradual e progressivo da aluvião[2]. Recordemos o mote da abertura política na década de 80: distensão lenta, gradual e progressiva. Alguma coisa em comum?
A leitura das Constituições brasileiras parece confirmar a hipótese. Em que pese os momentos de instabilidade política, o Brasil avançou no processo de consolidação de suas instituições democráticas. A luta contra o patrimonialismo está presente em cada reforma levada a cabo com o propósito de tornar a Administração Pública mais transparente, ofertando serviços mais eficientes ao cidadão. Neste sentido, devemos destacar as EC nº 19/98 e 45/04.
A EC 19/98 foi inspirada no modelo de gestão gerencial preconizado pelos teóricos da Nova Administração Pública. Mesmo aqueles que pretendiam implantar um modelo de gestão societal, como diagnosticado por De Paula (2009), não abandonaram os fundamentos da gestão empresarial do Estado.
As Constituições republicanas contêm de alguma forma mecanismos de controle da Administração Pública. Na década de 60, vamos encontrar um projeto de reforma administrativa do tipo gerencial, consolidada no Decreto-Lei 200/67. No entanto, o modelo gerencial será constitucionalizado através da EC 19/98. Bresser Pereira será o grande teórico e construtor dos argumentos para implantação do modelo gerencial na Administração Pública. Expressamente defenderá o modelo gerencial, a criação de mecanismos de controle social, accountability, e profissionalização dos servidores públicos. Havia nítido projeto de construção de um Estado republicano.
Até aqui consideramos verificada parte da hipótese sugerida. Resta saber se a consolidação do Estado republicano facilita o desenvolvimento de mecanismos de controle social das instituições. Ora, a criação de mecanismos de controle soa como consequência natural de um Estado desta natureza. Alguém poderia objetar dizendo que nos períodos colonial e imperial abundavam mecanismos de controle. A própria Inquisição não passava de um tipo de controle violento e supostamente eficiente. A objeção faz sentido. Onde há poder, há controle. Mas, o controle a que nos referimos é do tipo social e participativo. Talvez seja por esta natureza que Bresser Pereira vai recorrer a Weber e a Habermas para criticar os paradigmas a serem superados, enaltecendo os que estavam por vir.
Diga-se de passagem, que o controle social participativo, baseado no diálogo e na ocupação de espaços públicos de cidadania, necessita de um ambiente no qual estejam bem definidos os interesses públicos e privados, e o papel do Estado e da iniciativa privada restem bem delimitadas. Assim sendo, o Estado Democrático de Direito emerge como ambiente adequado para o desenvolvimento de mecanismos de controle social. Com exceção das Constituições de 1824, 1937 e 1969, as demais estabeleciam uma atmosfera democrática para o desenvolvimento destes mecanismos de controle. A Constituição de 1988 avançou mais ainda ao estabelecer tais mecanismos em seu texto: tribunais de contas, agências reguladoras, ouvidorias de justiça etc.
Se o Estado republicano contribuiu para o desenvolvimento do controle, podemos avançar e confirmar a hipótese de que as Ouvidorias integram estes mecanismos de participação social. O próprio Bresser Pereira afirma categoricamente que o ombudsman integra a estratégia de controle social. De Paula sinaliza na mesma direção. Pó e Abrucio (2006), expressamente fazem referência à Ouvidoria quando analisam a função das agências reguladoras. Nos sites consultados ela se apresenta ora como mecanismo de transparência e acesso à informação, ora como instrumento de controle e participação social.
Os mapas estatísticos consultados permitem ver claramente que as Ouvidorias recebem significativo número de manifestações de pessoas físicas e jurídicas, profissionais do direito e leigos. Os indicadores sugerem que elas podem atuar como instrumentos de ativação da cidadania participativa. Estaríamos diante de um ativismo cidadão, muitas vezes confundido como ativismo judicial. Isto porque, quando a cidadão dirige-se ao Estado, apresentando demanda que requer solução prática, nada mais faz do que ativar seu direito de participação na ordem social constituída. O Estado não pode negar a prestação prometida. No caso do Poder Judiciário, impera o princípio do non liquet[3]. Segundo ele, uma vez deduzida a pretensão o juiz tem o dever de pronunciar-se sobre ela. Neste caso, não teríamos um ativismo judicial como forma ilícita de usurpação da competência de outro Poder; estaríamos diante, isto sim, de um tipo específico de ativação da cidadania (ativismo cidadão).
Diante do exposto, a Ouvidoria estaria realmente contribuindo para democratizar a relação entre Estado e Cidadão, ativando a cidadania participativa? Para indicar que estamos diante de uma sentença verdadeira, basta consultar a página eletrônica da Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Nela, encontramos a seguinte expressão:
“Aqui trabalham pessoas que acreditam na democracia, na liberdade de expressão e no exercício da cidadania!”. (http://www.trt1.jus.br/web/guest/ouvidoria).
O diálogo social que se estabelece entre instituições e cidadãos é naturalmente assimétrico. De um lado, temos grandes corporações organizadas em forma de complexas redes hierarquizadas e uma infinidade de procedimentos internos de difícil manejo e compreensão. A proposta da Ouvidoria é justamente facilitar o diálogo das partes envolvidas em algum tipo de disfunção comunicativa. Como verificado ao longo das abordagens empíricas, ela atua como facilitador do diálogo, restaurando vínculos e relações estremecidas. Costuma atuar de forma imediata com linguagem clara, desimpedindo o diálogo e fortalecendo a crença na solução pacífica das controvérsias. Mediando conflitos, leva à alta administração das organizações opiniões, críticas, sugestões e denúncias de qualquer pessoa por mais simples que seja sem discriminação de qualquer tipo. Logicamente, estamos falando de uma Ouvidoria realmente comprometida com sua função social, capacitada para agir com autonomia e realizar a crítica interna das instituições sem receio de represálias. Neste contexto, mesmo com todas as dificuldades pontuadas, podemos dizer que elas desempenham importante papel para democratizar o acesso às instituições.
O desempenho da Ouvidoria pode multiplicar os acessos dos cidadãos, ativando cada vez mais a cidadania e a crítica social. Neste sentido, entendemos como crítica social não somente aquela destinada a indicar falhas sistêmicas. Faz parte da crítica social os elogios, as manifestações de agradecimentos e as sugestões ofertadas. Não podemos desconsiderar que as reclamações e as denúncias funcionam como críticas positivas também, pois permitem ao gestor identificar procedimentos e condutas desviantes que comprometem a eficiência dos serviços públicos e a imagem das instituições.
Enfim, o nosso trabalho baseou-se em pesquisa documental e observação empírica junto à Ouvidoria do TRT da 1ª Região. Recorremos também a autores especializados no tema, frequentando o Encontro Nacional de Ouvidores Públicos realizado no TRF da 4ª Região. Além disto, participamos de inúmeros congressos e seminários testando a hipótese apresentada e o recorte teórico utilizado. Concentramos nossa atenção nas Ouvidorias de Justiça porque inseridas diretamente no texto constitucional. Além disto, consideramos a centralidade do Poder Judiciário na crônica diária. Ele tem sido objeto de investigação quanto à sua capacidade de prestar um serviço público acessível, transparente e eficiente. Tais razões justificaram o delineamento do trabalho que se encerrou com a análise parcial do sistema de Ouvidoria de Justiça.
Considerando a existência de outras tantas Ouvidorias públicas e privadas, distribuídas nas mais diversas esferas dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, bem como por todas as unidades da Federação (Estados e Municípios), há uma riqueza de detalhes a serem explorados, aguardando a iniciativa de outros pesquisadores que poderão ofertar ao público trabalhos mais profundos do que este que ora entrego aos leitores. Sintam-se, pois, convidados a explorar este universo comunicativo, democrático e participativo.
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Conselho Nacional de Justiça. Resolução 103 de 2010.
Notas
[1] Avulsão, segundo o Código Civil brasileiro:
Art. 1.251. Quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destacar de um prédio e se juntar a outro, o dono deste adquirirá a propriedade do acréscimo, se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em um ano, ninguém houver reclamado.
[2] Aluvião, segundo o Código Civil brasileiro:
Art. 1.250. Os acréscimos formados, sucessiva e imperceptivelmente, por depósitos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização.
[3] Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1973).